A IGREJA POSITIVISTA

 

O amor por principio
E a ordem por base.
O progresso por fim.

 

Era domingo, à porta do templo da Humanidade, na rua Benjamim Constant.

Com o céu luminosamente azul e o sol tépido, havia muita concorrência nessa rua, de ordinário deserta: - senhoras, cavalheiros de sobrecasaca, militares, crianças. Uns subiam logo as escadas do templo, cuja fachada recorda um templo grego; outros mais íntimos, seguiam para o fundo, pelo lado direito. Teixeira Mendes fazia a sua prédica dominical.

Tínhamos ido a conversar com um velho positivista. A princípio ele anunciara um profundo desprezo pela frivolidade jornalística e a imprensa. Mas depois, como eu risse sem rancor, permitiu-se levar-me até a Igreja e foi tão bondoso que ali estávamos, tagarelando de coisas superiores, enquanto ao templo continuava a afluir a onda de fardas, de senhoras e de cavalheiros solenes.

- Não é possível negar a influência positivista na nossa política, sobre os brasileiros cultos, ia eu dizendo, mas o público..

- Os jornais...

- ... o grande público não compreende e irrita-se. O meu amigo pode falar de Spencer, de Kant, de outros filósofos. Passa por erudito e é respeitado. Basta, porém, falar de Comte para que o tomem por um esquisitão e perguntem injuriosamente se essa é a religião de Clotilde de Vaux.

- É natural. É a gentinha que não conhece o culto, adulterado por espíritos anárquicos. Mas você vê que os honestos já começam a compreender a doce religião que submeteu a inteligência ao sentimento.

- Tem-lhes custado.

- O positivismo tem quarenta anos de propaganda no Brasil. Em 1864, o Dr. Barreto de Aragão publicava urna aritmética dando a hierarquia científica de Comte e o Dr. Brandão escrevia a Escravidão no Brasil. Foram esses os primeiros livros positivistas, hoje quase desconhecidos. Depois é que o positivismo começou a ser falado entre matemáticos e que os professores da Central e da Escola Militar deram em citar a Astronomia e o primeiro volume da Filosofia.

- Era o tempo em que se considerava a Política um livro ímpio...

- Ainda não se fizera sentir a necessidade de dispensar os serviços provisórios de Deus. O caráter religioso do positivismo não era conhecido. Isso não impediu que Benjamim Constant, fazendo concurso na Escola Militar, declarasse ser positivista ortodoxo e republicano, e que o próprio Benjamim, com os Drs. Oliveira Guimarães e Abreu Lima, constituísse o núcleo dos ortodoxos em 1872.

- A influência foi nula... - interrompi eu, olhando uma senhora loura que entrava com o catecismo encadernado em veludo verde.

- Nada se perde. Oliveira Guimarães deixou um discípulo, Oscar de Araújo; Benjamim levou às escolas a palavra religiosa do mestre, regenerou o ensino da matemática e foi o primeiro brasileiro que teve no seu quarto o retrato de Clotilde de Vaux. Os trabalhos adotados na Escola Militar são quase todos de discípulos seus. No meio inteligente desses últimos surgiram Raimundo e Miguel Lemos; era um momento de agitação. Pereira Barreto publicava o 1.º volume da obra As três filosofias, e tanto Miguel como Teixeira Mendes eram litréistas, considerando a parte religiosa de Comte como obra de louco.

Foi com eles que Oliveira Guimarães fez aliança para fundar a biblioteca positivista e abrir cursos científicos.

- Era a filosofia da Academia...

- Sem jardins. O começo do positivismo no Brasil é absolutamente acadêmico. Em 1876 a Escola de Medicina manifestou-se com a tese Da Nutrição, de Ribeiro de Mendonça, e a primeira sociedade positivista foi feita de professores ortodoxos e de estudantes litréistas.

- Seria curioso saber como estes mudaram.

- As pequenas causas têm às vezes grandes efeitos. Uma censura ao diretor da escola motivou serem suspensos, por dois anos, Teixeira Mendes e Miguel Lemos, que foram para a Europa; e enquanto só, Benjamim propagava aqui, os dois em Paris litréizavam. Mendes veio o mesmo, achando o Comte da Política maluco. Miguel ficou, e lá, sponte sua, abandonou Littré e relacionou-se com Laffite.

- E converteu-se?

- A 4 de julho de 1879.

Solenemente, o meu amigo positivista apanhava sol. Levei-o com carinho para o jardim, onde devia florir o bosque sagrado com as sepulturas dos homens dignos. Não havia bosques, nem sepulturas. Apenas algumas árvores. O positivista acendeu o cigarro, depois de o fazer com um forte fumo Rio Novo. Eu perguntei pasmado:

- Toma café?

Ele riu.

- Como toda a gente! Essa história de não tomar café e não fumar é apenas uma léria. Então você pensa que Augusto Comte imaginasse, de mau, fazer o mundo deixar o café e o fumo, só para arruinar o Brasil? O fato é outro. O grande filósofo não fumava nem bebia excitantes, porque lhe faziam mal; Miguel Lemos, doente como é, não se atira a esses excessos; Teixeira Mendes, um homem que reflete dezesseis horas a fio, não se pode dar aos devaneios da fumaça... Não há proibições formais para o horrendo vício; há apenas medo...

Puxei com vigor uma baforada.

- A propaganda desapareceu com a estada de Miguel Lemos em Paris?

- Não. A sociedade passou a chamar-se Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, sendo aclamado presidente o Dr. Ribeiro de Mendonça, que se filiou a Laffite:

- Começou a era do lafitismo...

- E com excesso. Concorríamos até pecuniariamente para o subsídio sacerdotal da igreja em Paris. Lemos influiu de tal modo sobre Teixeira Mendes, que pouco tempo depois este também se convertia. Foi, ligada a Laffite, que a nossa igreja iniciou as comemorações de caráter religioso com a festa de Camões em 1886; que se comemorou o 22.º passamento de Comte e a festa da Humanidade; e é dessa época que data a primeira procissão cívica no Rio de Janeiro, com andores e o busto de Camões esculpido por Almeida Reis.

