O
KARMA, UM ATRATOR MUITO ESTRANHO!
Sempre
me fascinou o fato das religiões se fundarem em idéias: o Budismo se baseia na
idéia de que tudo é ilusão (maia) e que a iluminação (ou nirvana) consiste
da transcendência de todo desejo pela consciência; o Cristianismo se funda nos
dois princípios éticos do amor ao Pai (eixo vertical e dialético) e ao próximo
(eixo horizontal e dialógico); o Islamismo se baseia na entrega absoluta e na
submissão incondicional a Alá.Também as reformas, como a protestante que
valorizou a noção de Fé diante da doutrina tomista das obras, foram
governadas por essas fascinantes formas imateriais a que chamamos de idéias.
Seguindo
esta lógica, podemos dizer que espiritismo kardecista (que não é uma religião,
mas uma doutrina) se baseia na idéia de uma dialética entre a Justiça (ou o
karma) e a Liberdade (ou o livre-arbítrio). Nesta concepção, nosso destino
está determinado, mas temos plena liberdade de decidir como vamos realiza-lo.
Por exemplo: estamos predestinados a um casamento ou a um acidente automobilístico,
mas a forma como vamos enfrentar esses eventos é de nossa inteira
responsabilidade. Porém, devido tanto a influência do pensamento positivista
em Allan Kardec como também a um certo cientificismo dos espíritas modernos em
geral, o karma foi compreendido como uma “lei de causa e efeito” e o destino
humano reduzido a uma visão mecanicista.
No
hinduísmo, encontraremos uma concepção bem diferente da idéia de karma (e de
reencarnação) que no espiritismo, nela não há ênfase na causalidade, mas
sim na ação; e o tempo não é entendido de forma contínua e linear. Há uma
alegoria que explica bem essa diferença: o homem é um arqueiro que só possui
três fechas. A primeira já foi lançada, é o seu passado. A segunda está
guardada e é seu futuro. A terceira está no arco e dependendo para onde for
lançada decido o destino do arqueiro: se a lançar na mesma direção do
passado, o homem terá dois terços de suas ações contra si e terá um destino
kármico; porém, se for lançada em uma nova direção, haverá possibilidade
de um destino dármico, isto é, em harmonia com o tempo e a roda vida que o
governa.
Ou
em uma linguagem mais científica: o
karma pode ser visto também como uma espécie de inércia, isto é, a tendência
do vivente repetir as atitudes do passado diante de situações análogas às
que já viveu. Ao longo da vida, essa processo incessante aprisionaria o
homem em uma repetição sem fim, e moldaria um padrão e um destino provável,
pois suas ações teriam sempre a mesma inflexão e resultados semelhantes. É
algo que age como uma tendência ou uma auto-sabotagem velada, uma repetição
constante de situações e tipos de pessoas, um certo padrão reincidente.
Mas
se pensarmos a vida como um sistema, o karma seria o conjunto de suas recorrências
cognitivas (o "habitus" como disse Bourdieu) e o livre-arbítrio, sua
tendência à autopoesis, isto é, a uma autonomia relativa.
Assim, mais do que esse mero repetir de recorrências subjetivas, o karma
é também um feedback espiritual da ação, é uma pré-programação do
sistema ou um subsistema de controle formado a partir do conjunto de nossos
condicionamentos inerciais. Assim, o karma funciona como uma “estrutura
indutora” da ação, um atractor estranho dos destinos, que envolve não
apenas pessoas, mais também objetos e locais.
Aliás, podemos dizer a idéia essencial no
hinduísmo, ou pelo menos a idéia principal que chegou aos nossos dias, é a
instrução de Karma Ioga (ioga da ação) que Krisna ensina ao guerreiro Arjuna
no Bhagavad-Gítã. Como se sabe, os Vedas, livros sagrados do hinduísmo, são
formados por duas grandes histórias, o Ramayana e o Mahabarata. Este último
conta a estória dos irmãos Pandhava, que depois de exilados a vagar pelos
reinos mágicos da Índia antiga, voltam e enfrentam seus primos-usurpadores em
uma grande batalha. O Gítã narra o momento que antecede a luta, em que Arjuna
quer desistir de combater para não matar seus antigos mestres e amigos, e assim
aumentar seu karma. É então que surge Krisna e diz que se Arjuna não cumprir
seu destino e derrotar seus primos, o mundo estará entregue a maldade. Krisna
instrui a Arjuna como lutar sem adquirir karma, o que levou a alguns
comentadores ocidentais do texto a interpretar este diálogo como a relação
pedagógica entre o Eu Superior e o Ego (Huberto
Rohden, por exemplo).
A tradição hinduísta, que considera Arjuna e Krisna como personagens históricos
reais, desautoriza esta leitura esotérica de Nova Era.
Para nós interessa observar que o Gítã não é apenas um livro sagrado
sob qualquer aspecto que seja interpretado, mas um texto voltado para uma ética
da ação política e militar. Esta dimensão menos religiosa, geralmente
ignorada, nos revela aspectos éticos novos da idéia de karma em diferentes
direções. Aspectos que o budismo, o cristianismo e o espiritismo encobriram
com suas concepções de karma. Enquanto na concepção do Gítã temos uma
teoria da ação, nas filosofias posteriores a idéia de karma se tornou uma
teoria da determinação, sendo reduzida à contabilidade moral de méritos e débitos
de vida.
Vejamos alguns desses aspectos: a) o karma não
resulta da ação praticada, mas do sentimento com que a se pratica; b) o karma
não é necessariamente individual e intransferível, ele está associado com a
idéia de obrigação que pode ser cumprida por qualquer um que se identifique
com sua demanda (filhos em relação aos pais, por exemplo); c) o karma não está
atrelado à idéia de evolução (existem retrocessos kármicos: uma pessoa pode
voltar a reencarnar como animal ou planta); d) o karma é transpessoal: vários
espíritos podem reencarnar em uma pessoa e vice-versa. Entretanto, ao
comparamos esta concepção da tradição hinduísta à atual concepção espírita
kardecista, observamos que o que realmente mudou foi nossa idéia de Liberdade e
de Justiça.
Cada um desses aspectos comporta longas e complexas discussões. Por exemplo: se o karma não resulta da ação, mas da intenção, é lícito matar outro vivente desde com desapego emocional? Com efeito, para o Hinduísmo, o karma ioga é um sistema de ética guerreira; enquanto para os espíritas ocidentais contemporâneos, o karma é uma “Lei” – tanto no sentido de “lei científica” como no de “legislação penal”. Aliás, essa duplicidade é bastante significativa porque revela a nossa necessidade de duplo fundamento (natural e social) da causalidade e determinação da vida. A questão central, então, passa a ser como entendermos que essa necessidade de ordem diante do caos e da entropia do universo em nossa vida cotidiana.
Concluindo: o karma não é uma estrutura determinística, mas sim condicionante, ele é o conjunto das condições iniciais de uma situação e não sua(s) causa(s). Seja na forma de obstruções, doenças ou influências espirituais negativas, este atractor de coincidências existenciais apenas reincide sua nossa ação na medida em que não o consideramos: a lei só existe para quem a desobedece.