Em pé firme na floresta

Casal de natalenses abandona o conforto da cidade para morar numa comunidade na Amazônia

Moura Neto

Há mais de vinte e três anos, ao contemplar pela janela do carro o que outrora havia sido a exuberante Mata Atlântica, quando viajava pela BR-101 na companhia da esposa, Edílson comentou com Eliana: - só serei feliz se um dia tomar conta de um pedaço de floresta. Naquela época eles moravam em Maceió, depois se transferiram para Recife e, posteriormente, retornaram para Natal, cidade na qual nasceram e se criaram. Há seis anos, porém, os dois largaram a agitação dos centros urbanos e foram para a floresta amazônica viver em contato direto com a natureza. Edílson é hoje um homem realizado: toma conta de quase 100 hectares de mata virgem, uma área que batizou com o nome de colocação Flor das Águas, localizada às margens do igarapé Mapiá, afluente da margem esquerda do rio Purus, no município de Pauiní, sul do Amazonas, a dezenas de horas de viagem de barco da cidade mais próxima.

“Não sinto a menor falta do que tinha na minha vida”, revela o ex-comerciante Edílson Dorneles Alves, que antes de embarcar nessa aventura possuía concessão para explorar um ponto de lanches na Cidade da Criança, no Tirol, bairro nobre de Natal. Sua adaptação à floresta foi mais rápida do que esperava. Como se, na verdade, estivesse retornando a um habitat que sempre fora do seu domínio. O mesmo aconteceu com Eliana Lúcia Cortez Pessoa, funcionária pública aposentada, formada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com relevantes serviços prestados ao Ministério da Educação. Ela trocou a rotina de expedientes burocráticos pela satisfação de desenvolver atividades filantrópicas e comunitárias para os habitantes de uma região carente e esquecida pelo poder público. “Morar aqui é um exercício de desapego”, compara ela.

Longe das praias que tanto aprecia e da família que ama, o casal leva uma vida sem o conforto que a cidade oferece. Eles não têm geladeira nem televisão na casa de madeira que construíram ao lado do imóvel velho e deteriorado, também de madeira, que ocuparam logo que chegaram à Vila Florestal Céu do Mapiá, no final de 1995, época do ano em que as chuvas se tornam impiedosas na Amazônia. No primeiro inverno, as goteiras da casa não deixavam os novos inquilinos dormir à noite. “Foi um tormento”, lembram.

Apesar de terem construído um chalé novinho e reformado a casa antiga, ainda hoje Edílson e Eliana não possuem banheiro dentro da residência. As necessidades são feitas numa área externa, em local reservado para esse fim. Tomar banho requer um ritual que pode inibir os urbanóides: ir a uma fonte de água, tirar a roupa e se banhar ao relento, tendo como companhia, nesse cenário idílico, pássaros de variadas plumagens e todo tipo de animal encontrado naquela floresta tropical, a maior do planeta.

        O Mapiá é mesmo um lugar de rara beleza exótica e a colocação Flor das Águas deve ser um dos recantos mais aprazíveis daquela comunidade rural assentada numa área de 200 mil hectares, denominada Floresta Nacional do Purus, através de decreto assinado pelo Ibama em 1989. Edílson e Eliana, assim como os demais moradores da vila e colocações que se espraiam ao longo do igarapé Mapiá, cerca de mil pessoas, algumas delas oriundas dos centros urbanos, foram atraídos ao local pelas propostas de vida comunitária e espiritual difundidas por um seringueiro caboclo chamado Sebastião Mota de Melo, um homem que ganhou notoriedade em algumas das regiões mais pobres da Amazônia por atender pessoas doentes e promover curas aonde a medicina tradicional não costuma chegar. Nessas terras, o povo de Sebastião Mota, falecido em 1990, desenvolve plantios, algumas atividades produtivas e experiências de reflorestamento.

Mudança de valores

Um homem transformado no melhor de si. Uma mulher desvendando os labirintos profundos da sua consciência. Ambos renascidos em novos valores de vida. Foi essa a impressão que tive ao reencontrar no Mapiá os conterrâneos Edílson e Eliana, em dezembro de 1999, na segunda visita que realizei àquela comunidade. Eles foram nos buscar de voadeira (barco a motor) na cidade de Boca do Acre (AM), de onde partimos, no dia seguinte, para uma penosa viagem de quase dez horas pelas águas barrentas do Purus e pelas curvas espirais do igarapé Mapiá, cujos trechos interrompidos pela queda de árvores milenares exigiam manobras habilidosas do comandante da expedição, o próprio Edílson, já devidamente familiarizado com as dificuldades práticas com as quais se deparou ao se fixar naquele insólito continente verde.   

(Foi uma viagem rica em tomadas cinematográficas. Borboletas riscavam o céu com um balé colorido, ritmado e harmonioso; nas copas das árvores, famílias inteiras de beduínos pulavam de galho em galho, assustados com o ronco barulhento do motor; aqui e ali, de quando em vez, os mitológicos botos amazônicos anunciavam sua presença; jacarés e tracajás, parentes próximos das tartarugas, descansavam nas margens do rio, esbaldando-se ao sol inclemente).

Ficamos hospedados na colocação Flor das Águas. Nossos anfitriões haviam pisado pela primeira vez na região Norte em 1993, portanto seis anos antes daquele reencontro, ocasião em que estivemos juntos em Rio Branco, capital do Acre. Foi nessa oportunidade que conheceram os fundamentos da doutrina do Santo Daime, uma escola esotérica e espiritualista que a cada dia atrai mais adeptos em todo o país e no mundo afora.