- Quando Miguel voltou, aspirante ao Apostolado, as reuniões tornaram-se regulares aos domingos, na rua do Carmo, n.0 14, e Ferreira de Araújo abriu uma seção na Gazeta com o título Centro Positivista, cujo primeiro artigo dava a teoria científica do calendário. Em 1881, já presidente Miguel Lemos, o Centro passou para a rua Nova do Ouvidor, as exposições da religião tornaram-se regulares, e Raimundo fez no Liceu um curso do catecismo, interrompido pelas suas célebres conferências de antigo litréista contra o sofisma de Littré.

- Era a prosperidade.

- Nesse ano, em que se comemorou a Tomada da Bastilha, Lemos foi a São Paulo, fez nove conferências, fundou uma filial com Ferreira Souto, Carvalho de Mendonça, Oliveira Marcondes, Godofredo Martins e Silva Jardim, e as intervenções do Centro na nossa vida política acentuaram-se contra a imoralidade da colonização chinesa, traçando o programa do candidato positivista, protestando contra as loterias, exigindo o registro civil, a abolição, opondo-se às universidades...

- Já nesse tempo?

- Os artigos foram publicados na Gazeta de Notícias e fizeram que o imperador se opusesse à idéia, aconselhando ao ministro que reformasse o ensino por outro qualquer meio que não fosse as universidades.

O meu velho amigo andou alguns passos pelo futuro bosque sagrado. Acompanhei-o.

Ouvia-se lá dentro o som múltiplo de uma orquestra. Raros retardatários entravam.

- Neste ano também, continuou com calma, uma circular instituiu o subsídio sacerdotal, o que deu lugar à retirada de Benjamim Constant, e foram conferidos os primeiros sacramentos aos filhos de Miguel Lemos, Teixeira Mendes e do Dr. Coelho Barreto.

- Hoje esses sacramentos são comuns?

- Como os do matrimônio, em grande número.

- A ruptura com Laffite deu-se logo depois?

- Em 1883. Lemos ficou o único responsável do positivismo no Brasil, continuando a ingerir-se na vida pública da sua pátria.

- Mas este templo como foi feito?

- O Apostolado deixou a sede da rua Nova do Ouvidor para a rua do Lavradio. A mudança determinou o lançamento de um empréstimo em 1891 para a construção do templo, no que muito concorreram Pereira Reis, Otero, Rufino de Almeida, Décio Vilares. A inauguração foi em 1894, e a igreja custou 250 contos.

- É mais uma prova da importância do Centro no regime republicano.

- A nossa intervenção no início da República foi de primeira ordem. Basta citar a Bandeira Nacional, a separação da Igreja do Estado, a liberdade dos professores, a reforma do código no caso da tutela de filhos menores.

- O Centro também tem uma casa em Paris?

O semblante do positivista anuviou-se.

- Sim, a casa em que morreu Clotilde. Foi comprada por 70 mil francos. É triste. Em Paris não estavam preparados para compreender Teixeira Mendes. Era tarde para a campanha... Mas venha ver a nossa tipografia.

Caminhamos com intimidade pela avenida estreita. De vez em quando ouvia-se o som de uma voz acre. Era a prédica.

A tipografia fica embaixo, correspondendo a toda a extensão da nave em cima. É completa. Pergunto respeitoso o número de publicações dessa oficina.

- As obras de maior valor são o Ano sem Par, a Biografia de Benjamim Constant, a Visita aos Lugares Santos do Positivismo, a Química Positiva, as Últimas Concepções de A. Comte (onde se acha a teoria dos números sagrados), todas obras de Raimundo Mendes. A publicação de folhetos é talvez superior a 600.

- Mas os subescritores são muitos?

- São suficientes. A Igreja do Brasil tem recebido também auxílios de Londres.

O pavimento embaixo não é só ocupado pela tipografia. Há também o gabinete luxuoso de Miguel Lemos e a sala Daniel Encontre, onde Teixeira Mendes expõe aos jovens discípulos da humanidade, e a quem quiser ouvi-lo, as sete ciências. Ouvem-no lentes de academias e professores notáveis.

- É grande o número de positivistas?

- No Brasil os ortodoxos devem ser uns 700. Os simpáticos não se podem mais contar. As gerações que saem da nossa Escola Militar são quase que compostas de simpáticos.

- E a influência moral aumenta?

O positivista confessou com tristeza.

- Vai-se tornando fraca. Não se admire. Será por fraqueza dos apóstolos? Será porque o público se afasta da realidade, corrompido moralmente? O fato é patente. Ainda há pouco o privilégio funerário foi uma campanha perdida... Mas entremos.

Com o chapéu na mão, nós entramos. Havia luxo e conforto. De um lado a secretária, onde se vendem as obras editadas pela igreja, de outro, a sala onde está a escada para o coro, com orquestra e uma rica biblioteca de carvalho lavrada. Degraus atapetados dão acesso à nave.

O templo da humanidade é lindo. Ao alto, junto ao teto correm janelas que arejam o ambiente. Todo pintado de verde-mar, está-se dentro como num suave banho de esperança. Sentam-se os homens na nave, que tem catorze capelas; - colunas de pau negro sustentando em portais abertos bustos esculturados por Décio Vilares. Os bustos representam os meses do calendário:  Moisés ou Teocracia inicial,  Homero,  Aristóteles, Arquimedes ou a poesia, filosofia e a ciência antiga; César ou a civilização militar; São Paulo, ou o catolicismo; Carlos Magno ou a civilização feudal: Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico Bichat, ou a epopéia, a indústria, o drama, a filosofia, a política, a ciência moderna, e Heloisa, a santa entre as santas, que fica na última capela, voltando o seu semblante magoado para a porta.

Na capela-mor, rica de tapetes e de madeiras esculpidas, há uma cátedra, onde se senta Teixeira Mendes com as vestes sacerdotais negras debruadas de verde. Por trás fica um busto de bronze de A. Comte, e, dominando toda a sala, o quadro de carvalho lavrado com letras de ouro, de onde surge a figura delicada de Clotilde, a humanidade simbolizada por Décio numa das suas miríficas atmosferas sonhadoras.

A voz de Raimundo corre com a continuidade de uma queda de águas; na nave cheia cintilam galões e lunetas graves; na capela-mor, senhoras ouvem com atenção essa palavra, que não deixa de ser demolidora.

- Que é positivismo? sussurro eu, sentando-me.

- É uma religião que respeita as religiões passadas e substitui a revelação pela demonstração. Nasceu da ruptura do catolicismo e da evolução científica do século XVII para cá.  De Maistre dizia que o catolicismo ia passar por muitas transformações para ligar a ciência a religião. Comte descobriu a lei dos três estados, a chave da sociologia, e quando era o grande

filósofo, Clotilde apareceu e ensinou que a inteligência é apenas o ministro do coração.

