Dois ensaios sobre o sujeito e o poder

Michel Foucault (*)
 

I - PORQUE ESTUDAR O PODER: A QUESTÃO DO SUJEITO

II - O PODER, COMO SE EXERCE?

1. "Como", não no sentido de "Como é que ele se manifesta?", mas "Como é que ele se exerce?"

2. Em que é que consiste a especificidade das relações de poder?

3. Como analisar a relação de poder?

4. Relações de poder e relações estratégicas


I - Porque estudar o poder: a questão do sujeito

 As idéias de que gostaria de falar aqui não se podem enquadrar nem na teoria nem na metodologia. Gostaria de inicialmente dizer qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos vinte anos. Não foi o de analisar os fenômenos do poder, nem de lançar as bases para uma tal análise. Procurei acima de tudo produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano na nossa cultura; tratei, nessa óptica, dos três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos. Existem em primeiro lugar os diferentes modos de investigação que procuram aceder ao estatuto de ciência; estou a pensar, por exemplo, na objetivação do sujeito falante na gramática geral, na filologia e na lingüística. Ou também, sempre neste primeiro modo, na objetivação do sujeito produtivo, do sujeito que produz, em economia e na análise das riquezas. Ou ainda, para tomar um terceiro exemplo, na objetivação devida ao simples fato de existir na vida, na história natural ou na biologia. Na segunda parte do meu trabalho, estudei a objetivação do sujeito naquilo que designarei de 'práticas divergentes'. O sujeito é quer dividido no interior dele mesmo, quer dividido dos outros. Este processo faz dele um objeto. As partilhas entre o louco e o homem são de espírito, o doente e o indivíduo com boa saúde, o criminoso e o "bem comportado", ilustra esta tendência.

Enfim, tenho procurado estudar - é esse o meu trabalho em curso - a maneira como um ser humano se transforma em sujeito; tenho orientado minhas pesquisas na direção da sexualidade, por exemplo - a maneira como o ser humano tem aprendido a reconhecer-se como sujeito de uma "sexualidade".

Não é portanto o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral das minhas investigações. 

É verdade que eu fui levado a interessar-me mais de perto pela questão do poder. Rapidamente me apercebi que, se o sujeito humano é apanhado nas relações de produção e nas relações de sentido, ele é igualmente apanhado nas relações de poder de uma grande complexidade. Ora, parece-me que nós dispomos, graças à história e à teoria econômica, de instrumentos adequados para estudar as relações de produção; igualmente, a lingüística e a semiótica fornecem instrumentos para o estudo das relações de sentido. Mas para aquilo que é as relações de poder, não há nenhum instrumento definido; nós temos recorrido a maneiras de pensar o poder que se apóiam quer nos modelos jurídicos (o que é que legitima o poder?), quer nos modelos institucionais (o que é o Estado?). Era por isso necessário alargar as dimensões de uma definição de poder se quiséssemos utilizar esta definição para estudar a objetivação do sujeito. Será que temos necessidade de uma teoria do poder? Visto que toda a teoria supõe uma objetivação prévia, nenhuma pode servir de base ao trabalho de análise. Mas o trabalho de análise não se pode fazer sem uma problematização dos aspectos tratados. E esta problematização implica um pensamento crítico - uma verificação constante. É necessário que nos asseguremos daquilo que chamarei as 'necessidades conceituais'. Isto significa que a problematização não se deve fundar numa teoria do objeto: o objeto problematizado não é o único critério de validade de uma problematização. Precisamos conhecer as condições históricas que motivam este ou aquele tipo de problematização. Precisamos ter uma consciência histórica da situação na qual vivemos. Em segundo lugar, temos que nos assegurar da realidade com que somos confrontados. Um jornalista de um grande jornal exprimia um dia a sua surpresa: "Por que é que tanta gente acentua a questão do poder atualmente? É isso um assunto importante? E tão independente que se possa falar dele sem ter em conta os outros problemas?"

