APRENDIZ DE JORNALISTA
JORNAL ON LINE LABORATÓRIO UFRN JULHO 2003


 

VIDA REAL

 

 

 

O verdadeiro show de realidade das residências universitárias.

            A história é sempre a mesma. Depois de superar as deficiências do ensino público e conseguir a aprovação no vestibular, estudantes carentes do interior do estado, sem parentes nem amigos na capital, sem dinheiro para alugar uma casa ou apartamento, vêem na residência universitária a única saída.

            A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) mantém um complexo de dez residências universitárias: oito em Natal (incluindo a de pós-graduação) e duas em Caicó. Conseguir uma vaga numa delas não é fácil. Além de ter que preencher uma série de pré-requisitos para atestar a sua carência financeira, o estudante ainda tem que enfrentar uma concorrência acirrada. As vagas são poucas e os interessados são muitos. Atualmente, são 447 residentes que, além do espaço onde vivem, dividem também problemas e alegrias.

Big Brother na real. Funciona mais ou menos como um reallity show. Quem embarca nessa aventura coletiva, tem que aprender a se relacionar com pessoas de personalidades diversas, acostumar-se com a ausência de privacidade e seguir determinadas regras em nome da boa convivência. Mesmo com todas as características de um “Big Brother”, a vida em uma residência universitária está longe de ser um show de televisão, desses com um grande prêmio no final.

Dificuldades. Num questionário distribuído entre os residentes, eles apontaram as principais dificuldades que enfrentam durante a estadia nas moradias universitárias. As mais relacionadas são: a distância da família e dos amigos, a falta de privacidade, o espaço inadequado – que se reflete na superlotação dos quartos – e a falta de uma infra-estrutura mínima para atender às suas necessidades. Também foram citados problemas quanto à higiene, alimentação, segurança e atendimento médico, odontológico e psicológico. Mas também houve quem dissesse não enfrentar nenhuma dificuldade.

            O fato é que em maior ou menor grau, o residente enfrenta muitas adversidades até chegar à conclusão do seu curso. Ele tem que adaptar-se à uma nova realidade de vida, longe de casa, junto a pessoas que ele não conhecia e nem escolheu conhecer. Trata-se de um terreno minado. Amizades e inimizades ocorrem com a mesma facilidade e freqüência. Quem vive num ambiente como esse, está sempre testando seus próprios limites.

Jogo Duro. Apesar de tudo, a maioria desses universitários se diz satisfeita com a vida na residência. Uns não vêem outra saída; outros consideram que a residência permite-lhes planejar a vida e garante-lhes as necessidades básicas de alimentação e moradia. Um estudante do curso de Engenharia da Computação destacou a sua satisfação na “aprendizagem dos diferentes valores individuais de cada residente, contribuindo para o amadurecimento e crescimento pessoal”. Outro estudante, de Psicologia, disse que está satisfeito com a vida acadêmica e consegue suportar a vida na residência universitária. Entre os que não estão nada contentes, a maioria reclama da falta de assistência da UFRN e de um certo “desprezo” a que são relegados. “O jogo é duro”, resumiu um aluno curso de Música.

Personagens. Mesmo sendo difícil assimilar os hábitos e o jeito de ser de cada um, o dia a dia entre os residentes tende a ser agradável. Irmanados por uma situação em comum, eles se esforçam para transformar o que seria um lugar triste e solitário num ambiente alegre e descontraído. Nessa grande “tenda” da vida real, há todo tipo de “personagem”: os despachados, que sempre dão um jeito de estar “por cima” e “por dentro” de tudo o que acontece, sendo um típico “relações públicas”; tem também os ensimesmados, que apenas observam o andar da carruagem de longe, sem se envolver  com nada nem ninguém; os politicamente corretos, que gostam das coisas funcionando exatamente como foram programadas; os relaxados, que além de estudar, aproveitam o tempo para se divertir nas famosas “farras”, regadas à música e bebida; os espertos, que sempre se aproveitam da boa vontade alheia e os palhaços, que nunca perdem a oportunidade de uma boa piada – principalmente se o motivo do riso for o colega ao lado.

            Como estão todos no mesmo “barco”, as divergências acabam sendo superadas – pelo menos parcialmente – e terminam surgindo laços muito fortes de amizades que podem até se estender além desse período na residência.

            Novamente, o mesmo aluno de Música sintetizou o espírito da coisa: “finja-se de louco”. Talvez, quem sabe, o que ele chamou de loucura seja mesmo um traço inerente da realidade ou uma válvula de escape de algo que poderia e/ou deveria ser mais pungente.

