Pa K'uáEm busca de uma Arquitetura Sagrada

 

Marcelo Bolshaw Gomes

 

Encontrei-me às voltas com a tarefa de construir uma igreja para Centro Eclético Fluente da Luz Universal Teresa Gregório (C.E.F.L.U.T.G.), ligado ao culto do Santo Daime, na cidade de Natal, no RN; mais precisamente no Vale do Pium, na divisa dos municípios de Parnamirim e Nísia Floresta. 

Assim, para cumprir esta missão, além de estudar outras igrejas do Santo Daime e suas características, procurei conhecer também outras referências tradicionais, como o Feng Shui e a arquitetura sagrada dos povos americanos dos tempos pré-colombianos.

No entanto, após alguma leitura percebi que, dentre os diferentes tipos de ajuda que necessitamos, precisamos de informação de outras igrejas, de irmãos formados em arquitetura e de orientação espiritual em relação ao formato e às características deste tipo de construção. Portanto, ocorreu-me sistematizar nossa breve pesquisa e apresentá-la para colher contribuições, não só para construção da Igreja do "Céu da Arquinha", como também como um passo inicial para elaboração de Plano Diretor de Igrejas associadas ao IDA-CEFLURIS.

 

A ARTE DA HARMONIA AMBIENTAL

O Feng Shui é a arte chinesa de organização ambiental da energia, que estuda a relação do homem com seu ambiente, baseado na observação das estrelas, o relevo das montanhas, a forma dos rios, ruas e construção e a disposição dos móveis. O Feng Shui teve sua origem em antigos mestres taoístas que estudavam a natureza e compreenderam como a energia em volta deles se comportava, e como poderia afetar uma residência. Constataram que o ambiente era influenciado por duas forças fundamentais: vento e água. Em um segundo momento, também se consideravam as estrelas da data de fundação do imóvel e do nascimento de seus habitantes (em geral, pelo método dos quatro pilares: hora, dia, mês e ano).

Além do estudo das forças fundamentais do ambiente e das diversas técnicas astrológicas, o Feng Shui orienta a escolha do local em que a edificação deve ser construída; determina o pólo norte através de um bússola astrológica, Lu Pan, associando-o sempre a entrada da casa; e, finalmente, analisa e propõe mudanças na a organização interna do ambiente de acordo com harmonia entre os cinco elementos chineses: a madeira, o fogo, a terra, o metal e a água.

Aliás, atualmente, muitas pessoas reduzem o Feng Shui a esta última parte de harmonização do ambiente interior através da teoria dos cinco elementos e de seus dois ciclos: o ciclo da criação (de acordo com a rotação no sentido horário na mandala) e o ciclo do controle (formado pelas setas interiores). No ciclo da criação a madeira é combustível do fogo, cuja as cinzas vitalizam a terra, que cria o metal, que mineraliza a água; no ciclo do controle: a madeira se nutre da terra, que represa e absorve a água, que apaga o fogo, que por sua vez derrete o metal, que corta a madeira. O consultor de Feng Shui, de acordo com isso, analisaria qual o elemento dominante ou em desequilíbrio, e conforme os dois ciclos adicionaria/retiraria outros elementos harmonizando assim o ambiente.

Porém, esta análise e mudança dos ambientes internos através dos cinco elementos descontextualizada das técnicas astrológicas é uma simplificação.

A verdade é que existem várias escolas do Feng Shui e diferentes métodos e ênfases. Atualmente a Sociedade Taoísta do Brasil ensina de forma tradicional todo o conhecimento de duas importantes escolas: Escola das Oito Casas (Ba Zhai) e a Escola das Estrelas Voadoras (Fei Xin).

Boa parte do Feng Shui 'de Nova Era' (que reduz a arte chinesa à análise dos cinco elementos) que é divulgado na mídia deriva do sistema da Escola Americana, que não é propriamente de origem taoísta, mas sim partidária do budismo tântrico. Também conhecida como a 'Seita do chapéu preto', essa Escola, fundada por Lin Yun, simplifica consideravelmente o sistema tradicional do Feng Shui, eliminando sua referência macro-cósmica e dando mais ênfase a decoração de ambientes do que a construção de casas.

Assim, não haveriam influências astrológicas e o trigrama da água fica sempre na entrada, independentemente de sua posição em relação aos pontos cardeais. Neste sistema, haveria um maior relação simbólica entre o corpo do morador e sua residência; enquanto, nos sistemas chineses tradicionais, a relação era o ambiente micro e o universo macro.

Devido a grande difusão deste Feng Shui simplificado, vários praticantes tradicionalistas partiram para divulgação do 'verdadeiro' Feng Shui. No âmbito internacional, a escritora Eva Wong é a principal defensora do Feng Shui taoísta; no Brasil, destaca-se o trabalho de Lucyane Campos.

Outro ponto polêmico em relação a este aspecto macro-cósmico do Feng Shui tradicional é a questão de sua aplicabilidade no hemisfério Sul, uma vez que há vários fatores simétricos e invertidos em relação a estrutura simbólica chinesa. Por exemplo, há uma analogia entre as estações do ano e a mandala dos trigramas, o Pa Kua, que orienta a construção do imóvel. Abaixo do equador, no entanto, as estações são simétricas às do hemisfério norte, invertendo toda simbologia do sistema. Além disso, a própria gravidade tem sua rotação no sentido contrário, determinando que o movimento dos ventos e das correntes marítimas se desenvolvam inversamente.