Esta surpresa espantou-me. É-me difícil de acreditar que foi necessário esperar pelo século XX para que esta questão tenha sido enfim levantada. Para nós, de qualquer forma, o poder não é apenas uma questão teórica, mas qualquer coisa que faz parte da nossa experiência. (...) O fascismo e o estalinismo utilizaram e aperfeiçoaram os mecanismo já presentes na maior parte das outras sociedades. Não apenas isso, mas apesar da sua loucura interna, eles utilizaram numa grande medida as idéias e os procedimentos da nossa racionalidade política. O que é necessário, é uma nova economia das relações de poder - e utilizo aqui a palavra 'economia' no seu sentido teórico e prático. Dizendo as coisas de outra forma: depois de Kant, o papel da filosofia é o de impedir a razão de exceder os limites do que é dado pela experiência; mas depois dessa época também - isto é, depois do desenvolvimento do Estado moderno e da gestão política da sociedade - a filosofia tem igualmente por função vigiar os poderes excessivos da racionalidade política. E isto é pedir-lhe muito.

Existem fatos de uma extrema banalidade, que todo o mundo conhece. Mas não é porque são banais que eles não existem. O que é necessário fazer com os fatos banais, é descobrir - ou pelo menos tentar descobrir - qual o problema específico e talvez original que aí se estabelece. A relação entre racionalização e excessos do poder político é evidente. E nós não deveríamos ter de esperar a burocracia ou os campos de concentração para reconhecer a existência de relações desse tipo. Mas o problema que se põe é o seguinte: que fazer de uma tal evidência? Será necessário fazer um processo contra a razão? (...)

Vamos tentar analisar esse tipo de racionalismo que parece próprio da nossa cultura moderna e que encontra o seu ponto de ancoragem na Aufklärung (Iluminismo). Esta foi a abordagem de alguns membros da Escola de Frankfurt. O meu objetivo, contudo, não é o de encetar uma discussão das suas obras, embora importantes e preciosas. Mas mais o de propor um outro modo de análise das relações entre racionalização e poder.

Sem dúvida que é mais sensato não abordar globalmente a racionalização da sociedade ou da cultura, mas sim analisar o processo em diversos domínios em que cada um reenvia para uma experiência fundamental: a loucura, a doença, a morte, o crime, a sexualidade, etc. Penso que a palavra "racionalização" é perigosa. O que é necessário fazer, é analisar as racionalidades específicas mais do que invocar sem fim os progressos da racionalização em geral. Mesmo se a Aufklärung constituiu uma fase muito importante da nossa história e do desenvolvimento da tecnologia política, eu creio que é necessário remontar a processos muito mais longínquos se queremos compreender através de que mecanismos nós nos encontramos prisioneiros da nossa própria história.

Eu gostaria de sugerir aqui uma outra maneira de avançar para uma nova economia das relações de poder, que seja mais empírica, mais diretamente ligada à nossa situação presente, e que implique igualmente relações entre a teoria e a prática. Este novo modo de investigação consiste em tomar as formas de resistência aos diferentes tipos de poder como ponto de partida. Ou, para utilizar uma outra metáfora, consiste em utilizar esta resistência como um 'catalisador químico' que permita colocar em evidência as relações de poder, de ver onde elas se inscrevem, de descobrir os seus pontos de aplicação e os métodos que elas utilizam. Mais do que analisar o poder do ponto de vista da sua racionalidade interna, trata-se de analisar as relações de poder através do afrontamento de estratégias.

Por exemplo, seria necessário talvez, para compreender o que a sociedade entende por 'ser sensato', analisar o que se passa no campo da alienação. E igualmente, analisar o que se passa no campo da ilegalidade para compreender o que nós queremos dizer quando falamos de legalidade. Quanto às relações de poder, para compreender em que é que elas consistem, seria necessário talvez analisar as formas de resistência e os esforços desenvolvidos para tentar dissociar essas relações.

Proporei, como ponto de partida, que se tome uma série de oposições que se desenvolveram nestes últimos anos: a oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, da psiquiatria sobre os doentes mentais, da medicina sobre a população, da administração sobre a maneira como as pessoas vivem. Não é suficiente dizer que estas oposições são lutas contra a autoridade; é preciso tentar definir mais precisamente o que elas têm em comum.

  1. São lutas transversais; quero dizer com isto que elas não se limitam a um país particular. É claro que certos países favorecem o seu desenvolvimento, facilitam a sua extensão, mas elas não são restritas a um tipo particular de governo político ou econômico.

