MITOS, SÍMBOLOS & E O REAL APARENTE

 Por Olga Tavares

  “O simulacro nunca é o que oculta a verdade – é a verdade que oculta o que não existe. O simulacro é verdadeiro”.  (Eclesiastes)

                        A humanidade costuma se organizar em torno da construção dos seus mitos mais caros à manutenção do seu imaginário que, quase sempre, mistura-se à realidade, e, muitas vezes, supera-a totalmente. Nos dias de hoje, continua-se criando Hércules modernos para suportar a miserável condição humana que se encara no cotidiano, nas obrigações e no tédio constante que transformam os indivíduos em sísifos sociais. É insuportável viver com a realidade nos calcanhares. Então, criam-se os mitos, os símbolos a eles vinculados, e o real aparente que se esconde da “realidade real” através de teatralizações diárias de vivências que se quer viver para elidir as que se tem de fato. Segundo Sennet (1988), “os artifícios da arte é que tornam possível a uma platéia sentir aquilo que não poderia sentir facilmente na vida diária”.

                        No dia 11 de setembro de 2001, o mundo assistiu ao abalo de mitos, de símbolos e do real aparente que a sociedade dos Estados Unidos construiu durante todo o século XX, e que se tornou uma espécie de “mitologia ocidental contemporânea”, no sentido de ter desenvolvido um imaginário poderoso nos corações e mentes de grande parte da população mundial que viu, naquele momento, também abaladas as próprias convicções de sua existência. E que permitiu uma remetência ao que ocorre no filme Matrix, dos irmãos Wachonki, onde os indivíduos vivem na realidade virtual, pois a “realidade real” é um mundo devastado, inóspito e seco depois de uma guerra mundial. A TV seria a “Matrix” – “o mundo colocado diante dos seus olhos para que não veja a verdade”; por isso, as imagens da tragédia americana tiveram duplo impacto sobre o narcisismo coletivo; ali destruíam-se mitos e símbolos que tinham sido o sinônimo do “american way of life”.

                        O mythos tem servido de modelo para a conduta humana, conferindo-lhe significação e valor à existência (Eliade, 1991a) e, geralmente, está impregnado de uma perspectiva do sagrado. Uma vez estabelecido, fica-se ligado a algo que transcende ao entendimento e que anuncia um novo mundo, uma nova situação que, certamente, será melhor, pois “encarna o ideal de uma grande parte da sociedade” (idem). Exemplos não faltam: o mito do Super-Homem, da Raça Pura, do Grande Irmão, do Estado etc.. E a função primária da mitologia e dos ritos, salienta Campbell (1993), “foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar”.

         O grande mito construído ainda na Segunda Grande Guerra foi o “mito da invencibilidade”, traduzido pelo sistema militar, econômico e cultural dos Estados Unidos numa forma de representar a sua grandeza, poderio e superioridade diante do resto do mundo. O deus míssil e a deusa bomba atômica, ou o deus dólar e a deusa fortuna, ou ainda o deus entretenimento e a deusa ilusão formaram o conjunto da mitologia que se fortalecia com caráter dogmático. A infalibilidade do Estado garantia ao seu povo – e  ao mundo que o tinha como modelo – uma representação da realidade que se queria a “ideal”.

         As torres gêmeas do World Trade Center e o prédio do Pentágono são dois dos maiores símbolos da cultura americana, juntamente com a Estátua da Liberdade, a Disneyworld, Hollywood e o Vale do Silício. Foram escolhidos como alvo porque representam as duas forças que têm movido a humanidade desde a sua origem: a militar e a financeira, espinha dorsal de todo sistema político. Os símbolos também preenchem a função de revelar as mais secretas fantasias do ser humano na construção das imagens de suas ilusões, dos seus desejos, das suas identificações. Os dois símbolos americanos podiam ser vistos como templos da supremacia bélica e do capital e, sob a égide do sagrado, também eram motivo de glorificação. A imagem em si, enquanto conjunto de significações, é que é verdadeira (Eliade, 1991b), por isso, a destruição dela também provoca um aniquilamento das próprias convicções do indivíduo que cai num espaço hamletiano.  A “imaginação simbólica” (Durand, 1988) evoca exatamente algo impossível de ser percebido, é epifania, circula na área do inconsciente e do sobrenatural, é “uma representação que faz aparecer um sentido secreto”, e o seu conteúdo é o imaginário.