Levando em conta essas inversões, Lindy Baxter Roger Green apresentam uma adaptação do Feng Shui para o hemisfério sul. Eles também substituem as sete plêiades da Ursa Maior (que representam o pólo norte estelar e o centro de toda astrologia chinesa) pela constelação do Cruzeiro do Sul (e pelo pólo sul estelar como centro em torno do qual o céu gravita).

Também é importante ressaltar que hoje os estudos de Feng Shui evoluíram criando diferentes disciplinas científicas - como a Radestesia e a Biogeologia, que estudam a organização da energia no espaço físico, e a Permacultura - que estuda o uso da água dentro dos ecossistemas.

Não podemos aqui nos aprofundar nesta breve exposição sobre a história da arte de harmonização ambiental. No site da arquiteta Aline Lopes Mendes, o leitor interessado poderá encontrar mais informações sobre esses temas (o Feng Shui simplificado da Escola Americana, sobre as mudanças propostas pelos defensores de um Feng Shui específico para o hemisfério sul e sobre os desdobramentos científicos atuais da arte tradicional chinesa: a radestesia e a Biogeologia). Outro trabalho introdutório (mas bem completo) foi escrito pela jornalista Débora Dines e publicado pela revista Superinteressante (1).

 

UM NOVO FENG SHUI ?

A arquitetura da tradição Inca leva em consideração o Cruzeiro do Sul com a entrada para o leste, lado do sol nascente - como também a maioria das igrejas e templos do Santo Daime (2). Também é significativo que, tanto a arquitetura pré-colombiana como as igrejas do Santo Daime são em sua maioria hexagonais (com duas bandas de três partes), enquanto o 'pakuá' (a mandala dos trigramas chineses) é octogonal.

Portanto, tomamos o chão (o espaço) como a Terra e o teto como o Céu (como o tempo), e dividimos a circunferência interior pelos seis trigramas restantes - do lado masculino: o trovão (os jovens), a água (os homens maduros) e a montanha (os idosos); do lado feminino: o vento (as moças), o fogo (as mulheres), o lago (as idosas).

Em relação ao ambiente exterior, observamos as quatro exigências dos animais sagrados - a tartaruga negra (proteção na retaguarda), o pássaro vermelho (visão frontal, luminosidade), o dragão azul (a presença da madeira, vegetação) e o tigre branco (o uso do metal e a posição dos ventos) - e localizamos os fundamentos do 'Céu da Arquinha' na encosta de uma duna fixa, de frente a um vale fechado de mangabeiras e cajueiros. A entrada da igreja ficaria voltada para o leste, em um ângulo que permitindo ver o nascer do sol e da lua durante todo ano (há uma pequena variação entre os solstícios). Os homens ao norte, as mulheres ao sul, o Cruzeiro no centro sobre a mesa em forma de estrela de seis pontas. No lado oeste, com as costas protegidas pela encosta do morro, uma casinha interna ao salão esférico, em que se serve o Santo Daime através de duas janelas, uma do lado masculino e outra do feminino. 

Os  dois banheiros,um ao norte e outro ao sul, apesar de externos a grande circunferência só poderão ser acessados por dentro. Do lado de fora, haveriam ainda uma casa destina às crianças e a secretaria do lado sudeste e, no leste, em frente a entrada principal, um grande Cruzeiro externo.

No entanto, ainda nos faltam muitas informações para um desenho final. Sendo assim, gostaríamos de dividir esses apontamentos, na esperança de que outros irmãos nos ajudassem a estabelecer um padrão geral para a construção das igrejas daimistas. (3)

Natal, agosto de 2003

 


NOTAS

(1) DINES, D. Feng Shui - Coleção Para saber mais. Superinteressante. Editora Abril, 2003.

(2) Na astrologia chinesa tradicional, os ciclos solares (anual e diário) eram compostos por 28 constelações signos dispostos do equador celeste; a astrologia ocidental, os ciclos solares são formados por doze constelações signos dispostos na eixo imaginário do Zodíaco; na Astrologia Inca, o ano é formado por 13 meses de 28 dias, mas os 13 skins se sucedem sem referência direta às constelações. São três sistemas bem diferentes: o chinês é de natureza lunar, o ocidental é predominantemente solar e o inca, misto e mais elaborado.

(3) Nossas dúvidas vão desde da escolha dos materiais utilizados para construção e seu equilíbrio energético até pequenos detalhes, como, por exemplo, sobre a necessidade ou não de se entrar descalço na igreja. Cada detalhe é uma decisão que terá conseqüências diretas sobre a vida do imóvel. No caso da 'questão dos sapatos' citada acima como exemplo, a opção por adotar um estilo 'japonês/acreano' em oposição às igrejas tradicionais do Alto Santo (em que 'o sapato faz parte da farda'), implica não apenas na construção de um vestiário intermediário entre o ambiente externo e a igreja, como também dificulta a saída dos participantes do recinto, uma vez que os banheiros planejados, mesmo externos, só são acessíveis pelas extremidades internas do salão central. Assim, a opção pelo 'modelo dos descalços' restringiria significativamente a saída dos participantes, com um impacto direto (positivo e negativo) sobre o ritual. Não se trata, portanto, de uma decisão meramente cultural ou de revisão das tradições mas sim de definir o melhor modelo a partir de fatores energéticos e funcionais. E muitos outros aspectos como esse, principalmente do ponto de vista acústico e da luminosidade, precisam ser detalhados e aperfeiçoados. 


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