  2. As finalidades destas lutas são os efeitos do poder enquanto tais. Por exemplo, a recriminação que fazem à profissão médica não é o de ser uma empresa com fins lucrativos, mas de exercer sem controle um poder sobre os corpos, a saúde dos indivíduos, a sua vida e a sua morte.

  3. São lutas 'imediatas', e isto por duas razões. Para já porque as pessoas criticam as instâncias do poder que estão mais próximas delas (...). Em seguida, porque não pensam que uma solução para o seu problema possa residir num qualquer futuro (isto é, numa promessa de libertação, de revolução, no fim do conflito de classes). (...) Mas não são estas as suas características mais originais. 

  4. São lutas que coloca em questão o estatuto do indivíduo: por um lado, elas afirmam o direito à diferença e sublinham tudo o que pode tornar os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado, elas combatem tudo o que pode isolar o indivíduo, desligá-lo dos outros, cindir a vida comunitária, constranger o indivíduo a debruçar-se sobre si próprio e a ligar-se à sua identidade própria. Estas lutas não são exatamente por ou contra o "indivíduo", mas elas opõem-se aquilo que poderíamos designar por "governo pela individualização".

  5. Elas opõem uma resistência aos efeitos de poder que estão ligados aos saber, à competência e à qualificação. Elas lutam contra os privilégios do saber. Mas elas opõem-se também ao mistério, à deformação e a tudo que possa aí haver de mistificador nas representações que se impõem às pessoas. (...)

  6. Enfim, todas as lutas atuais rodam em torno de uma mesma questão: quem somos nós? Elas são uma recusa destas abstrações, uma recusa da violência do Estado econômico e ideológico que ignora que nós somos indivíduos, e também uma recusa da inquisição científica e administrativa que determina a nossa identidade.

Para resumir, o principal objetivo destas lutas não é o de atacar esta ou aquela instituição de poder, ou grupo, ou classe ou elite, mas sim uma técnica particular, uma forma de poder. Esta forma de poder exerce-se sobre a vida quotidiana imediata, que classifica os indivíduos em categorias, os designa pela sua individualidade própria, liga-os à sua identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que é necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. É uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos. Há dois sentidos para a palavra "sujeito": sujeito submetido a outro pelo controle e a dependência e sujeito ligado à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si. Nos dois casos a palavra sugere uma forma de poder que subjuga e submete.

De uma forma geral, pode-se dizer que há três tipos de lutas: a) aquelas que se opõem às formas de dominação (étnicas, sociais e religiosas); b) aquelas que denunciam as formas de exploração que separam o indivíduo daquilo que produz; c) e aquelas que combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo e asseguram assim a submissão aos outros (lutas contra a sujeição, contra as diversas formas de subjetividade e de submissão). (...) As sociedades feudais se desenrolaram predominantemente as lutas do primeiro tipo; no século XIX, as lutas contra a exploração; e, atualmente, predominam as lutas contra a submissão da subjetividade.

A razão pela qual este tipo de luta [contra a submissão da subjetividade] tende a prevalecer na nossa sociedade é devida ao fato que uma nova forma de poder político se desenvolveu de maneira contínua depois do século XVI. Esta nova estrutura política é o Estado. Mas na maior parte do tempo, o Estado é apercebido como um tipo de poder político que ignora os indivíduos, ocupando-se apenas dos interesses da comunidade ou, deveria dizer, de uma classe ou de um grupo de cidadãos escolhidos.

Tudo isto é de fato verdade. No entanto, gostaria de sublinhar o fato de o poder do Estado - e é essa uma das razões da sua força - é uma forma de poder simultaneamente globalizante e totalitária. Jamais, creio eu, na história das sociedades humanas - e mesmo na velha sociedade chinesa - se encontrou, no interior das mesmas estruturas políticas, uma combinação tão complexa de técnicas de individualização e de procedimentos totalizadores. Isto se deve ao fato de o Estado ocidental moderno ter integrado, sob uma forma política nova, uma velha técnica de poder que tinha nascido nas instituições cristãs. Esta técnica de poder, designamo-la por 'poder pastoral'.