 

Agir por afeição,
Pensar para agir.

 

Comte proclamou que o homem e a mulher se completam sob o tríplice aspecto: sentimento, inteligência e atividade. A religião divide-se em Culto, Dogma e Regime, o que vem a ser bem amar, bem conhecer e bem servir a humanidade, o Grande Ser, o conjunto das gerações passadas e futuras pela geração presente. A existência do Grande Ser está ligada à terra, o Grande-Fetiche, e ao espaço, o Grande Meio...

- Mas quantas senhoras!

- As mulheres devem amar o positivismo. Comte dignificou-as. A mulher é a força moderadora, o sentimento puro do amor que faz a sociabilidade, é a sacerdotiza espontânea da Humanidade que modifica pela afeição o orgulho vão e o reino da força: a mulher é a humildade, o fogo do culto no lar, é Beatriz, é Clotilde, é Heloisa, mãe, esposa e filha, a Veneração, a Doçura e o Bem. As mulheres deviam ser todas positivistas.

Enquanto o meu amigo assim falava, Raimundo Mendes, do alto da cátedra, relampejava. Na catadupa das palavras faltavam rr, havia repetições do pensamento, de frases, mas na explicação cultual, de repente, inconoclastamente, o azorrague partia contra os fatos, contra a anarquia atual: e um esto de amor, de amor indizível, de amor pela Vida, subia, como um incensório, à alma das mulheres.

Fiquei enlevado a ouvi-lo. Esse mesmo homem, puro como um cristal, que tem o saber nas mãos, eu já o vira uma vez, de manhã, carregando com dignidade um embrulho de carvão...

As mulheres sorriam; em toda a translúcida claridade parecia vibrar a alma do grande filósofo terno e bom, e do alto, Clotilde, a Humanidade, abria como um lírio a graça suave do seu lábio.

 

OS MARONITAS

O povo maronita, dizia o papa Benedito, é como uma flor entre os espinhos. Se o pontífice notável tinha esta doce frase para pintar os homens do monte Líbano, os que lhe sucederam guardaram tão perfumada imagem, e hoje, quando se fala dos maronitas, logo se recorda a flor e os espinhos antigos. Tudo, porém, neste mundo tem o vinco fatal do destino. A frase dos papas tornou-se profética e através da vida imensa, os de Marun continuam a perfumar a crença impoluta entre os espinhos das hostilidades.

Os maronitas, gente extremamente religiosa, habitam a Síria e descendem dos Aramilas, filhos de Aram, de Sem, de Noé.

Ascendência tão digna de respeito só os preparou para um longo e pungente sofrer. Desde os tempos dos Apóstolos, dizem os Atos no versículo 22 do capítulo XV, eram cristãos, conservando a fé ortodoxa havida do príncipe dos Apóstolos no ano 38 da era de Jesus Cristo. Quando no quarto século começaram a aparecer no Oriente as heresias e as doutrinas falsas, protegidas pelos soberanos coroados de pedrarias, impostas pelas armas, e a fé e a soberania ao mesmo tempo vacilavam, S. Marun, chefe dos eremitas da Síria, saiu de sua toca de cilícios e orações e veio salvá-los.

- Quem é esse homem de grandes barbas, meio roto? indagavam os homens, vendo a figura ressurgida do santo sem pecado.

S. Marun não respondia; seguia pelas estradas cheias de sol, na atmosfera de milagre do azul sem mancha, e pregava a doutrina pura, exortava o povo a conservar a sua verdadeira fé.

- Acredita sempre em Deus, tal qual te ensinaram os Apóstolos, e conservarás a tua liberdade!

A gente, que dos seus lábios ouvia as palavras ungidas pela meditação contínua, seguia num novo esplendor de crença, em cada coração a esperança brotava, e em pouco tempo o povo da província do monte Líbano era chamado maronita. Os heresiarcas quiseram caluniá-lo, mas Marun era puro como o cristal. S. João Crisóstomo, o boca-d'oiro, na carta que lhe escrevia, rogava que por ele orasse, e a ironia como a calúnia fenderam-se de encontro ao seu broquel de bondade.

Quando a sua alma irradiou, deixando o invólucro terreno, o povo maronita tinha inabalável a crença para suportar todas as sangrentas perseguições, e tem sido desde então o mesmo ordeiro e persistente auxiliar da obra divina.

Durante as cruzadas combateu ao lado dos cristãos contra os ímpios. Ao aproximarem-se os exércitos, desciam da montanha, alimentavam e vestiam os cruzados nus e com fome. Sempre que os turcos entravam sedentos de sangue pelo seu território, sofriam como mártires o sacrifício sem protestar. O ódio do Maometano seguia-os, entretanto, na vida simples e indolente dos mosteiros. Em 1860 os druzos, povo pagão e feroz, recordando velhos ódios religiosos, atiraram-se subitamente sobre os pobres maronitas, traídos e abandonados.

A carnificina foi horrenda. A França então, sempre benevolente para os cristãos do Oriente, mandou uma esquadra às águas do Levante, forçando o Turco a modificar o governo do Líbano e a dar-lhe uma certa autonomia. Desde essa época o governo é cristão nomeado pelas sete grandes potências européias, a câmara dos representantes faz-se por eleição livre e o chefe da policia deve ser cristão. O chefe da polícia em todos os povos do Oriente representa um papel formidável.

Extremamente religiosos, os maronitas dependem civil, militar e religiosamente, em qualquer parte em que se achem, dos sacerdotes, e a hierarquia da sua igreja compõe-se de um prelado, com o título de Patriarca de Antióquia e de todo o Oriente, de doze bispos diretores de doze dioceses e de um número infindável de sacerdotes inteligentes e bons.

A intervenção européia, entretanto, espalhou pelo mundo a flor pontifícia. A imigração esvazia aos poucos o Líbano. Não se pode viver com farturas em terras tão antigas, as autoridades conservam a influência aterradora do Sultão. Os que primeiro saíram, com os ortodoxos e outros crentes de Jesus, escreveram chamando os que ficavam, a perspicácia maometana facilitou a emigração para enfraquecer os libertos da sua prepotência e os maronitas vêm para os Estados Unidos, para a Argenúna, para o Brasil, num lento êxodo...

