TRANSMISSÃO DE IDENTIDADE NO CANDOMBLÉ

 

Por Marcelo Bolshaw Gomes 

 

A iniciação ritual no Candomblé é um processo de construção de uma identidade psicológica permanente entre o participante do culto e a entidade cultuada. Ao contrário do desenvolvimento mediúnico da concepção espírita - em que o médium renuncia temporariamente a sua própria subjetividade em favor da subjetividade de um desencarnado - o transe de incorporação no Candomblé tem por objetivo principal o auto-reconhecimento recíproco entre o ‘santo’ e seu ‘filho’, o reatamento simbólico e permanente do mundo dos homens (Ayé) com o mundo dos deuses (Orum).

Este processo de identificação simbólica entre os participantes e os Orixás não existe apenas no momento privilegiado do transe ritual; a identidade entre o iniciado e seu santo corresponde a incorporação psicológica permanente das características do orixá na personalidade de seus filhos. Esta identidade instaura-se não só através da iniciação e se desenvolve lenta e gradualmente nos transes, mas também é reforçado periodicamente nas obrigações sucessivas e renovada nas festa públicas dos santos, quando toda a comunidade presente se torna testemunha e fiadora desta aliança e dela se beneficia.

 Os rituais do Candomblé consistem basicamente de um conjunto de temas arquetípicos - a representação\incorporação de forças naturais personificadas em comportamentos e estórias - que se sucedem durante a cerimônia. Cada entidade se manifesta através de um transe característico, produzido por imagens, sons, cheiros, gostos, danças, ritmos, cores, trajes e adereços específicos. Invocados através de danças extáticas e de três tambores cerimoniais (rum, rumpi e lé), os deuses africanos incorporam em seus ‘filhos’, fazendo-os re-dramatizar os grandes feitos míticos e lendas: a luta dos irmãos Ogum e Xangô pelo amor de Oxum, a viagem de Oxalufã ao encontro de seu filho Xangô, as aventuras amorosas de Yansã ... As entidades são, ao mesmo tempo, fundamentos psíquicos de comportamentos humanos e forças místicas da Natureza; e são representadas nos rituais como identidades sagradas que se manifestam dentro de uma estrutura mítico-litúrgica de interpretação do mundo.


NAÇÃO  LÍNGUA ENTIDADES ‘TOQUES’
NAGÔ (KETO) Iorubá  Os Orixás  Ajicá, Aguerê, Opanijé, Darô, Alujá e Ibi
JEJE-fON  Ewe Os Voduns  Arramunha, Bravum e Sató
ANGOLA e CONGO Banto e Português Os Inkices  Barravento, Cabula e Congo

 Não se trata, portanto, de uma encenação teatral ou de uma catarse histérica: neste psicodrama mítico há uma ‘economia energética’, onde forças espirituais são manipuladas e manipulam os corpos dos participantes, em um espetáculo coreográfico que associa imagens-tema a ritmos determinados. Essas associações audiovisuais são produto e instrumento de um processo de construção de uma identidade simbólica, que vai de acordo com a tradição cultural de cada Nação do Candomblé e com a força-entidade invocada.


KETO-NAGÔ (ORIXÁ)  JEJE-FON (VOODUM)  ANGOLA-CONGO (INQUICE)
Olorum ou Olodumaré  Mavu Lissa  Zambi ou Zania pombo
Oxalá Olissa Lembá ou Lembarenganga
Ogum Gú  Sumbo Mucumbe
Oxossi  - Mutalambô ou Tauamim
Omulú  Sapatá  Burumgunço ou Cuquete
Xangô Sobó  Cambaranguaje ou Zaze
Yansã  Oiá  Bamburucema ou Matamba
Oxum  Aziri Tobossi  Quicimbe ou Caiala
Yemanjá  Abé Bandalunda
Oxumaré  Bessém e Dã  Angorô
Ossaim  Aguê  Catende (Caipora)
Exú/Iroko Loko Tempo
Nanã-Burukê  Nanambiocô  Querê-querê

O que se pode perceber em uma rápida comparação das três nações é que nos Voduns e nos Inquices estão não apenas as mesmas forças místicas que formam os Orixás nagôs, mas também outras forças e outros conceitos. No caso dos Jeje, existentes no Haiti, em Cuba e no estado brasileiro do Maranhão, os Voduns cultuados são em número maior que os orixás mais conhecidos habitualmente no culto Iorubá. Os Voduns podem ser divididos em homens e mulher; e, dentro destes, em moços e velhos, somando um total de quarenta entidades. Já no caso dos ritos bantos, há, devido a outra concepção acerca da ancestralidade, entidades provenientes da mitologia indígena e também a presença de diversos tipos de espíritos de mortos (caboclos, preto velhos, crianças, índias).