E para começar, algumas palavras sobre este poder pastoral.

Já se disse muitas vezes que o cristianismo deu origem a um código de ética fundamentalmente diferente do mundo antigo. Mas insiste-se geralmente menos sobre o fato de que o cristianismo propôs e estendeu a todo o mundo antigo, novas relações de poder. O cristianismo é a única religião a organizar-se em Igreja. E como Igreja, o cristianismo postula em teoria que certos indivíduos são aptos, pela sua qualidade religiosa, a servir os outros, não tanto como príncipes, magistrados, profetas, adivinhos, benfeitores ou educadores, mas como pastores. 

Esta palavra designa nomeadamente uma forma de poder bem particular.

  1. É uma forma de poder cujo objetivo final é o de assegurar a salvação dos indivíduos no outro mundo.

  2. O poder pastoral não é simplesmente uma forma de poder que ordena; deve também estar pronto a sacrificar-se pela vida e salvação do rebanho. Nisto, distingue-se, portanto, do poder do soberano que exige um sacrifício da parte dos seus sujeitos a fim de salvar o trono.

  3. É uma forma de poder que não se preocupa apenas com o conjunto da comunidade, mas com cada indivíduo particular, durante toda a sua vida.

  4. Enfim, esta forma de poder não se pode exercer sem conhecer o que se passa na cabeça das pessoas, sem explorar as suas almas, sem as forçar a revelar os seus segredos mais íntimos. Implica um conhecimento da consciência e uma aptidão para a dirigir. Esta forma de poder é orientada pra a salvação (por oposição ao poder político). Ela é oblativa (por oposição ao princípio da soberania) e individualizante (por oposição ao poder jurídico). Ela é coextensiva à vida e no seu prolongamento; ela está ligada a uma produção de verdade - a verdade do indivíduo sobre ele mesmo.

Mas, direis vós, tudo isso pertence ao passado; a pastoral senão desapareceu, perdeu pelo menos o essencial que fazia a sua eficácia. Isso é verdade, mas penso que é preciso distinguir entre dois aspectos do poder pastoral: a institucionalização eclesiástica que desapareceu, ou pelo menos perdeu o seu vigor depois do século XVIII, e a função desta institucionalização que se espalhou e desenvolveu por fora da instituição eclesiástica. Produziu-se, no século XVIII, um fenômeno importante: uma nova distribuição, uma nova organização deste tipo de poder individualizante. Não creio que será necessário considerar o 'Estado Moderno' como uma entidade que se desenvolveu em detrimento dos indivíduos, ignorando quem eles são e até a sua existência, mas pelo contrário como uma estrutura muito elaborada, na qual os indivíduos podem ser integrados sob uma condição: que forneça a esta individualidade uma forma nova e que a submeta a um conjunto de mecanismos específicos.

Num sentido, pode-se ver o Estado como uma matriz de individualização ou uma nova forma de poder pastoral. Quero acrescentar algumas palavras a propósito deste novo poder pastoral.

  1. Observa-se, no decurso da sua evolução, uma mudança de objetivo. Passa-se da preocupação em conduzir as pessoas à salvação no outro mundo à idéia de que é preciso assegurá-lo aqui em baixo. E neste contexto, a palavra 'salvação' toma diversos sentidos: quer dizer saúde, renda, segurança, proteção contra os acidentes. Um certo número de objetivos 'terrestres' vem substituir as visões religiosas da pastoral tradicional e tanto mais facilmente que esta última, devido a diversas razões, sempre esteve acessoriamente ligada a alguns destes objetivos; basta pensar no papel da medicina e na sua função social que durante muito tempo foram assegurados pelas Igrejas católica e protestante.

