O LADO ATIVO DO INFINITO


Último livro de Castaneda revela os ensinamentos de Dom Juan para enfrentarmos a viagem definitiva.


Por Moura Neto

        Castaneda havia viajado de carro o dia todo para encontrar Dom Juan em sua casa, no Estado de Sonora, ao norte do México. Estava nervoso, inquieto e suado. Acomodou-se, logo que chegou, numa caixa que servia de banco, debaixo da ramada – uma estrutura aberta construída com varas finas de bambu, parecendo um pórtico com teto, que protegia um pouco do sol, mas não da chuva. Era um final de tarde quando começaram a conversar. Foi nessa conversa que Dom Juan comentou, em tom de casualidade, que cada guerreiro, obrigatoriamente, coleciona material para um álbum especial, um álbum que revela a personalidade do guerreiro, um álbum que é o testemunho das circunstâncias de sua vida.

O comentário fazia sentido. Castaneda era um colecionador inveterado: colecionava revistas, selo, discos, parafernálias da Segunda Guerra, como punhais, capacete militares e bandeiras. Agora Dom Juan estava dizendo a seu discípulo que ele precisava parar de colecionar “porcarias” e reunir uma coleção de “eventos memoráveis” de sua própria vida, da forma como os xamãs de sua linhagem faziam, por que esta coleção, segundo ele, era o veículo para o ajuste emocional e energético necessário à viagem definitiva, a viagem que todo o ser humano deve fazer no final da vida. Colecionar os eventos memoráveis em suas vidas era, para Dom Juan, a preparação para entrar nessa região concreta que eles e os demais xamãs yaqui do México chamavam de “o lado ativo do infinito”.

A reunião de eventos memoráveis da vida de Carlos Castaneda resultou, portanto, na publicação de O lado ativo do infinito, último livro (editado em 2001 pela Nova Era, 331 páginas) do autor que morreu em 1998, aos 73 anos de idade, tornando-se ele mesmo uma figura tão curiosa e esquiva quanto o velho índio que durante 13 anos lhe tornou acessível o mundo cognitivo dos xamãs que viveram antigamente no México. Os eventos memoráveis da vida de Castaneda, como é de se esperar, abrangem os ensinamentos ministrados por Dom Juan, a forma como um descobriu ao outro e vice-versa, uma relação que se tornou a matéria prima para a extensa e profunda obra do escritor.

Quando Castaneda conheceu Dom Juan ainda era um estudante de antropologia aplicada da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, decidido a subir na vida acadêmica coletando informações sobre o uso de plantas medicinais utilizadas pelos índios do sudoeste americano. Desestimulado pelos professores a fazer pesquisas de campo sobre o assunto, aceitou o convite para viajar de carro ao Arizona e Novo México com um amigo antropólogo, que pretendia visitar os lugares por onde havia trabalhado no passado e restabelecer os contatos com seus informantes. Foi nessa viagem que ele, Castaneda, ouviu do amigo relatos sobre “experiências não catalogadas” relacionadas aos índios. Quando a viagem terminou, Castaneda foi levado à estação rodoviária de Greyhound, em Nogales, no Arizona, de onde voltaria a Los Angeles, e lá viu pela primeira vez a figura excêntrica de Dom Juan. O amigo apontou para o índio e disse que ele era um mestre xamã.

“Uma ansiedade estranha me sobreveio e de repente dei um salto no banco. Como impelido por uma vontade que não fosse minha, aproximei-me do velho e imediatamente comecei uma longa explanação do quanto eu sabia sobre plantas medicinais e sobre xamanismo entre os índios americanos das planícies e seus ancestrais siberianos. Como segundo tema, mencionei ao velho que sabia que ele era xamã. Concluí assegurando-lhe que seria extremamente benéfico para ele conversar detalhadamente comigo”, contou Castaneda no livro. 

Dom Juan convidou Castaneda a visitá-lo em sua casa, sem no entanto informar onde morava. O ainda estudante de antropologia precisou empreender uma longa investigação para descobrir onde o xamã residia. Quando Castaneda chegou à casa de Dom Juan, algum tempo depois do primeiro encontro, parecia que este já estava lhe esperando.

- Sou Juan Matus. Esse é o meu nome e eu o pronuncio porque com ele estou fazendo uma ponte para você cruzar e vir até onde estou – disse ao visitante, logo que o reviu. – Sou um feiticeiro - prosseguiu -. Pertenço a uma linhagem de feiticeiros que existe há 27 gerações. Sou o nagual (líder) de minha geração.           

Dom Juan disse que ser um feiticeiro não significava praticar bruxaria, ou trabalhar para afetar as pessoas ou ser possuído por demônios. Significava, sim, alcançar um nível de consciência que dá acesso a coisas inconcebíveis. Explicou também que como nagual de sua geração estava procurando um indivíduo que tivesse uma configuração energética específica, adequada para assegurar a continuidade de sua linhagem. Em outras palavras: buscava um sucessor para si próprio. Dom Juan viu em Castaneda as qualidades que buscava no seu sucessor.

A partir daí mestre e discípulo passaram a trabalhar juntos. Castaneda escreveu outros 11 livros sobre as experiências que acumulou ao percorrer caminhos extra-sensoriais em busca de conhecimento. O discípulo virou mestre, fez escola e acolheu seus próprios discípulos. Antes de partir para o lado ativo do infinito deixou seu último testemunho. Seguindo, mais uma vez, as recomendações de quem lhe introduziu no mundo misterioso da magia e do poder oculto.