O Pajé branco

 

 

Por Moura Neto e Marcelo Bolshaw

 

Em dezembro do ano passado, o Rio Grande do Norte perdeu para sempre mais um de seus heróis anônimos: Severino Laurentino Dantas, raizeiro nordestino com pós-graduação na floresta, curandeiro amado e respeitado em toda região do médio Purus, faleceu aos 97 anos no município de Boca do Acre (AM). 

 

A HISTÓRIA

Em 1942, o então jovem Severino Laurentino Dantas, natural de Florânia , no Rio Grande do Norte, embarcou para Amazônia, trabalhou na estiva em Belém por seis meses e finalmente chegou a região do médio Purus como soldado da borracha. "No primeiro dia que passei na floresta, chorei como uma criança" - recorda. Nesta época, ele era apenas mais um migrante sonhador de um exército de nordestinos que o governo federal brasileiro arregimentou para coleta de látex durante a segunda guerra mundial.

Morava pertinho da aldeia Apurinã, no Igarapé Luzitânia, nas proximidades de Lábria (AM), quando fez amizade com o pajé Zé Muniz, em 1945. "Para ser médico da floresta precisa estudar muito sem ver um pé de gente", havia lhe dito o indígena. Seu Severino, já afeito à vida árdua do mato e conhecedor do uso medicinais e ervas desde dos tempos de criança no nordeste, aceito o desafio e passou cinco anos junto com o pajé apurinã sem ter nenhum contato com a civilização. "Os caboclos, naquela época, andavam meio massacrados. Eu dava roupa para o pajé e ele começou a gostar de mim. Eu não conhecia a floresta e pedi para que me ensinasse a trabalhar com os vegetais da Amazônia. Depois de cinco anos longe de tudo, saí desenvolvido da floresta " - recorda Severino.

Severino Laurentino se tornou um dos "raizeiros" mais conhecidos da baixa Amazônia ocidental, passando a atender não só aos apurinãs , que ficaram sem pajés uma vez que as novas gerações não se interessam pelo ofício, mas também a toda população ribeirinha do médio Purus, um dos maiores rios da Amazônia. Ele, no entanto, evita falar das curas que realizou. Prefere, ao invés disso, falar das curas que ele mesmo recebeu como a cura de um derrame cerebral (que o havia paralisado completamente) através da Ayahuasca ou de sua extraordinária recuperação de acidentes, como na vez que levou um queda de um barranco de 15 metros. Quebrou o braço, quatro costelas e clavícula. O médico o engessou todo. Ele, porém, tirou o gesso, sem autorização e se curou com uma garrafada feita com a mistura de nove plantas: jatobá, copaíba, jucá, sucuba, brijuí, chapéu de couro, catuaba, nego seco e chachuarra. "A floresta é um ser vivo. Cabe ter o dom da fé, dentro da pessoa, para pedir a cura. Sem essa força interior, não fica bom"  - explica. 

Talvez em decorrência do entusiasmo e dedicação com que se entregou ao estudo da floresta, seu Severino constituiu família tarde. Casou quando tinha 56 anos, mas não perdeu tempo. Sua mulher Rosaline lhe deu 14 filhos. Destes, no entanto, apenas o caçula, Rosimar, se interessou pelo ofício do pai e aprendeu sua arte, perpetuando seu conhecimento.

Em 1993, quando nos concedeu esta entrevista, seu Severino estava com 88 anos e uma juventude de dar inveja: uma disposição de menino e a sabedoria de um ancião. Havia, então, finalmente conseguido sua aposentadoria como soldado da borracha e morava em uma choupana em 'Terra firma', localidade vizinha à aldeia Kamicuã, dos apurinãs, no município amazonense Boca da Acre, onde desenvolvia uma horta e um herbário de plantas medicinais da Amazônia. Era dali que ele retirava o sustento. Sua ambição, porém, não é de fortuna pessoal. "Eu queria mesmo é que o prefeito de Boca do Acre arranjasse um barco para que pudesse subir e descer o rio tratando do povo doente. Aqui dentro da Amazônia, os homens não estão ligando pra quem está em situação precária; só querem se engrandecer e os pobrezinhos ficam morrendo à míngua."

Nos últimos dez anos, soubemos que seu Severino Laurentino seguiu com seu trabalho de curandeiro e pesquisador, sendo um dos fundadores da ONG Centro Medicina da Floresta (CMF), que além de atender as populações mais carentes da Amazônia desenvolve também estudos sobre remédios naturais e produz artesanalmente medicamentos e florais.