Nós temos uma considerável pétala da celebrada flor. Uma das nossas maiores colônias hoje é incontestavelmente a colônia síria. Há oitenta mil sírios no Brasil, dos quais cinqüenta mil maronitas. Só o Rio de Janeiro possui para mais de cinco mil.

Quando os primeiros apareceram aqui, há cerca de vinte anos, o povo julgava-os antropófagos, hostilizava-os e na província muitos fugiram corridos à pedra. Até hoje quase ninguém os separa desse qualificativo geral e deprimente de turcos. Eles, todos os que aparecem, são turcos!

Os sírios, arrastados na sua imensa necessidade de amizade e amparo, davam com a muralha de uma língua estranha, num país que os não suportava. Agremiaram-se, fizeram vida à parte e, como a colônia aumentava, foram por aí, mascates a crédito, fiando a toda a gente, montaram botequins, armarinhos, fizeram-se negociantes. Quem os amparou? Ninguém! Só, por um acaso, Ferreira de Araújo, o Mestre admirável, escreveu defendendo-os. Os sacerdotes maronitas respeitam-lhe a memória, e na data da sua morte rezam-lhe missas por alma, guardando delicadamente uma gratidão duradoura.

No mais, a hostilidade, os espinhos da frase papal.

Há nessa gente operários hábeis, médicos, doutores, homens instruídos que discutem com clareza questões de política internacional, jornalistas e até oradores. A vida é dura, porém; jornalistas e doutores vendem alfinetes e linhas em casas pouco claras da rua da Alfândega, do Senhor dos Passos, do Núncio e dos subúrbios. A totalidade ainda ignora o português!

Conversei com alguns maronitas, sempre de uma amabilidade penetrante. Um deles, dando-me a satisfação da sua prosa torrencial, falou como um estrategista da guerra russo-japonesa. Esse homem não falava, redigia um artigo de jornal com a retórica empolada que fez a delícia dos nossos pais e ainda hoje é a força do jornalismo dogmático. Eu ouvia-o de lábios entreabertos.

- Se a justiça de Deus não desapareceu, se a vida humana decorre dos desejos da divindade, é possível crer que os japoneses possam vencer?

- Oh! não!

Eu respondera, como no teatro, mas estava interessado por esses organismos simples, criados na chama de uma crença inabalável, desses românticos do Oriente.

Todos são feitos de exagero, de entusiasmo, de amor e de ilusão. Os dois jornais sírios têm os títulos simbólicos e extremos: - A Justiça, A Razão. Os homens naturalmente perdem o limite do natural. Numa outra casa em que sou recebido, um gordo cavalheiro preocupa-se com o problema da colonização.

- A colonização síria, diz, é a melhor para o Brasil. Os brasileiros ainda não a compreenderam. O sírio não é só o comerciante, é também agricultor, operário. Desprezam-nos? Este país não vê que conosco, povo tranqüilo e dócil, não poderia haver complicações diplomáticas? Os espanhóis, os portugueses, os italianos enriquecem, partem, pedem indenizações. Nós, pobres de nós! não pedimos nada, queremos ser apenas do Brasil.

Não respondo. Talvez bem cedo os sírios sejam assimilados à família heterogênea da nossa pátria. Estas criaturas têm qualidades muito parecidas com as dos brasileiros.

Vários negociantes que comigo discutem, porque os sírios discutem sempre, são como jornais retóricos e brandos; diziam naturalmente:

- No Amazonas perdi há pouco 400 contos. A colônia síria teve na baixa do café um prejuízo de 70 mil contos. As últimas remessas de fazendas elevam-se a 200 contos.

A princípio eu os acreditei um bando de Vanderbilts, falando com desprendimento do ouro e das riquezas. Mas não. Um sacerdote amigo nos desfaz o sonho. Há fortunas restritas. A totalidade porém tem relações com o alto comércio, compra a crédito para vender a crédito aos mercadores ambulantes do interior e às vezes a situação complica-se, quando lhes falta o pagamento dos últimos, tudo por causa do exagero, a mania de aparentar riqueza. Cada cérebro oriental tem um Potosi nas circunvoluções.

- Os sírios chegam, ganham dois mil réis por dia e já estão contentes. Nunca serão verdadeiramente ricos, porque aparentam ter oito quando apenas têm dois.

Este feitio os há de fazer compreendidos dos brasileiros.

Mas os maronitas, sob a proteção do velho santo austero, são essencialmente bons, de uma bondade à flor da pele, que se desfaz em gentilezas ao primeiro contacto com um bombom. Os homens falam sempre, as mulheres olham com os seus líquidos olhos insondáveis e por todas essas casas, há, inseparável da vida, o mistério da religião, no amor que as mulheres, algumas inefavelmente belas, proporcionam, nos negócios, nas idéias e nas refeições. Quando um maronita enferma, a primeira coisa que faz é chamar um padre para se confessar; quando um negócio vai mal, aconselha-se com o sacerdote, só casa pelo seu rito, o único verdadeiro, e trabalhando para viver, funda irmandades, colégios e pensa em edificar capelas.

De 1900 data a fundação da Irmandade Maronita, posterior a outras duas que se desfizeram. Foram sócios fundadores: Dieb Aical, Arsanius Mandur Galep Toyam, Seba Preod Curi, Miguel Carmo, Acle Miguel, João Facad, Antonio Nicobá, Antonio Kairur, Bichara Bueri, Gabriel Ranie, Salbab, José Chalhub e Bichara Duer. Brevemente abrirá as suas portas o colégio dos Jovens Sírios.

Apesar da permissão para dizer missa em todas as igrejas católicas e de celebrarem aos domingos na Saúde e em Cascadura, já compraram o terreno na rua do Senhor dos Passos para edificar a capela maronita, e a propaganda se faz mesmo entre os sírios ortodoxos e maometanos, porque uma ordem do Papa lhes indica que pela bondade façam voltar à crença única as ovelhas tresmalhadas.

Atualmente há três padres maronitas em São Paulo e quatro no Rio, os Revs. Pedro Abigaedi, Pedro Zaghi, Luiz Trah e Luiz Chediak. Andam todos de barba cerrada, usam óculos e são suavemente eruditos. Trah, por exemplo, esteve oito anos na Bélgica e discursa como um regato tranqüilo; Chediak é professor, e cada palavra sua vem repassada de doçura. É sabido que a reconciliação dos maronitas com a igreja romana data de 1182. A reconciliação foi incompleta a princípio, mas hoje é quase integral. Os padres, podendo casar, abandonam essa idéia; há o maior respeito pelo Sumo Pontífice, e a política do Vaticano consegue aos poucos outras reformas.

