Música, Corpo e Linguagem

 

Por Laerte Willmann

 

Sufismo, música, respiração, palavra e canto

        Para os Sufis, não existem as distinções que nossa cultura construiu em torno de respiração, voz, palavra, canto, etc. Joachim-Ernst Berendt, em seu interessantíssimo livro sobre música chamado ‘Nada Brama’, diz: "O que torna os Sufis importantes para nossa coerência é seu bem desenvolvido senso do som e da música. A ambos eles chamam de Ghiza-i ruh: alimento para a alma. A transição do som para o mantra e para a palavra e, destes dois para a música e a poesia é ininterrupta na mente dos Sufis."

        Na verdade, para os Sufis essa transição incessante inicia-se antes, com a respiração. Inayat Khan, diz: "Ao estudar a ciência da respiração, a primeira coisa que notamos é o fato de ela ser audível; uma palavra em si, pois o que chamamos de palavra é só uma manifestação verbal da respiração produzida pela boca e pela língua. Mediante a habilidade da boca, a respiração se faz voz, daí porque o estado primevo de uma palavra é a respiração. Se dissermos: ‘No início era a respiração’, isso é o mesmo que dizer ‘no início era o verbo’. O primeiro sinal de vida de que se tem conhecimento é o som – e som também é palavra. Para a filosofia Vedanta da Índia, ambos – som e palavra – são idênticos. Em todas as eras, os iogues e videntes da Índia adoraram o deus da Palavra, ou o deus do Som... Toda a ciência ocultista e todas as práticas místicas fundamentam-se na ciência da palavra ou do som... Há palavras que ecoam no coração; e há outras que ressoam na cabeça. E há outras ainda que exercem um poder sobre o corpo." (Inayat Khan – nada brama, p. 46)

        Para os Sufis, a respiração é a base de todo o comportamento exterior. Palavras e gestos têm origem e são modulados constantemente pela respiração. A base da observação de si mesmo é a observação da respiração. Sem ela a observação se torna analítica e se perde nos detalhes. Com ela tudo se unifica e podemos observar a motivação interior de todo comportamento humano, ou seja, sua origem mental, pois a mente molda a respiração e esta molda o comportamento externo.

 

Coordenação entre gesto e voz

        Na origem da linguagem humana, existe total coordenação entre gesto e voz. Em todas as culturas orais, assim como nas crianças ainda não alfabetizadas, podemos observar que, na comunicação, o corpo e a voz fazem parte de um mesmo movimento de exteriorização. Mais tarde, com a alfabetização, passa a existir uma cisão entre palavra e gesto.  Claro que não falamos apenas do aprender a ler, mas de todo o longuíssimo processo de educação baseada em décadas de imobilidade física, sentados em cadeiras acompanhando letras no quadro e no papel (Claro que essa é uma visão de dançarino...). Ainda que aqui e ali se fale em mudanças nos métodos de ensino, o processo como um todo jamais deixa de estar subordinado a essa dependência das cadeiras e mesas. Se isso parece tão natural à maior parte de nós é apenas porque aceitamos o fato como natural, mas não há nada natural em passar anos da vida sentados em cadeiras acompanhando letras impressas.

        Através de filmes do comportamento e da comunicação humanas, estudos feitos por psicólogos demonstraram que existe uma dança de micromovimentos sobre o qual se colocam as palavras do discurso. A habilidade de harmonizar esses movimentos a conferir à comunicação o tom adequado é uma das características daquilo que foi denominado recentemente ‘inteligência emocional’. Nosso sistema educacional, no entanto, reduz fantasticamente o potencial das pessoas de ter consciência e saber usar a inteligência emocional. Perdemos de vista o fato de que as palavras se originam de uma dança de movimentos em que a respiração se torna audível. As palavras se tornam coisas, coisas impressas e imóveis.

        As danças para a maioria de nós, alfabetizados, permitem-nos readquirir a alguma habilidade de coordenação entre os dois componentes da comunicação, o corporal e o verbal. Essa habilidade confere graça e harmonia à comunicação.