  2. Assistiu-se conjuntamente a um reforço da administração do poder pastoral. Por vezes, esta forma de poder foi exercida ou, pelo menos, por uma instituição pública como a polícia. (não esqueçamos que a polícia foi inventada no século XVIII não somente para velar pela manutenção da ordem e da lei e para ajudar os governos a lutar contra os seus inimigos, mas também para assegurar o abastecimento das cidades, proteger a higiene e a saúde assim como todos os critérios considerados como necessários ao desenvolvimento do artesanato e do comércio.) Por vezes, o poder foi exercido pelas empresas privadas, sociedades de assistência, benfeitores e, duma forma geral, filantropo. Por outro lado, as velhas instituições, como por exemplo, a família, foram também mobilizadas para assegurar as funções pastorais. Enfim, o poder foi exercido por estruturas complexas como a medicina, que englobava simultaneamente as iniciativas privadas (a venda de serviços na base de uma economia de mercado) e certas instituições públicas como hospitais.

  3. Enfim, a multiplicação dos objetivos e dos agentes do poder pastoral permitiu centrar o desenvolvimento do saber sobre o homem em torno de dois pólos: um, globalizante e quantitativo, relativamente à população; o outro, analítico, relativamente ao indivíduo.

Uma das conseqüências, é que o poder pastoral, que tinha estado ligado durante séculos - de fato, mais de um milênio - a uma instituição religiosa bem particular, estendeu-se pouco a pouco ao conjunto do corpo social; encontrou apoio numa multidão de instituições. E, em vez de ter um poder pastoral e um poder político mais ou menos ligados um ao outro, mais ou menos rivais, percebemos desenvolver-se uma 'táctica' individualizante, característica de toda uma série de poderes múltiplos: aquele da família, da medicina, da psiquiatria, da educação, dos empregadores, etc. (...) Sem dúvida que o objetivo principal de hoje não é o de descobrir, mas de recusar aquilo que somos. Precisamos imaginar e construir aquilo que poderíamos ser para nos desembaraçar desta espécie de "duplo" constrangimento político que são a individualização e a totalização simultâneas das estruturas do poder moderno.

Podemos dizer, para concluir, que o problema ao mesmo tempo político, ético, social e filosófico que se nos coloca atualmente não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das suas instituições, mas o de nos libertarmos nós do Estado e do tipo de individualização que aí se retoma. Precisamos promover novas formas de subjetividade recusando o tipo de individualidade que nos impuseram durante vários séculos.

II - O poder, como se exerce?

Para alguns, interrogar-se sobre o 'como' do poder, será limitar-se a descrever os efeitos sem se referir jamais nem às causas nem à sua natureza. Isso seria fazer do poder uma substância misteriosa que se evita interrogar, sem dúvida porque se prefere não 'pôr em causa'. (...)

1. "Como", não no sentido de "Como é que ele se manifesta?", mas "Como é que ele se exerce?", "Como é que isso se passa quando os indivíduos exercem, como se diz, o seu poder sobre os outros?"

Deste "poder", é preciso distinguir para já daquele que se exerce sobre as coisas e que dá capacidade de as modificar, de as utilizar, de as consumir e de as destruir - um poder que remete para aptidões diretamente inscritas no corpo ou mediadas por extensões instrumentais. Digamos que se trata aqui de capacidade. O que caracteriza pelo contrário o "poder" que se trata de analisar aqui, é que ele coloca em jogo relações entre indivíduos (ou entre grupos). (...)

É preciso distinguir também relações de poder de relações de comunicação que transmitem uma informação através de uma língua, um sistema de signos ou outro médium simbólico. Sem dúvida que comunicar, é sempre uma certa forma de agir sobre o outro e sobre os outros. Ainda que a produção e a colocação em circulação de elementos significantes pode bem ter por objetivo ou por conseqüências efeitos de poder, estes não passam simplesmente de um aspecto daqueles. Quer passem ou não por sistemas de comunicação, as relações de poder têm a sua especificidade.

