CABEZAS CORTADAS

Uma Dissecação Sócio-Cultural das Carrancas do Maranhão

 

por Eduardo Nixi Päe

 

1 - O monstro é hermafrodita. Parece mais provável que o símbolo hermafrodita provenha de manuscritos árabes ou sírios, traduzidos nos séculos XI e XII. A imagem é primitiva e hermética: o HOMO ADAMICUS que "embora se apresente como forma masculina, traz a fêmea", isto é, a mulher, escondida em seu próprio corpo, segundo o que se lê num comentário medieval do Tractatus Aureus. O monstro é o habitante do mundo onírico, o oponente, filho da força cósmica em estado imediato ao caótico - Nietzsche já nos dizia que "...Quando dormimos e sonhamos, repetimos a tarefa da humanidade anterior..." e o que é essa protohumanidade senão a dos homens da caverna, que conhecemos, e que reproduziram nas primeiras manifestações de Arte que herdamos símbolos da vida, da força, do poder, cuja posse lhes seria ainda indispensável... Nesse mundo de medo, se não de terror, só por um lado havia, é claro, receio de fixar os traços de uma figura humana e permitir que ela ficasse presa de qualquer potência maligna, já que para se aproximarem de animais ferozes se esforçavam por possuirem uma máscara assustadora, fabricada pelo o que chamaríamos seu pajé, cujos poderes infinitos de magia se exprimiam assim em pequenas figuras (talvez de aspecto só parcialmente humano sempre). Psicologicamente não se pode esquecer que a idéia hermafrodita representa uma fórmula de "integração dos contrários". As "carrancas" do Maranhão, como ainda as encontramos hoje, representam notavelmente um símbolo político de totalidade, numa sociedade de enorme divisão onde o homem escravo recebia marca de que o tempo em que existia fazia parte ainda da "idade das trevas".

 

2 - Para os reacionários todas as transformações têm algo de profundamente misterioso e de vergonhoso ao mesmo tempo, posto que o equívoco e o ambíguo se produz no momento em que algo se modifica o bastante para já ser outra coisa, mas ainda continua sendo o que era - por isso as metamorfoses têm que ocultar-se; daí a máscara, esta filha da Noite. Seu refinamento chega ao ponto de aqui serem cinco, como os sentidos hierogâmicos ou a quintessência: por isto o homem tem cinco extremidades e o número cinco inscrito em cada mão e em cada pé descalço até na África. As "donas das águas" não poderiam ser ameaçadas, conjurando os malefícios dos que dela se servissem. Percebe-se facilmente como essa potência seria extrapolada enquanto arquitetura alegórica - a alegoria age justamente enquanto mecanização do símbolo, pelo que sua qualidade dominante se petrifica e converte-se em signo, mesmo aparentemente animado pela roupagem tradicional - prova disso é que o tema continua tendo impulso para um desdobramento criacional em novas formas expressivas até o presente.

 

3 - Um dado muito importante sobre o simbolismo da cabeça, em relação com o significado mítico que nela descobriu o homem pré-histórico num dado momento, é fornecido por Herbert Kühn, em L'ASCÉNSION DE L'HUMANITÉ (Paris, 1958), ao indicar que a decapitação de cadáveres marca o instante em que o homem percebe a independência do princípio espiritual com respeito à totalidade vital representada pelo corpo, e que enterra apenas a residência: conhecer a verdade das coisas é tarefa pura e exclusivamente da alma, afinal. Desta maneira se dissolve em água pura a cabeça do monstro, tempo destruidor. Mas o GRUTESCO em si, como forma e sistema, destaca o enlace da continuidade e descontinuidade, quer dizer a ambivalência (GEMINIS), pelo que se converte na expressão geral do mundo fenomênico e da existência em seu desdobramento, a ela enlaçado. Como no Extremo Oriente, são guardiães, forças que se concentram nos umbrais de transição entre os diferentes estágios de evolução e progresso, protegendo contra os poderes contrários ao poder dos que ela instituíam. Pois segundo traduções mais apuradas do Gênesis, foi naquele segundo dia da criação, ao entardecer, que o Senhor não disse - como nos outros dias - "que tudo era bom".

 

4 - Distinguem-se, já nas culturas antigas, as "águas superiores" das "superiores". As primeiras correspondem às possibilidades ainda virtuais da criação, enquanto que as segundas concernem ao já determinado. O elemento água não vai se deter nem de dia nem de noite, ela nem luta e não obstante nada se lhe iguala em romper o que é forte e duro. Bob Marley aconselhava: "Emancipem-se da escravidão mental - ninguém, a não ser nós mesmos, pode libertar nossas mentes". Por seu lado, a Segurança é uma das alegorias mais freqüentes na maioria das civilizações. Sua presença nas fontes significa constância na adversidade, naquilo que Jung assinalaria como necessidade de quando a vida está inibida, aviltada. Ressoa aqui o tema alquimista de que o vil não deve (nem pode, a rigor) ser destruído, mas transmutado no superior: assim se descobre, por exemplo, que as cinco carrancas maranhenses se basearam na quinta letra dos herméticos, o M, condição andrógina da água em sua origem como o Grande Abismo do inferior.