        Em nossa cultura atual, a alfabetização precoce cinde na criança as habilidades da mente, da emoção e do corpo, que deveriam funcionar em sinergia. Existe uma relação indissociável entre andar, falar e pensar. A criança primeiro aprende a andar, compreendendo-se este andar como os movimentos em geral, todas as coordenações possíveis de membros e corpo. Sobre essa base é que se constrói o falar. Neurologicamente, a fala está ligada às coordenações motoras. Qualquer problema na primeira fase, o andar, ira refletir-se na segunda, o falar. Por sua vez, é com base nas estruturas neurais adquiridas no falar que se adquire a capacidade para o pensamento.

        Com a alfabetização universal, nossa sociedade iniciou um experimento novo na história do ser humano. Esse experimento é totalmente invisível, pois as forças de doutrinação da sociedade tornam sua aceitação praticamente universal. Ou seja, não se pode pensar sobre o assunto, pois se tornou como que uma verdade auto evidente. No entanto, seria útil pensarmos nisso. No contexto da história humana é um experimento inédito e de conseqüências desconhecidas por aqueles que a aplicam. Antigamente, apenas os escribas aprendiam a escrever, isso era uma função especializada, E nunca se confundia escriba com sábio, pois se aprendia sabedoria de outra forma. Só na nossa cultura se pensa que alguém fica mais sábio ao aprender a ler e escrever. Evidentemente, uma vez que entramos nesse caminho e passamos a registrar todas as informações através da escrita, é necessário aprender a ler e escrever para participar do processo, como agora você está lendo isso tudo. Mas, por outro lado, para entender o estudo no qual estão envolvidas as Escolas Sufis é preciso saber que suas características são as das assim chamadas culturas orais. Que na verdade não são exatamente orais, são integrais, pois a oralidade acontece no contexto da comunicação com o corpo inteiro.

        No Ocidente, iniciamos com a alfabetização um processo diferente em termos das fases do amadurecimento do pensar. No processo tradicional, as impressões geram sensações, estas geram noções, que levam por um processo crescente de generalizações, até os conceitos. Em nossa cultura atual, os conceitos deixam de passar pelo corpo, saltam-se todas essas fases e eles passam a ser programados diretamente no cérebro. Isso acelera enormemente a aquisição de novos conceitos e, aparentemente desenvolve o pensar, mas isso é apenas aparente, na realidade apenas armazenamos uma enorme quantidade de conceitos. E o principal resultado negativo disso é que dissociamos pensamento e ação. Isso tem conseqüências éticas muito graves, cujos resultados vemos hoje no mundo.

        Uma das mensagens de diversas tradições, quando falam da tríade ação, palavra, pensamento é a de que palavra correta, ação correta e pensamento correto são as bases da uma vida equilibrada e harmônica. A cultura espiritual Sufi nos fornece materiais de trabalho para voltarmos a descobrir a harmonia entre palavra, gesto e pensamento. A narração de histórias, a leitura de poesia, o canto em grupo, as danças cantadas, tudo isso produz um efeito profundo na alma. Quando nos aprofundamos nessa cultura, temos a oportunidade de adquirir qualidades que existem nas culturas orais e nas crianças: nossa comunicação fica mais espontânea, nossos gestos mais harmônicos, nossas palavras mais profundas, nossa vida mais rica.

        Isso tem um significado profundo com relação a nossa vida interior. Pois o caminho espiritual Sufi não é um caminho de negação da vida, de ascetismo radical que abandona a matéria, e sim um caminho de espiritualizar a vida, torná-la mais bela e harmoniosa. Porque quando nossa vida se torna mais bela e harmoniosa ela passa a ser realmente uma imagem e semelhança do divino.

 

Rito e Beleza

        Ao longo desse livro, apresentamos inúmeros exemplos dos elementos que compõe as danças. A consciência da presença, a atenção à respiração, as formas de caminhar, o uso da voz, os mantras e outros elementos são como as letras de um alfabeto. Mas, conhecer o alfabeto é apenas o passo inicial, o interessante é aquilo que podemos criar com ele. As danças são como poemas, mas os ritos e cerimônias são os livros. E a arte Sufi do uso da palavra só pode ser inteiramente compreendida e vivenciada em seu contexto total, que  são os ritos e cerimônias.