Como os padres me levassem a ver o terreno donde a igreja maronita surgirá, interroguei-os a respeito do rito da sua seita.

- É quase idêntico ao romano, dizem-me. A liturgia é redigida em siríaco. É uma necessidade. Há sírios que sabem de cor o sacrifício da missa. Talvez o mesmo não aconteça numa igreja romana, que conserva o latim.

- A começar pelos sacristãos.

- Há além disso as missas privadas, a regra é a de Santo Antônio e seguimos o martirológio de S. Marun.

- Dizem que os maronitas foram a princípio monotelistas...

- Dizem tanta coisa no mundo!

Eles tinham parado diante de uns velhos muros.

- Será aqui a igreja?

- Querendo Deus!

E não sei porque, vendo-os tão simples diante das paredes carcomidas, esses sacerdotes de um povo religiosamente bom, eu recordei a frase profética dos papas. O povo maronita é como uma flor entre espinhos, mas uma flor cujo viço é eterno. Os espinhos continuam persistentes mas a velha flor espalha-se pelo mundo, recendendo a mais doce ternura e a mais profunda crença...

 

OS FISIÓLATRAS

Quando resolvi interrogar o hierofante Magnus Sondhal, sabia da fisiolatria o que os prosélitos deixavam entrever em artigos de jornal cheios de nomes arrevezados e nos comunicados, nos copiosos comunicados trazidos aos diários por homens apressados e radiantes. Pelos artigos ficara imaginando a fisiolatria um conjunto de positivismo, ocultismo e socialismo; pelos comunicados vira que os fisiólatras, quase todos doutores, criavam cooperativas e academias. Entretanto o Sr. Magnus Sondhal certa vez à porta de um café definira para meu espanto a sua religião.

- A fisiolatria não é um culto no sentido vulgar da palavra, mas uma verdadeira cultura mental. É, antes, a sistematização racional do processo espontâneo da educação dos seres vivos, donde resultaram todas as aptidões, mesmo físicas e fisiológicas, respectivamente adquiridas.

Pus as mãos na cabeça assombrado. Magnus tossiu, revirou os olhos azuis.

- A fisiolatria baseia-se, como toda a reforma sociocrático-libertária, na sistematização da lógica universal ou natural que o hierofonte + SUN intitula ortologia.

- Ortologia? fiz sem compreender.

- Do grego orthos, logos - reta razão.

A religião também é chamada ortolatria, ou verdadeira cultura, como ortodoxia significa verdadeira doutrina. Os fisiólatras pretendem fazer uma remodelação de todas as coisas humanas, não limitando a sua ação à modificação dos conceitos.

- Mas o remodelamento geral é possível?

Sondhal sorriu com calma:

- Nós somos onibondosos, oniscientes e onipotentes.

- Os atributos de Deus.

- Nós nos intitulamos os verdadeiros deuses. A reforma abrange as opiniões, os costumes, o Homem e a própria Terra.

Arregalei os olhos, pus o pé bem firme no chão, passei o lenço trêmulo na fronte e olhei os verdadeiros deuses. Para o que falava, envolto na sobrecasaca, com uma barbinha rala e o nariz ao vento, escavoquei a religião do ideal divino e não lhe achei comparação. O outro torcia um bigode sensual por cima do lábio rosado.

- Com que então deuses? Dera-me de repente a vontade de ser também onisciente e onipotente. Mas que é preciso para eu ser também?

- A propaganda toma um cunho secreto. Os aspirantes à Ortologia têm de passar pela iniciação esotérica, que custa, além das provas morais, quinhentos mil réis em moeda corrente.

Era relativamente barato, e eu pensava em fazer uma redução shilockeana, quando Magnus começou a desdobrar a beleza útil da vida fisiólatra.

A iniciação dá entrada na Universidade Ortológica resumida no hierofante, a qual se intitula Maçonaria + Católica. A Maçonaria Católica divide-se em lojas, cujo conjunto, em três graus, constitui o respectivo templo. Os aspirantes representam as lojas, o templo só pode ser representado pelo hierofante ou por um areopagita.

- Onde esse templo?

- Os fisiólatras, os que praticam a magia ortológica, não precisam de local determinado. São os novos homens, fazem excursões pelos prados, montes e lagos em Fraterias Estéticas, Filosóficas ou Ortológicas, conforme o grau do ludâmbulos.

- Ludâmbulos?

- Uma palavra da língua universal!

- O volapuck? O esperanto?

- Não, uma língua inventada por mim, o Al-tá.

- Mas que vem a ser o Al-tá?

- Aplicando a Ortologia (ou Lógica Universal) aos fatos da Linguagem, verifica-se que os elementos fonéticos, sons e entonações (ou consoantes e vogais) são por toda a parte idênticos. Deduz-se que são oriundos das mesmas impressões e resultantes das mesmas aptidões expressionais. Colocando em sínese, descobre-se que os sons, que exprimem relações, formam uma escala semitonal, como a da música, e composta de treze notas, ou graves primárias como todas as escalas, aliás: - U (grave fundamental) A (dominante e geratriz) e I (sensível superior) estabelecem todas as relações sinésicas:

 

U                        A                             I (e U)

Gênese              Megaforema           Metaforema

Origem              Crescimento          Transformaçio

Passado             Presente                Futuro

Corpo                 Espaço                    Movimento

Sentir                Pensar                   Agir

Opressio            Libertaçio              Aspiraçao

Escuro               Amarelo                 Rubro e Branco

etc.                    etc.      etc.

 

Quanto às Entonações, essas formam três teclas, donde três escalas, também, analógicas mas distintas:

 

H (Geratriz)

 

TECLA GUTURAL    TECLA DENTAL    TECLA LABIAL

   Metafonias               Metafonias             Metafonias

 

K (Chave)                 T (Chave)               P (Chave)

G (guê)                      D                            B

Ch                            R                             F

J                               r (brando)               V

-                                L                                     -

-                                Lh                           -

-                                S                             -

-                                Z                             -

-                                N                            -

-                                Nh                          M

 

Aplicando a Sínese ortológica às Teclas orais, como se fez relativamente aos Sons, temos:

 

TECLA GUTURAL    TECLA DENTAL    TECLA LABIAL

Gênese                     Megaforema           Metaforema

Objetivo                    Subjetivo                Ativo

Eidonomia                Eimologia               Ergonomia

                                                                e

                                                                Erostergia

 

Detalhando, enfim, o valor fracional dos fonemas em geral, obtém-se, por dedução lógica, a expressão natural; - de qualquer espécie de impressão: - sensacional, emocional ou acional... e a Língua Universal está, enfim, racionalmente instituída.

