O KARMA, UM ATRATOR MUITO ESTRANHO!

Marcelo Bolshaw Gomes

Sempre me fascinou o fato das religiões se fundarem em idéias: o Budismo se baseia na idéia de que tudo é ilusão (maia) e que a iluminação (ou nirvana) consiste da transcendência de todo desejo pela consciência; o Cristianismo se funda nos dois princípios éticos do amor ao Pai (eixo vertical e dialético) e ao próximo (eixo horizontal e dialógico); o Islamismo se baseia na entrega absoluta e na submissão incondicional a Alá.Também as reformas, como a protestante que valorizou a noção de Fé diante da doutrina tomista das obras, foram governadas por essas fascinantes formas imateriais a que chamamos de idéias.

Seguindo esta lógica, podemos dizer que espiritismo kardecista (que não é uma religião, mas uma doutrina) se baseia na idéia de uma dialética entre a Justiça (ou o karma) e a Liberdade (ou o livre-arbítrio). Nesta concepção, nosso destino está determinado, mas temos plena liberdade de decidir como vamos realiza-lo. Por exemplo: estamos predestinados a um casamento ou a um acidente automobilístico, mas a forma como vamos enfrentar esses eventos é de nossa inteira responsabilidade. Porém, devido tanto a influência do pensamento positivista em Allan Kardec como também a um certo cientificismo dos espíritas modernos em geral, o karma foi compreendido como uma “lei de causa e efeito” e o destino humano reduzido a uma visão mecanicista.

No hinduísmo, encontraremos uma concepção bem diferente da idéia de karma (e de reencarnação) que no espiritismo, nela não há ênfase na causalidade, mas sim na ação; e o tempo não é entendido de forma contínua e linear. Há uma alegoria que explica bem essa diferença: o homem é um arqueiro que só possui três fechas. A primeira já foi lançada, é o seu passado. A segunda está guardada e é seu futuro. A terceira está no arco e dependendo para onde for lançada decido o destino do arqueiro: se a lançar na mesma direção do passado, o homem terá dois terços de suas ações contra si e terá um destino kármico; porém, se for lançada em uma nova direção, haverá possibilidade de um destino dármico, isto é, em harmonia com o tempo e a roda vida que o governa.

Ou em uma linguagem mais científica: o karma pode ser visto também como uma espécie de inércia, isto é, a tendência do vivente repetir as atitudes do passado diante de situações análogas às que já viveu. Ao longo da vida, essa processo incessante aprisionaria o homem em uma repetição sem fim, e moldaria um padrão e um destino provável, pois suas ações teriam sempre a mesma inflexão e resultados semelhantes. É algo que age como uma tendência ou uma auto-sabotagem velada, uma repetição constante de situações e tipos de pessoas, um certo padrão reincidente.

Mas se pensarmos a vida como um sistema, o karma seria o conjunto de suas recorrências cognitivas (o "habitus" como disse Bourdieu) e o livre-arbítrio, sua tendência à autopoesis, isto é, a uma autonomia relativa.  Assim, mais do que esse mero repetir de recorrências subjetivas, o karma é também um feedback espiritual da ação, é uma pré-programação do sistema ou um subsistema de controle formado a partir do conjunto de nossos condicionamentos inerciais. Assim, o karma funciona como uma “estrutura indutora” da ação, um atractor estranho dos destinos, que envolve não apenas pessoas, mais também objetos e locais.

            Aliás, podemos dizer a idéia essencial no hinduísmo, ou pelo menos a idéia principal que chegou aos nossos dias, é a instrução de Karma Ioga (ioga da ação) que Krisna ensina ao guerreiro Arjuna no Bhagavad-Gítã. Como se sabe, os Vedas, livros sagrados do hinduísmo, são formados por duas grandes histórias, o Ramayana e o Mahabarata. Este último conta a estória dos irmãos Pandhava, que depois de exilados a vagar pelos reinos mágicos da Índia antiga, voltam e enfrentam seus primos-usurpadores em uma grande batalha. O Gítã narra o momento que antecede a luta, em que Arjuna quer desistir de combater para não matar seus antigos mestres e amigos, e assim aumentar seu karma. É então que surge Krisna e diz que se Arjuna não cumprir seu destino e derrotar seus primos, o mundo estará entregue a maldade. Krisna instrui a Arjuna como lutar sem adquirir karma, o que levou a alguns comentadores ocidentais do texto a interpretar este diálogo como a relação pedagógica entre o Eu Superior e o Ego (Huberto Rohden, por exemplo). A tradição hinduísta, que considera Arjuna e Krisna como personagens históricos reais, desautoriza esta leitura esotérica de Nova Era. 

            Para nós interessa observar que o Gítã não é apenas um livro sagrado sob qualquer aspecto que seja interpretado, mas um texto voltado para uma ética da ação política e militar. Esta dimensão menos religiosa, geralmente ignorada, nos revela aspectos éticos novos da idéia de karma em diferentes direções. Aspectos que o budismo, o cristianismo e o espiritismo encobriram com suas concepções de karma. Enquanto na concepção do Gítã temos uma teoria da ação, nas filosofias posteriores a idéia de karma se tornou uma teoria da determinação, sendo reduzida à contabilidade moral de méritos e débitos de vida.

            Vejamos alguns desses aspectos: a) o karma não resulta da ação praticada, mas do sentimento com que a se pratica; b) o karma não é necessariamente individual e intransferível, ele está associado com a idéia de obrigação que pode ser cumprida por qualquer um que se identifique com sua demanda (filhos em relação aos pais, por exemplo); c) o karma não está atrelado à idéia de evolução (existem retrocessos kármicos: uma pessoa pode voltar a reencarnar como animal ou planta); d) o karma é transpessoal: vários espíritos podem reencarnar em uma pessoa e vice-versa. Entretanto, ao comparamos esta concepção da tradição hinduísta à atual concepção espírita kardecista, observamos que o que realmente mudou foi nossa idéia de Liberdade e de Justiça.

Cada um desses aspectos comporta longas e complexas discussões. Por exemplo: se o karma não resulta da ação, mas da intenção, é lícito matar outro vivente desde com desapego emocional? Com efeito, para o Hinduísmo, o karma ioga é um sistema de ética guerreira; enquanto para os espíritas ocidentais contemporâneos, o karma é uma “Lei” – tanto no sentido de “lei científica” como no de “legislação penal”. Aliás, essa duplicidade é bastante significativa porque revela a nossa necessidade de duplo fundamento (natural e social) da causalidade e determinação da vida. A questão central, então, passa a ser como entendermos que essa necessidade de ordem diante do caos e da entropia do universo em nossa vida cotidiana.

Concluindo: o karma não é uma estrutura determinística, mas sim condicionante, ele é o conjunto das condições iniciais de uma situação e não sua(s) causa(s). Seja na forma de obstruções, doenças ou influências espirituais negativas, este atractor de coincidências existenciais apenas reincide sua nossa ação na medida em que não o consideramos: a lei só existe para quem a desobedece.