O ENCONTRO DOS CURADORES DA MEDICINA DA FLORESTA

 

    Uma pequena semente de um grande futuro: os princípios da Medicina da Floresta, legislação sobre Proteção de Propriedade Intelectual, a preservação do patrimônio cultural do conhecimento tradicional e a auto-sustentabilidade de suas práticas curativas, a aliança entre os povos da floresta e os sistemas oficiais de saúde pública - foram alguns dos temas debatidos do primeiro Encontro dos Curadores da Medicina da Floresta. 

    Com a participação de vários líderes comunitários da região do Vale do Juruá e representantes de diversas tradições indígenas, o Encontro ocorreu no dia 2 de dezembro de 2001, por ocasião do encerramento do curso de formação de agentes de saúde do CMF realizado na comunidade de Nova Era, no Rio Crôa, município de Cruzeiro do Sul.

    Porém, a grande importância do encontro se encontra na Carta de Princípios assinada pelos participantes e, principalmente, no modelo de uma aliança estratégica entre os povos da floresta, as autoridades públicas no setor de saúde e as Organizações Não Governamentais, voltadas para a preservação ambiental com desenvolvimento auto-sustentado.

O Curso

    Após dois meses de abertura para diversos aspectos da medicina da floresta, em que os alunos tiveram a oportunidade de explorar os variados campos de atividade e pesquisa, o último mês do curso esteve voltado para a setorização e fixação do conhecimento adquirido. Assim foram delineados os diversos setores que compõem o Centro Medicina da Floresta, a saber: setor de Cultivo de Ervas, setor de Extrativismo e Coleta de Matéria Prima, setor de Pesquisa, setor de Manipulação (fitoterápicos, florais e homeopatia), setor de Atendimento (emergência, consultas, campanhas), setor de Secagem de Ervas e setor de Apoio (administração, almoxarifado, controle de estoque, obras, registro e documentação).

    Cada aluno foi chamado a estudar-se e procurar seus pontos de identidade para concentrar-se em alguns setores com o objetivo de aprofundamento e aprimoramento para tornar-se apto a assumir responsabilidades específicas. Foi dada ênfase especial à organização de cada setor e da articulação entre os mesmos. Alguns destaques foram: a campanha contra verminose e contra malária, a organização da farmácia e do consultório.

A Campanha

    Foram destacadas equipes que se sucederam durantes três dias para visitação, deslocando-se em canoa, da parte alta até a ponte do Rio Crôa. Foram encontradas 17 casas, cadastrados todos os moradores, idades e patologias dos mesmos, condições sanitárias e tratamento de lixo. Em todas as casas foi feita palestra explicativa de educação sanitária para a prevenção de doenças e despachados os remédios anti-parasitários e anti-malárico preventivo. Após dez dias, as equipes visitaram novamente as casas, constatando resultados 70% positivos na melhoria de higiene e 90% na melhoria de febres e diarréias (principais sintomas das epidemias combatidas).

A Farmácia

    A organização da farmácia para despacho de remédios trouxe amadurecimento do aprendizado e compreensão da dinâmica do funcionamento do centro. Foram trabalhadas as noções de estoque, articulação com os setores de produção, organização e planejamento. 

O Consultório

    Foi organizado o fichário de pacientes atendidos e estudadas as possibilidades e limites de nosso serviço como agentes de saúde, os tipos de casos que carecem de encaminhamento aos serviços oficiais de saúde. 

Remédios Produzidos

    Também foram produzidos um número significativos de medicamentos durante o curso: 30 litros de Depurativo Regenerador, 45 litros de Teórico da Floresta, 80 litros de anti-malárico, 60 litros de anti-anêmico, 50 litros de anti-reumático, além de tinturas, plantas dinamizadas homeopaticamente e essências florais.

Obras e Construções

    A unidade do Centro Medicina da Floresta (CMF) no Rio Crôa ficou praticamente concluída, faltando somente acabamentos no laboratório e no paiol de almoxarifado da parte de estrutura da fornalha. Na parte de Cruzeiro do Sul, inicia-se agora a construção das instalações físicas e já se tem toda parte burocrática encaminhada. E aos poucos, o CMF vai espalhando suas unidades por todo Vale do Juruá.