Relações de poder, relações de comunicação, capacidades objetivas não devem ser confundidas. Isto não significa que se trata de três domínios separados; e que haveria de um lado o domínio das coisas, da técnica finalizada, do trabalho e da transformação do real; do outro, o dos signos, da comunicação, da reciprocidade e da fabricação do sentido; e enfim aquele da dominação dos meios de constrangimento, da desigualdade e da ação dos homens sobre os homens. Trata-se de três tipos de relações que, de fato, estão sempre imbricados uns nos outros, dão um apoio recíproco e se servem mutuamente de instrumento. O pôr em ação das capacidades objetivas, nas suas formas mais elementares, implica relações de comunicação (quer se trate de informação prévia ou trabalho partilhado); ele está também ligada às relações de poder (quer se trate de tarefas obrigatórias, de gestos impostos por uma tradição ou uma aprendizagem, de subdivisões ou repartição mais ou menos obrigatória do trabalho). As relações de comunicação implicam atividades com um fim (que seriam o pôr um jogo correto de elementos significantes) e devido ao simples fato de modificarem o campo informativo dos parceiros, eles induzem efeitos de poder. Quanto às relações de poder elas exercem-se numa parte extremamente importante, através da produção e troca de signos; e elas não podem também ser dissociadas das atividades com um fim, quer se trate daquelas que permitem exercer esse poder (técnicas de adestramento, os procedimentos de dominação, as maneiras de obter obediência) ou aquelas que fazem apelo para se desenvolverem às relações de poder (como na divisão do trabalho e na hierarquia das tarefas).

É claro que a coordenação entre estes três tipos de relações não é nem uniforme nem constante. Não há numa dada sociedade um tipo geral de equilíbrio entre as atividades com um fim, os sistemas de comunicação e as relações de poder. Existem sobretudo diversas formas, diversos lugares, diversas circunstâncias ou ocasiões em que estas inter-relações se estabelecem a partir de um modelo específico. Mas há também 'blocos' nos quais o ajustamento das capacidades, das redes de comunicação e as relações de poder constituem sistemas regulados e concertados. Seja, por exemplo, uma instituição escolar: o seu arranjo espacial, o regulamento meticuloso que rege a sua vida interior, as diferentes atividades que aí são organizadas, os diversos personagens que aí vivem ou aí se encontram, cada um com uma função, um lugar, uma visão bem definida - tudo isto constitui um 'bloco' de capacidade-comunicação-poder. A atividade que assegura a aprendizagem e a aquisição de aptidões ou de tipos de comportamento aí se desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas (lições, questões e respostas, ordens, exortações, signos codificados de obediência, marcas diferenciais de valor de cada um e de níveis de saber) e através de uma série de procedimentos de poder (confinamento, vigilância, recompensa e punição, hierarquia piramidal).

Estes blocos aonde o pôr em ação das capacidades técnicas, o jogo das comunicações e as relações de poder são ajustados uns aos outros, segundo fórmulas refletidas, constituem aquilo que podemos designar, alargando um pouco o sentido da palavra, por 'disciplinas'. A análise empírica de certas disciplinas tal como elas se constituíram historicamente, apresenta por isso mesmo um certo interesse. Para já porque as disciplinas mostram, segundo esquemas artificialmente claros e decantados, a maneira como se podem articular uns sobre os outros os sistemas de finalidade objetiva, de comunicação e de poder. Porque elas mostram também diferentes modelos de articulações (uma vez com predominância das relações de poder e obediência, como nas disciplinas de tipo monástico ou de tipo penitenciário, outra com predominância das atividades finalizadas como nas disciplinas de oficinas ou hospitais, outra com predominância das relações de comunicação como nas disciplinas de aprendizagem, outra também com uma saturação dos três tipos de relações como talvez na disciplina militar, onde uma entropia de sinais marca até à redundância as relações de poder serradas e cuidadosamente calculadas para procurar um certo número de efeitos técnicos.

Aquilo que é preciso entender por disciplinarização das sociedades depois do século XVIII na Europa, não é que os indivíduos que dela fazem parte se tornam cada vez mais obedientes; nem que eles se põem todos a assemelhar-se em casernas, escolas ou prisões; mas que aí se procurei um ajustamento cada vez mais controlado - cada vez mais racional e econômico - entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder.

Abordar o tema do poder por uma análise do 'como' é portanto operar, por relação à suposição de um 'Poder' fundamental, diversas deslocações críticas. É dar-se como objeto de análise as relações de poder e não um poder; relações de poder que são distintas das capacidades objetivas assim como das relações de comunicação; relações de poder que se podem descortinar na diversidade do seu encadeamento estas capacidades e estas relações.