Exemplo perfunctório:

K é a raiz de Corpo, concreto, etc.

A significa o atual e ação,

donde:

Ativo:  K A - O Corpo que se apresenta e se move.

e

Passivo: A K - O Corpo que é impelido ou sofre a ação.

M é o símbolo do sentir e agir, donde:

Passivo A M=Eu=amo=sou...

e

Ativo: M A=Mu=mover=mãe, mulher... criar.

Eu não compreendera muito bem, não compreendera mesmo nada. Magnus Sondhal porém foi íntimo e educador.

- Vou dar-lhe alguns nomes esotéricos dos iniciados da Maçonaria Católica. Sobem a milhares, além de alguns que foram condenados ao olvido, ao au-tá...

Fez uma pausa, depois como quem se confessa:

- Eu devo dizer esotericamente, o espírito que preside à Propaganda da Razão. A minha emancipação de Ortólogo, vai a um extremo inacessível para a totalidade dos homens coevos. Por isso, tudo que eu faço toma o aspecto joco-sério, desde o deboche até o sagrado, desde a Orgia até o Culto da Natureza!... De fato estou exterminando pelo ridículo todas as velhas e caducas crenças e instituições e todos os preconceitos, mesmo científicos e filosóficos! Em mim a Consciência superior, a dignidade e a nobreza destruíram por completo toda espécie de Veneração, Respeito ou Tolerância!... Mas, voltemos aos nomes esotéricos.

Todo Iniciado na Maçonaria Católica toma um Nome, por sua própria escolha, em substituição ao nome, sem sentido, que lhe deram seus pais Gorilhas. Esse novo Nome é a síntese de seu verdadeiro Ideal ou Aspiração superior para o Progresso. Em torno desse novo Símbolo o Iniciado constrói a sua nova Existência Subjetiva, isto é, o seu KARMA. Quem souber identificar-se com o seu Nome de Regenerado, está, ipso facto, isento de toda e qualquer perturbação subjetiva, causada habitualmente pelos ataques malévolos da Canalha humana. Mas a adoção voluntária do novo Nome é, além disso, um ato belamente revolucionário, e um protesto solene contra todas as velharias e convenções hipócritas e perversivas. Quem escolheu o seu próprio NOME, também rompeu, ipso facto, com todas as imposições e Imposturas que tendam a tiranizar a sua Vontade e tolher a sua Liberdade de Indivíduo!... Mil outros motivos há que advogam esse Rito da Adoção.

- Os nomes esotéricos! supliquei, vendo que se eternizava num misterioso falar.

Ele sentou-se com um papel e um lápis.

- Antes de tudo, é preciso conhecer o esquema da figura da Lei Universal, ou Ciclo da Matéria, donde se deduz a Ortologia, ou a Sabedoria Universal.

Diante daquele lápis hostil, tremi.

- Os nomes sem figuras, Magnus.

Ele coçou a ponta do nariz.

- Ei-los:

SUN, nome do HIEROFONTE (+) atual; Significa: - sol no NADIR, ou Sol posto e, por extensão, Luz Invisível, isto é, Sol subjetivo.

Etimologia: - S ... símbolo de Fonte e de Brilho em sua máxima intensidade e, portanto, símbolo de SOL; - N... . símbolo de infinito e indefinido, de espaço e de espírito, portanto: num ponto indefinido do Espaço. A quer dizer: presente, ou visível, donde SAN - Sol acima da horizonte visual. I significa o que está para vir e o que sobe, donde SIN - o Sol que vai nascer ou nascituro. U quer dizer o que está embaixo, donde - SUN o Sol no Nadir.

BLUM-SAN-UR - A Flor que o Sol gerou. Nome de um Areopagita, cujo símbolo é a cruz.

AM-VA - Viver para o Amor. Nome de outro Areopagita em São Paulo.

UN-AN - O espírito de Origem, engerador.  Nome de outro Areopagita, em Minas.

GVAM-IL - Viver, Amar e ser Livre.  Nome de um iniciado do 2.º grau.

AL-GAI - Aquele que quer que todos folguem. Nome de um cientista bom e inteligente. Iniciado do 2.º grau.

VAR-UN - A vida que palpita imperceptivelmente no seio da Matéria. Nome de um distinto iniciado do 1.º grau.

SIR-US - O Filho da Aurora Boreal. Nome de um companheiro dedicadíssimo que propulsionou a Propaganda da Razão no Estado do Paraná.

GAM-AR - Aquele que vai alegrar-se e folgar agindo com entusiasmo pela Regeneração Humana.

Um instante calamo-nos. O hierofante Sun limpava o suor. Mas dentro em pouco continuou a falar.

- Temos, disse, idealizados quatro templos para serem erigidos no centro de cada uma das quatro partes em que dividimos a terra. Os templos chamam-se os templos da Razão.

Também em épocas que todos chamam das grandes transformações, os homens deram templos à Razão encarnada.

- Há muita gente iniciada? indaguei, afundando em amargas comparações históricas.

- Muita. Só agora, porém, é que a iniciação deixou de ser grátis. Não imagina como progredimos.

Há quatro ou cinco anos que em Minas Gerais se fazem festas sociolátricas. As peripatéias ou excursões cultuais são comuns em todos os Estados, máxime no Paraná.

- E aqui?

- Vamos entre as árvores discutindo e conversando.

Platão! Aristóteles! Jesus! Dellile! Procurei acalmar o meu estado nervoso. Assistira à missa-negra, vivera entre os negros orixalás, que sobre o opelê dizem a vida da gente, ouvira os espíritas, o ocultistas, os gnósticos católicos. Essa reforma desorganizava-me.

- Mas isso tudo foi inventado pelo senhor?

- Foi.

- E desde quando pensa na reforma?

- Desde a idade de cinco anos, em que aprendia a ler sozinho. Só porém em 1884 é que cheguei aos resultados práticos em Cataguazes.