        Quando as danças foram (re) criadas por Samuel Lewis, elas eram o produto final. Mas, com o tempo, à medida que uma série de dançarinos iam continuando o trabalho de Lewis, começaram a ser recriados também ciclos de danças. Existem diversos ciclos, como o das palavras do ‘Chief Seatle’ de Anahata Iradah, As ‘21 preces de Aria Tara’ de Prema Dasara e ‘As Orações de Jesus em Aramaico’ de Saadi Douglas Klotz.

        Alguns são como rituais que utilizam danças, musica, meditação, fala, etc. O Sufismo clássico já teve esses rituais, cada ordem sufi tem os seus, mas o Sufismo Universal é um filho mais novo do Sufismo, seus rituais ainda estão se formando. E por mais belos e profundos que sejam os rituais do Sufismo Islâmico, eles só têm ressonâncias interiores para os muçulmanos. Por essa razão, outros rituais têm sido criados.

        O papel crucial da linguagem na evolução humana não foi a capacidade de criar idéias, mas o aumento da capacidade de cooperação. Nas cerimônias coletivas temos a atualização dos mitos de uma Tradição e da capacidade de cooperação de todos os participantes na capacidade de cooperar para manifestar o mito em escala planetária, transformando o mundo com base na visão mais ampla possível, no sonho coletivo da espécie humana.

        Nossa época baniu para o terreno das superstições os antigos rituais religiosos. Em parte isso se justifica, pois nossa sensibilidade não aceita mais os rituais vazios, baseados em crenças sem sentido. No entanto, nossa época está sendo invadida por novos rituais de baixíssima qualidade. Com o nome de diversão, esporte, patriotismo ou até mesmo ‘arte’, os novos rituais exibem imagens grotescas, abusando de pornografia, violência, preconceito, crueldade.  

        Isso significa que o homem não vive sem os ritos, se não os encontra de qualidade os reinventa como farsa. O que o Sufismo tem para contribuir nesse assunto é o fato simples de que para lidar com o rito é preciso ser artista.

        O fundamental na dinâmica do rito é a mudança de consciência. Existem muitas formas de fazer isso, e inclusive nem todas tem que se basear em movimentos lentos e cantos profundos; é possível usar os mais variados padrões. Pois qualquer mudança nos ritmos e padrões da comunicação habitual é potencialmente boa para alterar a consciência. Mas apenas potencialmente, é preciso se assegurar de todos os componentes essenciais para que isso realmente se verifique.

        A forma que os Sufis usam é apenas uma, mas como esse livro trata dela, e não de outras formas possíveis, vamos refletir um pouco a respeito dela. A maneira Sufi é usar a palavra, a palavra iluminada. E, como já vimos, a palavra não é iluminada apenas por se referir a assuntos que a sociedade chama sagrados. O que a sociedade acha do sagrado é freqüentemente irrelevante. A  Palavra tem a vem com entonação, com beleza, com poder que vem da sinceridade.

        Rito está ligado, em grego a ritorika, de onde vem retórica. Existe uma maneira de usar as palavras e os gestos que pode induzir alterações de consciência. Essa maneira às vezes está associada com manipulação, mas não é esse nosso assunto no momento, pois estamos falando do uso dessas mesmas coisas por pessoas que tem um comportamento ético impecável. Os Sufis que usam a palavra iluminada na realidade estão apenas tentando evocar nos ouvintes um estado de lembrança. Eles sabem que não podem colocar nada na mente de outras pessoas que já não esteja ali, podem apenas procuram lembrar o que foi esquecido. Através das palavras, seu objetivo é evocar configurações luminosas na consciência. Esse estado de intensificação de consciência pode ser como um sonho acordado. Memórias são deflagradas por ele. Ele atualiza estados de consciência. Atualiza o passado e o futuro, pois ambos estão juntos fora do tempo. Os Sufis aprenderam a usar a palavra dessa forma não enquanto buscavam poderes ocultos, mas enquanto buscavam com sinceridade o significado das palavras, lendo livros sagrados em voz alta, cantando suas palavras, deixando-se embalar pelos significados, usando instrumento e música para sugerir o ritmo, trabalhando em conjunto com o estado de consciência. As Danças cantadas são parte dessa tradição.

 

DANÇARINOS DA PAZ O  MISTICISMO DO SOM