 Na África (1), as ‘nações’ eram identidades étnicas de diferentes grupos geográficos. Porém, o termo ‘nação’ no contexto do candomblé brasileiro (2) significa um grupo cultural com tradições próprias intrínsecas de culto. Há, portanto, uma diferença acentuada entre a identidade étnica das ‘nações africanas’ e a identidade cultural das ‘nações do candomblé’ no Brasil. De uma forma geral, podemos dizer que o modelo ‘Jeje-Nagô’ é predominante no Candomblé brasileiro. Ele é o mais tradicional, o menos permeável a mudanças e influências culturais, o mais próximo do modelo africano original ainda hoje existente na Nigéria. Em oposição a esta tendência tradicionalista do modelo Jeje-Nagô, o grupo cultural dos Bantos (nações de Angola e Congo) foi o que mais se sincretizou. Os Bantos, mesmo depois de um primeiro momento de autonomia religiosa e embora conservassem o nome original de certas entidades de origem congolesas, viram seus rituais progressivamente desagregarem, para dar lugar ao sincretismo afro-ameríndio (Catimbó, Candomblé de Caboclo, a pajelança e o culto a entidades indígenas) e ao afro-espírita (Jurema, Umbanda) ou se adaptaram as regras ditadas pelos candomblés nagôs, não se distinguindo destes senão por seus cantos mesclarem o banto com o português em louvores a ‘Zambi’.

 Assim, se o Candomblé é uma manifestação da identidade cultural dos negros no Brasil (3), pode-se notar facilmente a existência de uma linha de desenvolvimento angolana em oposição a uma linha nagô. A primeira, incorporando a ancestralidade indígena e mestiça, é responsável por novas formas de identidade social dentro da realidade brasileira; e a segunda, ao contrário, procurando cada vez mais se africanizar, cultuando exclusivamente os orixás e mantendo as cerimônias com os espíritos dos mortos (ou antepassados) restritas aos ritos secretos da Sociedade dos Eguns Ilê Agbouça, na ilha de Itaparica (BA).

 Além dessas variações culturais das referências simbólicas segundo as nações - que, no Brasil, se diversificam em milhares de seitas e cultos multisincretizados sob a hegemonia Jeje-Nagô - há, ainda, uma variação simbólica referente a cada entidade dentro de um mesmo ritual, onde os referentes são organizados de modo a caracterizar a identidade de cada orixá. Cada ‘Santo’ tem sua cor, suas músicas, sua dança e, ao mesmo tempo, corresponde a um tipo de comportamento humano específico e a uma faixa vibratória da Natureza. Cada entidade é um feixe de referentes simbólicos. No Xireé, a ordem seqüencial de apresentação durante o ritual é quando melhor se observa como os Orixás formam as freqüências de rede do Candomblé enquanto linguagem simbólica: no início as vibrações mais densas e ctnônicas; no final, as mais desmaterializadas e distantes. Trata-se, como dissemos, de reunificar o Ayé (Mundo do preto e vermelho) ao Orum (universo luminoso do branco), passando por todo espectro de vibrações/entidade intermediárias.

O modelo Jeje-Nagô ou baiano apresenta, geralmente, dezesseis orixás principais: Exu, Ogum, Oxossi, Ossaim, Xangô, Iansã, Oxum, Obá, Nanã Burukê, Omulú, Oxumaré, Iroko, Ibeji, Logunedé, Yemanjá e Oxalá. Vejamos agora como se organizam os referentes simbólicos (alimentares e audiovisuais) dessas dezesseis entidades no sistema divinatório do Ifá. 

 

O Ifá e a Organização do Destino

 


(1) Candomblé africano em geral <http://www.inle.freeserve.co.uk/> Há muitos sites específicos sobre o Candomblé Nagô e a Cultura Ioruba. Instituto Onimolá, por exemplo <http://onimola.luanet.com.br/>. Também não são raras páginas sobre os Orixás. V. <http://www.geocities.com/Area51/Chamber/5015/orixas.htm> e <http://www.geocities.com/Athens/Oracle/1901/orixas1.htm>. Para um estudo mais profundo do culto Jeje, Voodoo Reference Books é um bom ponto de partida. Também existem páginas específicas sobre o Candomblé de Angola e suas divindades, os Inquices.

(2) Candomblé brasileiro <http://www.geocities.com/SoHo/Lofts/6052/> Conheça também o site fotográfico Candomblé no Brasil

(3) Candomblé africano no Brasil <http://www.candomble.com/candomble.shtml> Veja também o texto How they do it in Brazil?

Outros links de interesse:

Terreiros e Casas de Santo
Ilê Oxum Docô. Ilé Axé Opô Afonjá. Ile Ase Dana Dana. Ile Ashe Ode Ofa.
Associazione per la Diffusione del Candomblé
Textos e Sites temáticos

Sacred Leaves of Candomble

The Candomblé Cult

Os segredos e explicações do Candomblé

Candomblé sem Mistérios
Páginas Pessoais Interessantes
Paulo de Oxalá Página dos Òrìsà