A ESCRAVIDÃO COMO OPÇÃO

 

Eduardo Bayer

 

                  O uso abusivo da liberdade, entre os seres do grupo Hominídeo, gera neles uma opção pela escravidão.

                  Desde o início da organização da espécie, as crias estiveram sujeitas à lei do Matriarcado ou Patriarcado uniformes. Para o controle da população, estruturaram-se leis, de um código moral simples. Pela base, buscou-se eliminar as superfluidades, e colocar como “establishment” uma lei que privilegiasse os mais dotados; desde então, pela inteligência.

                  A criação do interdito nominal, entretanto, beneficiou a prática da contravenção, já que o interdito real estava longe de ser praticado, e os que não eram mais aptos em uma coisa queriam ser os mais aptos em outra coisa. Mulheres e homens, por esta ordem, contrapuseram-se ao Estado, em atitude de rebeldia que se tratava então de uma forma de vigilância quanto à manutenção dos objetivos supremos da Sociedade: a Liberdade, em suma.

                  Sub-reptícia, mesmo durante a manifestação religiosa ( se nos atemos ao mundo ocidental, o catolicismo), a prática dos “crimes nefandos” constituiu-se num anti-ritual, anti-Estado, anti-Igreja enquanto Estado. Sade é testemunho da virulência encarniçada que opunha o espírito revolucionário, desenfreadamente, às instituições e às autoridades. A rebeldia passou a ser o tempero obrigatório à juventude, assimilando as características saturnais dos cultos pré-pagãos. O verdadeiro paganismo, contra a Natureza desde que não se conhecia nenhum paraíso, começava então.

                  Descrevo assim, por alto mas com as indicações precisas que os investigadores da Antropologia possam avaliar, o fenômeno da contestação anárquica que caracteriza a nossa época pós-Revolução Industrial, já que o fermento revolucionário levedou a massa (fig.1).

                  O azedo resultante, característico da poluição ambiental e da putrefação em todos os níveis, causa a intoxicação da Europa moderna e da Grande América, como esta se considera com suas asas de águia sobre as repúblicas das bananas. A Moderna Roma se privilegia do status republicano para infligir o totalitarismo disfarçado em ajuda humanitária. A tendência do Estado Moderno é o absolutismo, reinterpretado pela parafernália tecnológica de longo alcance.

                  A catástrofe é planejada por um mecanismo psicológico do ser humano que o predispõe à autodestruição em caso da perda do seu ego primeiro, ou seja, da sua honra (ou inocência). No ato da criação, algo programou o ser humano para a sua autoliquidação caso a espécie como um todo viesse a prejudicar o seu próprio bem-comum. Na perda da paz, os fusíveis transformadores do ser humano lhe indicam a saída oposta. É o símbolo da cobra mordendo o próprio rabo (fig.2) : a enredagem do vício, e o seu resultado ineficaz.

                  Como castelo de cartas, as apostas financeiras não sabem desmoronar, mas rolam as dívidas como pedras para cima da ladeira. Mesmo que cheguem para construir alguma fortificação, sabemos que sobraram ruínas para não contar a história. O homem, envolvido por esta ciranda do dinheiro, em que o proletariado burguês mastiga as migalhas, acaba se denominando anti-escravocrata mas sendo escravo por opção. Em falta de uma estrutura social que lhe apazigüe, o homem mais falto de juízo, condicionado que está por um sistema de valores “selvagem”, isto é, antiético, antihumano, descamba para a escravidão.

                  Esta é a escravidão hodierna, que abarca desde o menino decrua até o menino das elites (fig.3), quando forja o individualismo não-crítico, e provoca a resenha frustrada dos não-parlamentares. De grande a pequeno, o sistema se beneficia da ignorância de muitos, julgando reproduzir o Estado Patriarcal originário, quando na verdade não passam de uma imitação grosseira e mal-articulada, posto que serve de fantoche ou espantalho, e os corvos continuam no milho. Sem a presença humana, ou seja, de um homem de verdade, cuja paráfrase continua sendo o Cristo, poisa isento de valores negativos que prejudiquem a sua análise comparativa, o resultado do planeta Terra será a sua anulação. Se dois e dois são cinco, dois menos dois nunca será o menos um, mas equilibrará redundante no prato zero.

                  Reavaliando, o que surgiu no princípio como protesto, derivou em delinqüência, e granjeou a deriva do ser humano. Cabe aqui perguntar se quem surgiu primeiro foi o ovo ou a galinha – posto que devemos querer saber se foi o Estado quem transigiu primeiro a seu próprio favor, prejudicando o Homem, ou se foi o Homem quem se fez primeiro, prejudicando o Estado. De qualquer forma o álibi da revolução (fig.4) serviu a causas materiais de foro íntimo de cada “pulsionista” do desejo – de ouro, de carne, de morte, ou de sexo em todas as suas gamas. Nero plus ultra.