Edílson e Eliana, que também se tornaram daimistas, tiveram contato, no Acre, com a linha do Padrinho Sebastião, fundador e patrono da comunidade Céu do Mapiá, onde agora residem. Não pude deixar de perceber como aqueles amigos estavam realmente se sentido à vontade naquele lugar isolado, diria mesmo inacessível para quem não tem espírito de aventura e força de vontade para enfrentar situações extremas. Estavam felizes, sem dúvida. Em sintonia com a floresta, haviam incorporado o sentimento ecológico que tem como um de seus pilares a vida auto-sustentável e a preservação do meio ambiente. A receita para viver e sobreviver na selva, explicou Edílson, consistia basicamente em respeitar o espaço de todos os habitantes daquele ecossistema.

Essa é a norma pela qual Edílson e Eliana se conduzem. Em suas andanças pela mata, ele já se deparou, várias vezes, com as mais variadas espécies de cobras. - Jamais matei qualquer uma delas, garantiu. Ao contrário, houve situações em que simplesmente ficou esperando o tempo que foi necessário até o réptil escorregar pelas moitas, abrindo espaço para sua passagem.

A rotina do casal é tranqüila mas movimentada. Ele planta feijão e macaxeira. Ela colabora como voluntária com a Ação dos Moradores, Irmãos e Amigos do Céu do Mapiá (Amiama), entidade sem fins lucrativos que promove atividades para crianças (jogos e brincadeiras) e adultos (alfabetização e qualificação, oferecendo cursos de bordados e de cerâmica). Apoiou ainda a criação de uma biblioteca que tinha, à época, 1.250 volumes de todas as áreas do conhecimento humano, formado exclusivamente à base de doação.

Ambos estão engajados em trabalhos espirituais realizados naquela comunidade em favor dos doentes e da humanidade, de uma forma geral, através de cânticos e preces que solicitam a proteção das entidades divinas no trabalho da reforma íntima de cada um e da construção de um novo mundo,  pleno de harmonia, paz, amor e justiça. A solidariedade é moeda corrente naquele lugar ermo, onde uns e outros precisam se ajudar simultaneamente para suprir a ausência dos serviços oferecidos pelo Estado. Quando alguém adoece, os vizinhos e amigos acorrem para prestar assistência. Edílson e Eliana, por exemplo, adotaram um casal de idosos, um dos mais antigos daquela vila, e para ele dedicam toda a atenção, traduzida, às vezes, em recursos financeiros para aplacar suas necessidades.

Com suas atitudes e posturas, os amigos natalenses são exemplos de que ainda há pessoas aptas a desfrutar da vida comunitária, fora do alcance da sociedade materialista, com sua economia globalizada. Edílson, por exemplo, participou de uma frente de trabalho das mais penosas, sem receber qualquer tipo de recompensa financeira. Durante oito meses, em 1998, todo final de tarde navegava com um parceiro pelo igarapé Mapiá e rio Purus, visitando as comunidades ribeirinhas. Treinados pela Sucam e com equipamentos apropriados, combatiam o mosquito transmissor da malária borrifando veneno até o amanhecer do dia. Nos anos seguintes, a incidência da doença que mata sem piedade naquela região caiu vertiginosamente. 

Durante o processo de instalação de energia solar na comunidade, mais uma vez Edílson se apresentou como voluntário. Ele foi um dos habitantes do Mapiá selecionado para compor o grupo que iria trabalhar na instalação dos equipamentos doados pela Organização Não-Governamental Engenheiros sem Fronteira. Ainda hoje é requisitado por uns e outros que precisam de algum serviço nessa área. E ele atende, contente, prestativo.

Origem da comunidade

Sebastião Mota de Melo nasceu em Eurunepé, no Amazonas, em 1920. Iniciado por um xamã, conhecido por Mestre Osvaldo, que mais tarde viria a ser seu compadre, aprendeu, ainda na região do Juruá, a realizar trabalhos de mesa branca, recebendo o espírito do doutor Bezerra de Menezes. Em 1959, já casado com a norte-rio-grandense Rita Gregório, Sebastião retirou-se do seringal Adélia, onde morava e sobrevivia construindo canoas, para se fixar em Rio Branco.

Na capital do Acre, conheceu Raimundo Irineu Serra, o fundador da Doutrina do Santo Daime, nome pelo qual também é denominado o chá consumido em rituais e que tem propriedades que provocam a expansão da consciência, necessária ao processo de autotransformação e crescimento interior.

Da primeira vez que tomou o chá, feito a partir da mistura de dois vegetais encontrados na floresta amazônica (a folha chacrona e o cipó jagube), Sebastião sofreu uma cirurgia espiritual, curando-se de uma enfermidade que os médicos não sabiam identificar. A partir desse momento, passou a trabalhar com o Mestre Irineu, até o falecimento deste, em 1971, quando partiu com um grupo de seguidores para a Colônia Cinco Mil, nos arredores da cidade, onde desenvolveu os princípios da vida comunitária e espiritual que iriam ser expandidos para além das fronteiras da Amazônia.

Nos anos 80, preferiu se enfronhar ainda mais na floresta. Primeiro foi para o seringal Rio do Ouro, próximo ao rio Indimari, no Amazonas, e por fim se estabeleceu, em janeiro de 1983, na Vila Florestal Céu do Mapiá. É lá que está seu túmulo. É lá que está a comunidade cuja liderança cabe hoje ao seu filho Alfredo Gregório de Melo. Seu legado e sua história são cultuados por quantos ali chegam em busca de um caminho que possa levá-lo na direção de si mesmo.