            Nestes tempos que privilegiam a representação imagética, presenciar uma tragédia ao vivo quebra, de  certa forma, as ilusões “cuidadosamente mantidas por meio das informações”, como revela Paul Virilio (1995). Não era encenação, era a vida real provocando uma ruptura entre o indivíduo e o midiático estetizado que vem norteando seu cotidiano: a TV – um ícone da sociedade americana – acordou a Nação inteira naquela manhã também para uma reflexão coletiva do seu próprio imaginário (imagem/magia). A “máquina de Narciso” (Sodré, 1990)  cumpria a travessia do mito, mergulhando no jogo (mortal) da imagem com o real. Para Eliade (1991b), “na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real (...) porque ele relata as manifestações da verdadeira realidade”. Como escreveu Nicéforo, o patriarca de Constantinopla, “se eliminamos a imagem, não é o Cristo, mas o universo inteiro que desaparece”. Ou seja, a eficácia simbólica desaparece;  então, o que fazer?  Talvez recorrer à solução plotiniana da contemplação com os olhos de dentro...O deciframento do simbolismo (Durand, 1988) do ataque terrorista pode revelar forças antagônicas sob as quais as imagens vêm a se organizar e essa essência dialética do símbolo se desdobra em questões que devem ser examinadas cuidadosamente. Os símbolos atingidos, os que serviram de arma e os que insuflaram todo a ação reproduzem os modelos da sociedade contemporânea, originários da industrialização, da tecnologia de informação, da cientificidade. A magnitude das imagens se sustenta sobre as técnicas de reprodução que têm sido o modelo moderno de conformação social: o fascínio pelo visual determina a construção da própria realidade através de suas identificações; por isso, o fato provocou choque e pânico, pois ali se instalava um não-reconhecimento, uma obscena visibilidade do mundo real.

          Debray (1993) diz que “a prova pela imagem anula os discursos e os poderes” e que ela encarna o “Real”, apesar de favorecer a “escamoteação das mediações”.  O “real aparente” se organiza através das imagens que são compartilhadas por um grupo social, definindo um código próprio que privilegia a concepção nieetzschiana do “prazer da aparência”. Neste campo, mitos e símbolos são reforçados e confirmados constantemente, pois alimentam o contexto em que se inscrevem. Assim, o simbolismo contemporâneo permite que se compreenda a sociedade atual. No caso dos atentados, a arquitetura figurativa de  theatrum mundi perdeu a significação com a queda dos símbolos e a vulnerabilidade do mito.

        Por outro lado, o ataque terrorista também tem seus mitos – Alá, Islã, Osama bin Laden, Sadan Hussein, a morte -, e seus símbolos – o deserto, as armas, as mesquitas. E são eles igualmente que movem os indivíduos em direção à sua causa: são os seus modelos de transcendência e de sacralidade. O “real aparente” que eles ainda queriam atingir se revelou na cronometragem da ação: o intervalo entre um ataque e outro para que as imagens fáticas fossem transmitidas em tempo real; bem como o seqüestro de um símbolo caro à modernidade, o avião, que deu “efeitos especiais” à ação. “L’homme-jet” de Barthes (1957) comporta um aspecto vocacional mítico de um dom espiritual, de uma ascese. Foi uma guerra simbólica de imagens e sons, que definiu a “trans-aparência” do que é , como indica o conceito de Virilio (1994). Para os terroristas, mais do que destruir os símbolos sagrados da identidade americana, eles tentavam atingir o mito EUA, uma espécie de Titã universal paradigmático.

       Aristóteles, na “Poética”, já relacionava o mito como a alma da tragédia: a história deve ser contada de tal forma que, independentemente da encenação, cause, no espectador, estremecimento e piedade. A tragédia já traz em si o elemento purificador das emoções da platéia. Para Campbell (1993), a tragédia “é a destruição das formas e do nosso apego às formas”.  Benedito Nunes  (1991) coloca que o seu efeito estético, a catarse, “mostra que essa representação exemplar estende a sua influência ao plano moral da vida”. A declaração de guerra revela esse caráter mítico do heroísmo trágico que encarna a substância sustentadora de determinadas crenças e princípios que precisam ser defendidos até à morte porque representam “o essencial do destino humano naquilo que ele tem de grande, nobre e exemplar”. Tanto os EUA quanto os terroristas se sustentam nos pilares mítico-religiosos de salvação do mundo. Como escreveu Nietzsche em “Assim Falou Zaratrusta”, “Vive como se o dia tivesse chegado”. É primitivo? É o mito do eterno retorno que sempre oferece a possibilidade do renascimento de uma nova ordem. A História está repleta de exemplos dessas “histórias de alguns dos portadores simbólicos do destino de Todos” (Campbell, 1993).

Duas civilizações se  confrontam, mas é imprudente anunciar as Cruzadas do século XXI ou aceitar o maniqueísmo do presidente americano, George W. Bush, na sua luta do bem contra o mal, até porque esta perspectiva é bastante discutível. A princípio, o que se infere é que é um conflito simbólico, cujos alvos são todas aquelas representações inaceitáveis das sociedades em questão. Comportamentos míticos são reconhecidos tanto de um lado como do outro. Ninguém  pode  se furtar a entender a atualidade dessas conformações míticas, haja vista elas estarem na origem de toda a existência humana em nível político, social, religioso, econômico e/ou cultural. Contudo, espera-se que os destroços do World Trade Center, transformados num monumento às vítimas, tornem-se o símbolo da tolerância e da paz, e que instaurem definitivamente a certeza mitológica da época beatífica do princípio. E que os mitos que se desafiam, espelhem-se nos gregos – criadores do conceito mítico -, quando avaliam que cada divindade é capaz de fazer o bem tanto quanto o mal.

                        “Ó, Maomé,”disse Deus, “se não existisses, eu não teria criado o céu”.