A MAGIA DO AYAHUASCA

Artigo de Eduardo Bayer publicado originariamente no Jornal “O Rio Branco”, de Rio Branco – AC, em 28 de maio de 1995 – pág. 9.

 

                      O Humanismo, que hoje norteia as principais ciências do planeta Terra, resultou de um estudo profundo da antiguidade grega e romana, enquanto pilares da civilização ocidental, comparada com outras civilizações ainda existentes, como a chinesa ou a hindu, ou já extinta como a dos maias e incas

                      Possuir uma visão humanitária significa mais do que olhar os outros seres humanos com uma compreensão da irmandade da espécie humana, mas também estudar as relações existentes entre as formas de conhecimento elaboradas por cada um povo. No caso da cultura acreana, queremos nesse artigo explicar o que é magia, e porque o ayahuasca dos nossos sertões é considerada uma bebida mágica.

                      Os fluidos da Natureza podem ser classificados em três qualidades: magnética e puramente terrestre (física), vital e principalmente humana (psique) e essencial e geralmente cósmica (celestial). A Magia é a ciência antiga que trabalha com essas manifestações de energia, sendo uma Ciência do Amor, e também a Ciência do Verbo. Segundo o dr. Baraduc o Verbo, ou seja, a Palavra, “chega a modificar a vitalidade visceral e psíquica do indivíduo e, sucessivamente, tornando-o subjetivamente doente ou bem de saúde”.

                      Platão apresentava a Magia Natural dizendo ser esta o conhecimento das coisas ocultas pela conjunção, participação e associação, verdadeiramente feitas, do agente com o paciente, isto é, do céu com a terra. A Magia seria o meio pelo qual, dentro das medidas permitidas pelas possibilidades, a engenhosidade humana se serviria das energias existentes no Universo, sob qualquer forma que estas sejam. E já eram bem diferenciados, na Antiguidade, os teurgistas (Epoptas, ou Reis Magos) dos magistas (Mystes, ou sábios, místicos) e dos feiticeiros (estes os adivinhos, “mágicos”, faquires...) – sendo que a Iniciação nos mistérios da Magia existia como um núcleo da intelectualidade dos povos, existindo os Colégios Iniciáticos para uma Elite dedicar-se à Alta Ciência.

                      A Magia, portanto, pode ser considerada a Física inicial, enquanto a Alquimia foi a química primeira e a Astrologia a Astronomia antiga. O Magista, equivalente ao Mestre (Magister) e ao Sábio, chegou a ultrapassar o domínio do concreto, onde são consideradas as forças ordinárias da Natureza, e dedicou-se ao invisível, passando a abordar as regiões onde se concebe a existência de energias diretoras do Universo.

                      A operação mágica passou a empregar uma forma de energia cósmica, um fluido imponderável ou invisível, com a finalidade de obter-se um resultado sobre um ponto preciso. A ação de Deus (teurgia), como ato da potência divina, tinha assim efeito de uma energia superior, com entrada da própria potência em ação, resultando na Magia (Mageia) que através da maceração, cozimento, e grandeza, criou a Medicina tradicional.

                      Aqui na Amazônia, além do conhecimento de diversas plantas curativas, temos o exemplo de uma bebida que é o ayahuasca, de provável origem inca, onde a combinação de duas plantas – o caule de um cipó e as folhas de um arbusto (Jagube e Rainha, na tradição do Santo Daime) – produz um “vinho” que o pajé utiliza para diagnóstico e potencializador de uma cura mágica, através do tabaco ou da intercessão de energias do mundo espiritual que realizam a limpeza necessária no indivíduo enfermo.

                      Erradamente, o estudo científico do ayahuasca foi primeiramente conduzido policiescamente por meio do Conselho Federal de Entorpecentes, do Ministério da Justiça, já que o êxtase inerente à visão do sagrado, presente na bebida, facilmente poderia ser confundido como uma mera viagem psicodélica, e não como uma experiência de autoconhecimento profundo onde se poderia visualizar as origens, físicas ou psíquicas, de uma determinada enfermidade.

                      O correto hoje seria que a Organização Mundial de Saúde, enquanto entidade internacional, viesse a ser contactada para um efetivo acompanhamento dos trabalhos de cura realizados com a bebida tanto em seitas religiosas quanto em tribos onde ainda se tem um purismo de sua utilização, como no caso dos índios kampa.

                      Lopes Davi, pajé kampa do Rio Envira que entrevistamos no Museu da Borracha, declarou assim: “Veja bem, o cipó, dá pra viajar longe, pra ir ver... Até o cipó dá pra ver Deus. Cipó que deixou, isso aqui é Deus. Qualquer que tomar, pode. Nós vê Deus em cima também. Ficava bem bêbado já, aí você sai pra fora, aí tu vê no céu – já está baixando já, bem baixinho já. Aí pode olhar, pode ver: nasceu lá em cima. Aí o cipó diz: está vendo, lá em cima? Esse é Deus. Pode ver bem pertinho. Pode animar você, agradar dizendo: tu canta bem bonito. Canta com vontade que Deus está vendo. Toma cipó pra ver Deus. Que quem deixou o cipó foi um índio que disse que se você ficar doente, cura com ele. Só não dá pra curar se você não aprende nada”. Isto é muito interessante, porque se combina com toda a tradição da humanidade que a Antropologia já vem estudando há um certo tempo.

                      “O grande espírito de Zeus se compraz com os hinos que se hineiam” – assim já era na antiga Grécia, a grande percepção da totalidade desse Canto. O Canto se expande na Casa da Divindade, para júbilo e esplendor: o Ser é o encanto das vozes, e as vozes não são outra coisa que a múltipla presença do Divino. A linguagem é uma estrutura que encerra para o homem não só todos os eventos e todas as relações possíveis entre eles, mas ainda a própria consciência que o homem tem de si e do mundo.

                      A consciência é o círculo absoluto que encerra todos os eventos e entes possíveis – o âmbito da consciência, na imediatez concreta do pensamento mítico, cinge o âmbito do mundo. O hino do Santo Daime diz então: “Examinar a consciência é a primeira lição, ter firmeza e ter amor e amar os seus irmãos”.

                      Deduzimos assim: o indizível (Deus) pode ser visionado (individualmente) dentro de determinada norma (ritual) de experiência coletiva. O universo coletivo se realiza em cada indivíduo. A cura coletiva se realiza individualmente. Quantas doenças não existem hoje que são como que chagas da humanidade? Nisso todas as religiões parecem concordar, e deveriam compreender que a linguagem, sendo objeto de uma experiência numinosa (da luz do nome) arcaica, encontra-se no ayahuasca acreano através de canções que são veículos de uma concepção de mundo, e suportes de uma experiência numinosa.

                      Na Grécia, o Poeta-Cantor (Aedo) representava um cultor da Memória, tal qual o pajé do Alto Envira ou o chefe de igreja daimista de qualquer parte do Brasil: o canto é nascido da Memória, no sentido religioso e na eficiência prática, e se a relação mágica do nome representa a coisa nomeada num fluxo, as palavras são forças divinas que não se esgotam.

                      “Para mim é comum donde eu comece pois aí de novo chegarei de volta” – é o que dizia Parmênides, com significado que permanece na História do Mundo. Dar valor a esse estudo, hoje em dia no Acre, é empenhar-se no resgate de nossa verdadeira Memória.