Encantamentos do Desencanto


 

Em homenagem à professora Jussara R. Araújo

 

Marcelo Bolshaw Gomes

 

Certo dia, pelo início do século XVII, o filósofo e matemático francês René Descartes teve um sonho. Sonhou que o Universo era um gigantesco relógio e que Deus era um relojoeiro. Desde então recusou as explicações escolásticas de que eram as virtudes humanas que determinavam os acontecimentos e que as forças divinas atuavam diretamente sobre o destino humano.

E foi este sonho que fez com que ele orientasse toda sua pesquisa racional. Os autores contemporâneos (Lucien Goldmann, Frijtoff Capra e Edgar Morin, entre outros) criticam o pensamento cartesiano em seu aspecto racionalista (o método da dúvida sistemática, a dissociação do tempo do espaço nos eixos cartesianos, a idéia de plano geométrico dissociado do espaço real), mas desconhecem o aspecto simbólico da proposição enunciada por Descartes.

Na verdade, o "cogito" (penso logo existo) é um ATO DE FEITIÇARIA, uma vez que cria um modo de organização racional do saber recorrente a partir do momento de sua enunciação - contra o qual os autores contemporâneos se debatem sem sucesso. Pois para fugir ao encantamento descartiano é preciso compreender que ele é um encantamento e não considerar qualificar como 'cartesiano' tudo que é desencantado.

Fritjoff Capra, por exemplo, gostaria de romper com o paradigma mecanicista de que o mundo é uma máquina e definir o universo como um sistema biológico complexo. Acontece que os biólogos da complexidade, Francisco Varela e Umberto Maturana, definem o a sociedade como uma máquina biológica, Deleuze define o corpo como uma máquina desejante, Guattari diz que o noção de máquina é uma sofisticação do conceito de estrutura.

Também Edgar Morin, este humanista, se debate durante todo método três contra a noção de hiper-máquina complexa.

Mas apesar de todos esses esforços ainda estamos em um  universo/máquina. (Ou seja: vivemos em uma Matrix: o universo não é mais um relógio e sim um computador e Deus, seu programador!) Precisamos, portanto, imaginar uma saída, sonhando um outro universo e um outro Deus, enunciando uma nova proposição mágica de superação do encantamento cartesiano.

 

FETICHE E O FEITIÇO CIENTÍFICO

Ouvi uma história interessante, mas desconfio de sua veracidade. É que devido a um erro caligráfico a palavra 'Feitiço' foi impressa como 'Fetiche', em um estudo de Mauss, o sobrinho esotérico de Durkheim muito conhecido por ser o responsável pela noção de 'mana'. No entanto, antes que o equívoco pudesse ser corrigido, o conceito de fetiche passou a ser utilizado pela intelectualidade européia, chegando mesmo a ser utilizada pelos dois grandes pensadores materialistas do século passado: Freud (no sentido de um objeto de desejo) e o Marx (no Capital, o fetiche da mercadoria), antes de ser associado às práticas sexuais sado-masoquistas. Essas mudanças no sentido na palavra, no entanto, estão diretamente associados a seu significado original. Em Marx, a idéia de fetiche da mercadoria será particularmente interessante, uma vez que ela funciona como um encantamento através do qual as relações sociais se transformam em coisas, isto é, em mercadorias. O encantamento da mercadoria coisifica as relações entre as pessoas. Em Freud e no sado-masoquismo, a idéia de fetiche será ainda mais energética, no sentido, de que as coisas estão investidos de uma importância afetiva e se tornam objetos de desejo

O mundo já era coisificado antes do capital. Ironicamente Marx apenas reifica (a contragosto, pois queria criticar o capitalismo e não ajudar a instituí-lo) o (des)encantamento moderno de Descartes, e antes dele, o 'Encantamento da Caverna' de Sócrates/Platão - que separou o mundo sensível do inteligível. Também é preciso entender que não basta a simples enunciação de um encantamento (de uma metáfora de eficácia simbólica) para que o mundo seja assim ou assado: os pensadores apenas refletem sobre como o mundo é percebido, codificando esses reflexos em padrões cada vez mais distantes do simbólico e paradigmas cada vez mais objetivos.

Vários pensadores descrevem a construção histórica da modernidade (essa imagem objetiva que a sociedade ocidental quer ter de si mesma e do seu universo ambiente) como feita em vários estágios e épocas. Porém enquanto alguns descrevem essa história como um processo de  desburocratização (de predomínio da legitimidade legal acima da carismática e da tradicional como narra Max Weber) ou de dessacralização das culturas (Eliade entre tantos); para Walter Benjamin a "coisificação do mundo"  é resultado da industrialização generalizada dos objetos e instrumentos de trabalho, de nossa 'reprodutividade técnica'. Benjamim trabalha principalmente com a idéia de que a capacidade de reprodução em série da produção material (antes restrita as moedas cunhadas e a xilogravura) levou a perda da 'áurea' da obra de arte, sua originalidade única no tempo/espaço, mas deve ser estendida a um nível mais geral, uma vez que esta uniformização social leva a uma mudança na própria percepção da realidade. 

Infelizmente (mais uma vez, o marxismo vulgarizou a si mesmo!) Adorno e os outros pensadores da Escola de Frankfurt reduziram a idéia de 'reprodutividade técnica' ao conceito de 'indústria cultural' - jogando no lixo a grande contribuição de Walter Benjamim, cuja a compreensão se deve a professora Dra. Jussara Araújo. 

Hoje a Mecânica Quântica e, a partir dela a teoria da complexidade, defende um universo vibracional, feito de energia e de relações entre diferentes estados de ser. A rigor não haveria um único universo objetivo, mas vários universos virtuais (microcósmico, astrofísico, subatômico, etc). Mas, durante toda modernidade, prisioneiros da própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem sentido, jogados em um universo frio e sem alma, não passamos, aos olhos desta ciência objetiva, de bolinhas de carne girando em uma bola de pedra em torno de uma grande bola de fogo. 

No entanto, Eu não sou uma bola de carne, a Terra não é um bola de pedra e o Sol não é uma bola de fogo. Por outro lado, também não podemos retroceder, considerando os astros como são deuses e recolocando o observador como sujeito no centro do universo, como se fazia antes da ciência objetiva e do advento do mundo moderno.  

Eis assim nosso paradoxo: apesar da ciência não ter mais objetos, ainda vivemos em um mundo das coisas. Reencantar o mundo é então descobrir as relações das coisas, sem reificá-las.