                  O uso abusivo da liberdade, portanto, caminhou com a sociedade como contestação à “libertação pelo sofrimento”, a qual foi representada pelo Cristo na Via Crucis (fig.5). Fomentou-se então a “libertação pelo prazer”, e os artistas, como voyeurs primeiros, laurearam-se com a prostituição dos símbolos visuais: causa pela qual o Imã proíbe as representações da Natureza, já que toda ela, em seu resplendor originário, é figuração do Divino. Nessa primeira manifestação dos direitos autorais, os sacerdotes do Islam permitiram divulgar a palavra, mas controlaram a representação, como substantiva do pecado ideológico “homem mais do que Deus”. O que Deus não criou por ele mesmo, não fosse criado pelos homens senão como engenho fantasmagórico, portanto abjeto (fig.6). Prevaleceu esse afã espiritual, contrapondo-se à arbitrariedade de quem lograsse chegar à posição de autoridade e com isso julgasse poder “cagar” regras, ou seja, sujar a prática com um “eu” sem limites. Exemplo seja a descendência de Davi, que enlameou a história de Israel, pois Cristo veio a figurar como filho de Davi apenas por consideração à nação de origem, já que em verdade assimilava a pessoa do pai de Davi, o seu conformador.

                  Retornando ao símbolo da Cruz, vemos que num redemoinho o homem caminhou lado a lado com Cristo para blasfemá-la, ou seja, para indignar-se como se esta fosse a condição sine qua non da liberdade insurgente contra as razões do Estado - e o Estado Eclesiástico foi causa dessa repulsa, mascarando os malfeitores da sociedade, desde que privilegiosos (fig.7). Ao assim rebelar-se, o homem caiu na esparrela de fazer-se escravo de si mesmo, para logo em seguida tornar-se servo de um anti-Deus qualquer que poderia ser o dinheiro ou qualquer outro vício de acumulação contínua e ad infinitum – ou até a morte, posto que o mais-além não contavam nem conta, quando se fala de ciganos do pó, ou de lenocinistas desarvorados pois compradores do ócio. Lembremos que a Lei da Física prova que, ao se fazer um esforço descontrolado e desmedido contra um obstáculo, o Vetor acaba por ser jogado contra si mesmo, no sentido oposto às suas intenções – como quem jogasse contra uma porta fechada e acabasse caindo para trás.

                  Rimbaud – o poeta Arthur Rimbaud (fig.8), é paradigma deste mal da civilização. Como uma flor, aprisionada pela civilização, praticava a liberdade desqualificada em nome da retórica do bom-tom paisano, “gaté” e “anti-anti-tous”. O explorador da paixão perversa fez-se então escravizar por outro homem, e desde que teve de padecer a sua falta, decidiu-se escravizar então a uma civilização contrária, e de termos mais permissivos, a fim de ser escravo do seu próprio escravo, e negar o próprio amor, o que o deixou estéril inclusive para a literatura, que tinha sido a sua prenda mais querida, antes que se iniciasse nos prazeres do auto-canibalismo. No final, comeu-se com a boca e terminou-se numa cloaca, mas as pegadas do seu caminho ficaram na história, como monumentos semelhantes aos do chão de Nazca, no Peru (fig.9) – sem ter para onde ir quem não for o seu próprio autor, e decifre as coordenadas de um outro espaço.

                  O mal-estar da civilização, portanto, decorre desta encruzilhada do destino. Ou sacrifica-se o Estado à causa do homem comum, ou o homem comum, e com ele todas as elites como lastro, serão sacrificados como bodes turrões no altar do Estado egóico. A Educação, sentença maior da velocidade de desenvolvimento da humanidade, - desde que os gregos inventaram a noção de Cultura como um conjunto de valores representativos da ideologia prática de cada povo, e fizeram da Cultura a sua respiração (como se cultiva o próprio ser) - , está na atualidade marchando contra o povo (Populus simplex, ou, por assim dizer, “The Simpsons” - fig.10) adjetivando-o de valores menores e corroborando a prática da mentecaptalização massiva, já que o Estado privilegia sempre objetivos secundários, combatendo o mal pelas folhas quando este se encontra imiscuído é nas raízes.

                  A mudança fundamental está no Amor, que é o solo fértil que nomeou “Adam” e outros mitos similares insuflados em toda parte do planeta. O Amor não escraviza ninguém, antes liberta: a semente plantada assim, nasce e dá boa produção. O Amor não defrauda ninguém, antes esclarece, dá entendimento, e busca o aperfeiçoamento. O homem que tiver Amor como parte-príncipe de seu funcionamento, e lutar para alcançar seu objetivo de paz, desarmará a bomba-relógio, mesmo que para, através de si, resgatar uma mera fração da humanidade.

                  Uma fração, diante do zero, cambiará em uma totalidade, e dará por resolvida a sua questão.

 

Cusco, 02 de março de 1995.

 


Ilustrações:

1) Ruso com mascara anti-gases: el desfrute del aire, una subvaluación de un derecho humano.

2) Decifrome o me devoro.

3) Michael Jackson, para libertarse de la esclavitud de su color, alcanzó ser un ídolo incolor: un ídolo de sí mismo.

4) La imágen de la Revolución: la inercia provoca siempre una reacción, y así se desmoronan imperios como el Sovietico.

5) La caida del Cristo – el materialismo no soportó la exigencia del sufrimiento, mas terminó por sufrir igual, en búsqueda de una finalidad.

6) La fantasmagoría de la pantalla – Chaplin prueba el ocio como parte del engrenaje: un sueño dorado.

7) El papa Alejandro, Borgia, ejemplo de la carrera funcional del Estado Eclesiástico: el sacerdocio como una profesión de lujo.

8) Rimbaud no era un rebelde sin causa, sin embargo la há perdido por condenarse.

9) La Araña – Las líneas de Nazca suman puntos en la horizontalidad.

10) Papá Simpson trabajando en la fabrica de uranio.