2. Em que é que consiste a especificidade das relações de poder?

O exercício do poder não é simplesmente uma relação entre 'parceiros', individuais ou coletivos; é um modo de ação de alguns alguns outros. Isso quer dizer, claro, que não uma coisa como o Poder, ou do poder que existiria globalmente, massivamente ou num estado difuso, concentrado ou distribuído: só existe o poder que se exerce por uns sobre os outros; o poder só existe no ato, mesmo se ele se inscreve num campo de possibilidades em desordem que se apóiam em estruturas permanentes. (...) Será que isto significa que será necessário procurar o caráter próprio das relações de poder do lado de uma violência que seria a sua forma primitiva, o segredo permanente e o último recurso - aquilo que aparece como a sua verdade em última instância, quando ele é obrigado a retirar a sua máscara e a mostrar-se tal qual ele é ? (...)

[O poder] É um conjunto de ações sobre ações possíveis: ele opera sobre o campo de possibilidades aonde se vêm inscrever o comportamento dos sujeitos atuantes: ele incita, ele induz, ele contorna, ele facilita ou torna mais difícil, ele alarga ou limita, ele torna mais ou menos provável; no limite ele constrange ou impede completamente; mas ele é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos atuantes, enquanto eles agem ou são susceptíveis de agir. Uma ação sobre ações.

O termo conduta com o seu equívoco é talvez um dos que podem melhor mostrar o que há de específico nas relações de poder. A conduta é tanto o ato de conduzir os outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) como a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades. O exercício do poder consiste em 'conduzir as condutas' e a gerir a probabilidade. (...) P. 314

A relação de poder e a insubmissão da liberdade não podem ser separadas. O problema central do poder não é da servidão voluntária (como podemos nós desejar ser escravos?): no coração da relação de poder, provocando-a sem cessar, está a relutância do querer e a intransitividade da liberdade. Mais do que um antagonismo essencial seria melhor falar de um agonismo - duma relação que é simultaneamente incitação recíproca e luta; seria menos uma oposição termo a termo que os bloqueia um em face do outro e mais uma provocação permanente.

3. Como analisar a relação de poder?

É perfeitamente legítimo analisar nas instituições bem determinadas; estas constituem um observatório privilegiado para as apanhar, diversificadas, concentradas e postas em ordem, surgem, ao seu mais alto nível de eficácia; é ali que, numa primeira observação, podemos esperar ver aparecer a forma e a lógica dos seus mecanismos elementares. No entanto a análise das relações de poder em espaços institucionais fechados apresenta um certo número de inconvenientes. Para já, o fato de uma parte importante dos mecanismos postos em ação pela instituição serem destinados a assegurar a sua própria conservação, leva ao risco de decifrar, sobretudo nas relações de poder 'intra-institucionais', as funções essencialmente reprodutivas. Em segundo lugar, arriscamo-nos, ao analisar as relações de poder a partir das instituições, a procurar nelas próprias a explicação e a origem delas, ou seja, em suma a explicar o poder pelo poder. Enfim, na medida em que as instituições agem essencialmente pela colocação em jogo de dois elementos: as regras (explícitas ou silenciosas) e um aparelho sugestionando-nos a dar a um e a outro um privilégio exagerado na relação de poder e a ver nelas apenas modulações da lei e da coerção.

Não se trata de negar a importância das instituições na gestão das relações de poder. Mas de sugerir que é mais importante analisar as instituições a partir das relações de poder e não o inverso; e que o ponto de ancoragem destas relações, mesmo se elas se corporizam e cristalizam numa instituição, tem de se procurar para além. (...) p. 316

Concretamente, a análise das relações de poder exige que se estabeleça um certo número de pontos:

  1. O sistema de diferenciações que permitem agir sobre a ação dos outros: diferenças jurídicas ou tradicionais de estatuto ou privilégio; diferenças econômicas na apropriação de riquezas ou bens; diferenças de lugar nos processos de produção; diferenças lingüísticas ou culturais; diferenças no saber-fazer ou nas competências, etc. Toda a relação de poder coloca em ação diferenciações que são para ela simultaneamente condições e efeitos.

  2. O tipo de objetivos perseguidos por aqueles que agem sobre a ação dos outros: manutenção de privilégios, acumulação de lucros, pôr em ação a autoridade estatutária, exercício de uma função ou profissão.