 Chance. Outra pergunta que constava no questionário era referente ao papel da residência universitária no contexto da universidade como um todo. Perguntamos se eles concordavam que a existência da residência é um elemento de resistência à elitização da UFRN. “Sim, porque dá uma chance à ralezada”; “Com certeza, até porque vejo a residência como um nivelador que tenta suprir a diferença que existe entre o aluno com condições e estudo e o que, além de ser carente, ainda enfrenta o obstáculo geográfico de ter a família morando no interior do estado”; “Não. Na UFRN há muita gente que é de uma classe social igual ou mais baixa que a nossa”; “Não, porque muitos que moram na residência têm condições financeiras bem razoáveis”. Essas foram algumas respostas.

            Independente de falhas e distorções na seleção, a residência universitária é, sem dúvida, um grande auxílio para esses estudantes carentes. A maioria não conseguiria fazer a graduação porque simplesmente não teriam onde morar.

            A residência acaba funcionando também como uma base para o crescimento profissional e financeiro dos residentes. Sem ter que arcar com as despesas de aluguel, luz e alimentação, muitos conseguem um emprego razoável e, depois de muitas economias, começam a melhorar seu patamar de vida. Alguns chegam a comprar carro e até mesmo fazer um financiamento para adquirir a casa ou apartamento próprio.

            Há quem torça o nariz para isso. Argumentam que, uma vez que alcançaram uma certa independência financeira, o justo seria que esses felizes residentes deixassem suas vagas para outras pessoas mais necessitadas. O caso é polêmico. A chefe do Departamento de Assistência ao Estudante (DEPAE), Maria das Graças de S. P. da Costa, não vê nenhum problema no fato de alguns morados prosperarem. O problema é que aqueles que aguardam por sua vez nas longas listas de espera sentem-se injustiçados. Enquanto os outros já construíram uma pequena estabilidade, eles correm o risco de ter que trancar suas matrículas por não dispor de um lugar para morar.

            Certamente o problema seria menor se houvesse mais vagas nas residências. O reitor da UFRN, Professor Ivonildo Rêgo, disse que durante sua administração pretende construir duas novas residências no campus – as Campus III e IV – para realojar os moradores da Mipibú e Praça Cívica, facilitando os trabalhos de manutenção e segurança sem, porém, alterar a questão das vagas. Seria apenas um remanejamento, uma vez que a universidade se desfaria das residências desocupadas.

O que fazer, então? O professor Ivonildo reconhece a insuficiência de vagas frente à demanda de alunos carentes. “Uma das razões”, aponta ele, “é que o número de estudantes da UFRN praticamente dobrou desde que as residências foram construídas e, hoje, elas são insuficientes”. Mas o reitor diz que a universidade não dispõe de recursos para novos investimentos. Segundo ele, os gastos com a manutenção das residências e com o restaurante universitário somam 10% (dez por cento) da verba da UFRN.

            O reitor citou o exemplo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que a mais de trinta anos criou uma fundação para apoiar o seu estudante necessitado. A UFMG instituiu uma taxa de matrícula de cinqüenta reais, cujo dinheiro  é utilizado para o auxílio das moradias e dos restaurantes universitários, além de ajudar com bolsas de apoio técnico, pesquisa e pós-graduação. É uma idéia que merece ser estudada e debatida. Não dá para ficar apenas reclamando e esperando que o dinheiro venha do Governo Federal. Ivonildo disse que o Governo não tem uma política de financiamento estudantil e que, além de pressioná-lo para isto, é preciso pensar outras alternativas.

 Morador Ilustre. O próprio reitor já foi um residente universitário e conhece bem de perto a situação de quem depende da residência. Natural da cidade de Pau dos Ferros, no alto-oeste do RN, filho de pais pobres, ele passou antes pela Casa do Estudante e depois chegou à residência, onde morou entre os anos de 1972 e 1975. Ele relatou que passou pelas mesmas dificuldades que os atuais moradores passam e que o convívio era intenso, muitas vezes superior ao que temos em casa. Para superar os problemas de dinheiro, começou a dar aulas numa escola estadual. O que ganhava dava para cobrir seus gastos e ainda “tomar uma cachacinha, que ninguém é de ferro”, confessou ele.

            O reitor admite que a universidade ainda deixa muito a desejar na assistência ao estudante do interior. Ele apontou algumas medidas que poderiam ser tomadas, como melhorar os ambientes para o estudo, que são reconhecidamente  precários, o acesso à informática,  que é muito limitado, facilitando a digitação e impressão de trabalhos, e criar meios para que o estudante tenha acesso à pesquisa na Internet.

O reitor disse que guarda as melhores recordações possíveis dessa época porque, segundo ele, a residência foi uma grande escola de vida, uma espécie de laboratório social. “O que move cada um de nós é a luta pela sobrevivência. Só o fato desses alunos chegarem à universidade, vindo de camadas carentes da sociedade, é uma demonstração de que eles são fortes”, concluiu o Professor Ivonildo.


Por: Alisson C. de Almeida, Gabriela de P. P. Freitas, Leonardo Pessoa e Raul F. L. Itúrria