-  É brasileiro?

- Descendente de islandeses, os verdadeiros descobridores da América.

Recolhi meditando a questão. Aquele homem que aprendera a ler com tenções de reformar a sociedade, a ortologia, as peripatéias, a reforma da terra - tudo isso assustava. Refleti entretanto. Magnus era um vasto saber, calmo e prático, formado em Cabala, tendo viajado o mundo inteiro.

Se apenas nessa qualidade dissesse ter inventado o motocontínuo nas asas das borboletas, eu, deplorando-o, levá-lo-ia ao hospício. Mas Sondhal inventara uma religião, a religião que é o bálsamo das almas, uma religião brasileira, e, como Jesus à beira do lago Tiberíade, ensinava aos iniciados à beira da lagoa Rodrigo de Freitas e da lagoa dos Patos. Era mais um profeta, venerei-o; e assim fazendo quis saber quem comigo o venerava. A fisiolatria é uma religião de doutores; numa lista de 200 ortólogos, sessenta por cento são bacharéis.

As listas são feitas com pompa, e em cada uma eu li: - Drs. Toledo de Loiola, Tavares Bastos, Jango Fischer, Flávio de Moura, Luís Caetano de Oliveira, Antônio Ribeiro da Silva Braga, Adolfo Gomes de Albuquerque, Floripes Rosas Júnior, José Vicente Valentim, Ulisses Faro, Barbosa Rodrigues Júnior... Uma série interminável de bacharéis!

Tantos doutores devem assegurar a doutrina doutíssima. Fui então procurar o hierofante no seu templo, que tem percorrido várias casas na Cidade Nova. Magnus Sondhal recebeu-me com o seu inalterável sorriso e o seu inalterável pince-nez.

- Há tantos doutores na sua religião, hierofante, que eu a considero.

- Pois, ergonte, uma das idéias da minha religião é acabar com os doutores!

Sentamo-nos divinamente e eu o interroguei:

- A sua religião tem qualquer coisa de positivismo?

- Fui apóstolo da Humanidade seis anos. Só depois é que comecei a propaganda da União Universal, a princípio com um filósofo dinamarquês, depois com os Drs. Adolfo de Albuquerque, Silva Braga e outros Areopagistas. A fisiolatria transforma as palavras e expressões das outras línguas, transformando as instituições humanas existentes e inexistentes em fatos positivos. Os fenômenos sobrenaturais tornam-se até sensíveis.

- A reforma é então geral?

- Até no vestuário. Acredita o senhor que no futuro continuaremos a usar sobrecasasa? Pois, não!

As roupas dos ergontes serão determinadas pelas estações do ano com um cunho simbólico e as cores tiradas da figura universal. No verão, por exemplo, 1.ª estação, macrofísica e que representa o dia da vida, usar-se-ão as três cores fundamentais; no outono, 2.ª estação, a tarde da vida, cores sombrias; no inverno, 3.ª estação, microfísica, a noite da vida, roupas negras, e na primavera, a 4.ª estação, roupas brancas para corresponder ao albor da existência...

- Muito poético. As nossas casacas passarão a ser empregadas apenas nos bailes de máscaras, como fantasias de gosto. Também, que seria do vestido de Maria Stuart se não fosse o carnaval? Consolemo-nos com a homenagem dos futuros ergontes!

Enquanto essas loucuras eram ditas, Magnus Sondhal sorria.

- Uma religião tão nova deve ter o seu custo especial.

- Tem, com efeito: o kratu, ou culto público, e a magia, ou culto íntimo.

O kratu tem um quadro sinótico.

Ei-lo:

 

KARMA

(ou: - a Criação e Transformação Eterna, geradas e contempladas pelo Amor).

 

__________________________ _______________________

 

KOSMOS                    ONTOS                 | ETOS

                                                      | e

                                                      | ESTETOS

____________________________

EIDONOMIA E EIMOLOGIA                     | ERGONOMIA

                                                                | e

                                                                | EROSTERGIA

 

1.º Grau                     2.º Grau                3.º Grau

__________________________ _______________________

FISIOLATRIA

__________________________ ___________________________

IDOLATRIA     BIOLATRIA                 PSICOLATRIA

---------------    ----------------------  --------------------------

1.º Dia SOL         Fecundação    Sentir               Amor

2.º Dia LUA         Gestação       Conceber          Sabedoria

3.º Dia TERRA     Procriação      Construir         Poesia

4.º Dia MAR        Nutrição        Mecânica          Sensualismo

5.º Dia AR           Respiração     Química           Vitalismo

6.º Dia CÉU        Lhômição       Al-Químia         Animismo

7.º Dia NOITE     Subjetivação Hiper-Químia   Idealismo

----------------    ----------------------- -------------------------

Donde REFLEXÃO... CONSCIÊNCIA... MAGIA

 

A palavra MAGIA é empregada no sentido de sua etimologia Altaíca, isto é, derivada de MAC - Força ou Ação e I - sobre ou para o Futuro. Representa o estado superior da Vida, em que o Espírito ou a Razão dirige a Força Inconsciente.

A magia começa a revelar-se nas próprias iniciações maçônicas pela adoção de um nome esotérico que liberta das más influências. Só eu a posso empregar, porque sou o único a conhecer a hiperquímica ortológica, ou as leis naturais das influências psíquicas.

A hiperquímica, de hyper e da língua universal kim, que significa a parte invisível e indestrutível da matéria, tem duas ciências preliminares: a alquimia, ou tratado da reação das matérias em estado das correntes puras, e a químia. O princípio alquímico é que a matéria é una, vive, evolui e se transforma. O princípio unitário Lhôma entra como causa em todas as reações e por ele se explicam o fenômeno microfísico das funções cerebrais, a função das imagens interiores e a influência da moral sobre o físico.

Mas tudo isso está nos nossos livros: - A Reforma Sociocrática e a maior evolução do mundo, o Catecismo Ortológico a Arte de Enriquecer ou extinção do pauperismo pela instituição da plutometria em substituição à plutocracia, a Explicação de Deus ao Papa, a Pré-história segundo a Ortologia e outros volumes. O essencial acha-se porém num livro manuscrito, que não se imprime: - o Catecismo Esotérico.