Encontro dos Curadores

    Coroando todo processo, no encerramento do Curso de Formação de Agentes de Saúde e de implantação de uma Unidade do Centro de Medicina da Floresta (CMF) na Vila do Céu do Juruá, com a participação de diferentes comunidades indígenas e de autoridades municipais da saúde pública, aconteceu o primeiro Encontro de Curadores da Medicina da Floresta. Como síntese dos debates do evento, os participantes firmaram o seguinte documento:


CARTA DE PRINCÍPIOS DO PRIMEIRO ENCONTRO

DE CURADORES DA MEDICINA DA FLORESTA

 

1 - Todo aquele que trabalha com a Medicina da Floresta tem amor à floresta e a toda a natureza criadores, e, portanto, tem o compromisso de preservação da mesma, devendo manejar corretamente sua atividade extrativista bem como investir em reflorestamento.

 

2 - Os povos da floresta, nações indígenas, seringueiros e demais comunidades organizadas da cultura tradicional tem o direito de decidir sobre o patrimônio que zelam e preservam, não cabendo aos governamentais fazer concessões para exploração ou pesquisa de sua biodiversidade sem autorização das mesmas e, sim, o dever de as representar e garantir nossos direitos.

 

3 - O conhecimento tradicional é propriedade dos povos da floresta e não pode, portanto, ser patenteado por outros que não eles.

 

4 - Defendemos a construção desta aliança como guardiã do conhecimento tradicional podendo almejar a noção de patente coletiva em nome dos signatários desta carta. As referidas patentes adquiridas em nome desta aliança de comunidades tradicionais não serão negociáveis, ou seja, são patrimônios inalienáveis.

 

5 - Em eventuais acordos comerciais sobre o patrimônio físico, devemos completar a cadeia de produção na própria floresta, não exportando matéria prima bruta ou matrizes de medicamentos e, sim, trazendo capacitação técnica e meios de produção para floresta.

 

6 - Defendemos o direito de preservação dos direitos de cada tradição, bem como a liberdade de compartilhá-los entre nós. Neste sentido defendemos como meta a criação de uma cooperativa de produtores de remédios da floresta, para geração de renda e sustentabilidade econômica de nossa medicina.

 

7 - Defendemos o diálogo com a comunidade científica dentro de nossos demais princípios éticos, visando o aprimoramento de nossa pesquisa pelo método de experimentação científica que nos legitima perante os poderes públicos civis e jurídicos, bem como fortalece nossos laços de fraternidade com toda humanidade.

 

Assinam o documento: Maria Alice Freire, Superintendente Nacional do Centro Medicina da Floresta (CMF); Davi Nunes de Paula, presidente do comitê Ação Direitos Humanos da Aliança dos Povos da Floresta; José Osair Sales (Siã Caxinawá), representante da Comissão dos Direitos Humanos das Populações Indígenas do Brasil; Antonio Francisco dos Santos, presidente da Associação dos Produtores e Trabalhadores Rurais de Rodrigues Alves (APITRA); Serafim Cruz, médico boliviano (iniciado na tradição Keshua) e representante da secretaria municipal de saúde de Cruzeiro do Sul; Fernando Rosa da Silva, Coordenador da FUNAI no Vale do Juruá; Luis Valdemar Silva de Souza, Coordenador da UNI no Vale do Juruá; Francisco Lima Silva, representante da Associação Arara do Iguarapé Humaitá; José Ivo Brito da Costa, secretário geral da Associação extrativista do Alto e Médio Juruá; Luis Ferreira Albuquerque, presidente em exercício da ASAMONIA; Elizabeth Cristina Mendes, da Associação de Moradores e Produtores da Vila Céu do Juruá; e, finalmente, Alfredo Gregório de Melo, secretário geral do IDA-CEFLURIS.