 

5 - Pode-se presumir o que seja o Grande Abismo do superior, se o "mundo atual" carece sempre de sua própria imagem por esta só se poder constituir através de uma síntese universal de conhecimentos, síntese esta cada dia mais difícil desde o Renascimento que já completa cinco séculos coincidindo com a descoberta do Brasil. René Guénon diz a respeito que "Efetivamente, com demasiada freqüência tende-se a pensarque a admissão de um sentido simbólico deve implicar na recusa do sentido literal ou histórico; tal opinião resulta na ignorância da lei de correspondência, que é o fundamento de todo simbolismo e em virtude da qual cada coisa, procedendo essencialmente de um princípio metafísico do qual deriva toda sua realidade, traduz e expressa esse princípio à sua maneira e segundo sua ordem de existência, de tal modo que, de uma ordem a outra, todas as coisas se encadeiam e concorrem para concorrer à harmonia total e universal". Foi São Paulo quem formulou a noção imediata desse contacto com o visível, ao dizer": "Per visibilia ad invisibilia" (Rom, 1:20). Esse processo de ordenar os seres do mundo natural segundo suas qualidades e penetrar por analogia no mundo das ações e dos fatos espirituais e morais dos povos é o mesmo que se observa desde os alvores da história, na transição do pictograma ao ideograma, nas origens da arte.

 

6 - Quando o "mundo dos homens" ainda não havia sido criado, as irregularidades e os abusos de toda espécie (isto é, tudo aquilo que será denunciado mais tarde como monstruosidade, pecado ou crime) suscitaram, direta ou indiretamente, a obra criadora. No entanto é em conseqüência das suas criações - instituições, leis, técnicas, artes - que surge o "mundo dos homens", onde as infrações e os excessos serão punidos. Esta interpretação psicológica que podemos dar hoje às CARRANCAS é o termo médio entre a verdade objetiva do símbolo e a exigência situacional de quem vive esse símbolo. No estado de dilaceração social em que vive o planeta um homem não especializado no plano artístico estará até mesmo pouco disposto a admitir que o problema duma expressão dita popular se ponha desta forma, pois em geral ele limita-se ao conteúdo manifesto da obra de arte e, na medida em que tomou partido, estará pronto a encontrar-lhe todas as qualidades ou todos os defeitos, conforme ela trabalhe ou não exteriormente a favor da causa que fez sua. Com a imagem do pai correspondendo ao lado consciente, o domínio é o poder do mesmo pai que tem como dever colocar obstáculos à instintividade e à subversão: a resposta é que nesta esfinge, que tanto concerne à natureza, esconde-se o mito da multiplicidade, mas também o da divisão enigmática do cosmo. Maquiavel bem ensinava o Príncipe a "aceitar conscientemente a própria animalidade". Resta lembrar que num regime escravocrata não poderia existir verdadeira justiça social jamais.

 

7 - Reconheceu Lévy-Bruhl que muitos dos traços da chamada mentalidade primitiva se encontram em populações ou grupos sociais das civilizações ditas industrializadas e urbanas; esse reconhecimento não implica a negação do contraste entre as duas mentalidades, bem pelo contrário (ponto que geralmente passa desapercebido), antes leva a relacionar a vida mental com as condições sociais e conduziu à noção da arqueo-civilização. E mais, apercebemos-nos que a nossa civilização alfabetizada, urbana e industrial não o é senão em certos setores e que no seu seio coexistem idades mentais da vida da humanidade muito diferentes. É sem dúvida uma ingenuidade supor que o fabrico ou as atividades práticas obedeçam a uma "lógica" única, pelo fato de serem eficazes, de se inserirem no real. Na vida animal e sua evolução na escala mental, como aliás na criança, distinguem-se vários níveis e estágios; a própria percepção depende já da conduta, da ação; as primeiras condutas são simples reorganizações do campo perceptivo, passa-se depois ao esquematismo, em terceiro plano só ao conceito e à classificação qualitativa, e depois à operatória relacional. Cada nível é dirigido não por "princípios lógicos" (pois se trata de pensar efetivo e não de formalização) mas por todo o contexto, em configurações dinâmicas em que entram - e que são orientadas e matizadas por afeições e por estereótipos, e até por arquétipos do inconsciente individual e coletivo (isto sem o supor uma realidade substancial). O que queremos dizer é que não há "lógica" nas carrancas, mas apenas "pré-lógica", enquanto o pensamento nunca passa do MYTHOS ao LOGOS, e se há esse problema da natureza humana que nos distingüe dos outros Primatas superiores, não implica isso a imutabilidade de tal natureza.