Depois paternalmente o hierofante disse:

- Venha hoje ver uma sessão de magia. Nós comemoramos a morte de um iniciado. O templo é uma sala, mas é de dever deduzi-lo da figura da Lei Universal ou Al-Miz: ao norte a loja azul, ou do 1.º grau; a este a loja amarela, ou do 2.º grau; ao sul a loja rubra, ou do 3.º grau; a oeste o dumma, ou sala negra, no canto o templo ou empíreo. O dumma e o empíreo significam o branco e o negro, dois elementos antitéticos do Binário Universal... Venha às 11½.

Eu fui. Era uma noite úmida, de chuva, no dia 5 de agosto. O iniciado que morrera, meu amigo, um gênio musical, passara pela vida agarrado a todas as fantasias. Eu fui e delirei tranqüilamente. Tínhamos combinado estar na pensão de Sondhal. Quando lá cheguei, encontrei treze homens de chapelão desabado e manto negro. Pareciam conspiradores. Abri o manto de um deles e vi que estava forrado de seda roxa; abri o de outro, também, e todos tinham varinhas na mão, onde brilhavam ametistas, a pedra da magia! Reparei então que o hierofante era um deles.

- De que é feita essa bagueta? inquiri.

- De uma liga metálica que é um segredo alquímico! respondeu uma voz. E com o hierofante à frente, todos deslizaram pelo corredor escuro. Eu os seguia como a sombra dos seus mantos. De repente, pararam a um sinal seco e eu retive um grito. Na extremidade superior do cetro do hierofante, começava a bruxulear uma luz fosforescente.

- Meu Deus!

- Cala-te, é a luz física, e o au-lis!

Todos os magos ergueram verticalmente as baguetas estendendo o braço direito para o ar, e na extremidade de cada uma, como uma misteriosa gambiarra de vagalumes, o au-lis acendia a sua fulguração indizível. Nas copas dos chapéus dos magos vibrava o telegormo, que transmite as palavras pensadas.

A luz porém cessou, as varas abateram-se e os treze saíram para a rua como simples transeuntes.

No curto trajeto do hotel à sala do templo, eu tive a impressão de um ser à parte num mundo à parte, e quando cavamente a porta se fechou num cavo rebôo e subimos aos tropeços as escadas, pareceu-me cair outra vez, na amada vida. A luz reaparecera.

Na sala, cheia dessa luz, o hierofante subiu os três degraus do altar, voltou-se para os magos, deu na ara três pancadas e falou. Era a prece da Evocação. Agarrei-me a um portal, tremendo. Com toda a solenidade o homem foi ao outro canto e fez a segunda prece, a Invocação. Depois, voltado para o oriente disse a Efusão. Terminado que foi, sentou-se. Reparei então que havia um estrado e em cada canto sentavam-se quatro magos.

- Aquele estrado? fiz num sopro.

- É o palco dos Fantasmas, ou lig-ôma!

De novo três pancadas bateram. O hierofante, em pé, fez um gesto sagrado, colocando a mão esquerda sobre o coração, fonte do Viver e do Sentir, e a direita, ou da ação, na fronte, centro psíquico. Depois um gesto para o ar e para a fronte indicou o porvir e o ideal.

Todos os magos bradaram:

- Au-ár! An-ár!

E a voz do hierofante abriu na treva:

- "Pobre e triste humanidade de mortos!... Pressentiste o poder da alma humana, e inventaste a invocação, o culto e a prece!... Mas, a quem te dirigias tu? - As ficções impotentes!

"Não conhecias a matéria no seu estado unitário de Lhôma, embora teus grandes filósofos chegassem quase a determinar sua existência.

"Que era o culto do Lhôma na Pérsia antiga e o do Sôma, na Índia, senão o grande vislumbre da grande magia fisiolátrica!...

"Mas agora o Universo nos está revelado, em todas as suas maravilhosas manifestações: - aquímicas, químicas e hiperquímicas!...

"Pelo Cérebro, abalamos o Lhôma, que penetra toda a Matéria orgânica ou inorgânica!...

"E o Cérebro é um universo microfísico, onde os átomos valem os astros do espaço sideral!...

 "E lá dentro do crânio há luz, por que é do Lhôma tenebroso que, por toda parte, ela se gera?...

"Que mais pode surpreender ao Ortólogo?!...  Onde pode haver um canto no Universo que sua Vontade não penetre?!... Onde um Ser ou Fato que sua Microtagia não desvende?!...

"Homens mortos!... Vítimas da Feitiçaria teolátrica e da negra magia das forças brutas e inconscientes da Matéria!... Sede eternamente malditos!... Mostrai-vos ali! no palco dos fantasmas, em toda nudez do vosso hediondo Sofrimento!..."

Eu bati os dentes com um frio que traspassava os ossos. A luz acendia de vez em quando, e naquele estrado, onde os espíritos mais deviam estar, eu via o vazio, o vazio horrível, o vazio doloroso.

- "Surgi. Vós também, ó Heróis do Bem - continuara o mago - que vivereis eternamente, impulsionando os Progressos que só a Razão inspira!

"Ei-los!...

Eis os quadros da vida humana!... torpe, miserável!...

"Quem é aquele sublime LIC-UR, cercado de Amores e de Harmonias, e cuja presença de Luz dissipa e dissolve os tenebrosos e estúpidos NUROS corruptores?!...

"É o SAN-A'R...

"Ei-lo, sorridente e vitorioso!... vitorioso da própria Morte!

"Ei-lo sublime que nos aponta o Futuro, onde fulgura também a nossa suprema Vitória!

"Assim como ele anulou a corrupção dos Mortos, nos quadros telefênicos do Espaço sideral, nós também anularemos a corrupção dos Vivos decadentes, que são de mais na superfície do Planeta'

De mais! os que são de mais! eu ali dentro estava de mais! Então abri a porta, saí, olhando para trás, aterrado do san-ár; dos nuros, desci agarrado aos balaústres da escada e quando sentei na soleira da porta, fatigado, com o cérebro vazio, senti que suava e que me ardiam as faces.

No outro dia encontrei o fisiólatra Magnus acompanhado de vários iniciados.

- Vou fundar uma Universidade no Liceu de Artes e Ofícios. Não deixe de ir assistir às conferências preparatórias.

- Mas ontem, ontem que fizeram vocês?

Houve uma pausa.

- Meditamos até de manhã à beira da Sabedoria para que a Sabedoria viesse.

E Magnus Sondhal, com um volume de Nietzsche debaixo do braço, seguiu com os iniciados pela rua a fora, como se fosse um ser natural...

 

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