  3. As modalidades instrumentais: conforme o poder é exercido pela ameaça das armas, pelos efeitos da palavra, através das disparidades econômicas, por mecanismos mais ou menos complexos de controle, por mecanismos de vigilância, com ou sem arquivos, segundo regras explícitas ou não, permanentes ou modificáveis, com ou sem dispositivos materiais, etc.

  4. As formas de institucionalização: estas podem misturar disposições tradicionais, estruturas jurídicas, fenômenos de habituação ou de moda (como se vê nas relações de poder que atravessam a instituição familiar); elas podem também adotar a forma de um dispositivo fechado sobre si mesmo com os seus locais específicos, os seus regulamentos próprios, as suas estruturas hierárquicas cuidadosamente desenhadas, e uma relativa autonomia funcional (como nas instituições escolares ou militares); elas podem também formar sistemas muito complexos dotados de aparelhos múltiplos, como no caso do Estado que tem por função constituir o envelope geral, a instância de controle global, o princípio de regulação e, numa certa medida também, de distribuição de todas as relações de poder num dado conjunto social;

  5. Os graus de racionalização: como o colocar em jogo das relações de poder como ação sobre um campo de possibilidade pode ser mais ou menos elaborado em função da eficácia dos instrumentos e da certeza dos resultados (refinamentos tecnológicos mais ou menos grandes no exercício do poder) ou ainda em função do custo eventual (quer se trate do 'custo' econômico dos meios colocados em ação, ou do custo 'reacional' constituído pelas resistências encontradas). O exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou quebra: ela elabora-se, transforma-se, organiza-se, dota-se de procedimentos mais ou menos ajustados.

Assim se vê porque é que a análise das relações de poder não se pode limitar ao estudo de uma série de instituições, nem mesmo ao estudo de todas aquelas que merecem o nome de 'político'. As relações de poder enraízam-se no conjunto da rede social. Isto não quer dizer que há um princípio de Poder primeiro e fundamental que domina até ao mais pequeno elemento da sociedade; mas sim que a partir desta possibilidade de ação sobre a ação dos outros que é coextensiva a toda a relação social, formas múltiplas de disparidade individual, de objetivos, de instrumentações dadas sobre nós e aos outros, de institucionalização mais ou menos setorial ou global, de organização mais ou menos refletida, se definem as formas diferentes de poder. As formas e os lugares de 'governo' dos homens uns pelos outros são múltiplas na nossa sociedade: elas se sobrepõem, se entrecruzam, se limitam e se anulam por vezes, se reforçam noutros casos. Que o Estado nas sociedades contemporâneas não seja simplesmente uma das formas ou um dos lugares - seja ele o mais importante - de exercício do poder, mas que de uma certa maneira todos os outros tipos de relações de poder se referem a ele, é um fato adquirido. Mas não é porque cada uma deriva dele. É mais porque se produziu uma estatização contínua das relações de poder (ainda que não tenha adquirido a mesma forma na ordem pedagógica, judiciária, econômica, familiar). Referindo-se ao sentido, desta vez restrito, da palavra 'governo', pode-se dizer que as relações de poder foram progressivamente governamentalizadas, isto é, elaboradas, racionalizadas e centralizadas sob a forma e sob a caução das instituições estatais.

4. Relações de poder e relações estratégicas

A palavra estratégia é utilizada correntemente em três sentidos. Para já, para designar a escolha dos meios empregues para chegar a um fim; trata-se de uma racionalidade posta em ação para atingir um objetivo. Para designar a maneira como um parceiro, num dado jogo, age em função daquilo que ele pensa ser a ação dos outros, e daquilo que ele estima ser o que os outros pensam ser a sua; em suma a maneira como se tenta ter o comando sobre o outro. 

Enfim para designar o conjunto de procedimentos utilizados num afrontamento para privar o adversário dos seus meios de combate e levá-lo a renunciar à luta; trata-se dos meios destinados a obter a vitória. Estas três significações juntam-se nas situações de afrontamento - guerra ou jogo - onde o objetivo é o de agir sobre um adversário de tal maneira que a luta para ele seja impossível. A estratégia define-se pela escolha das soluções 'vitoriosas'. Mas é preciso ter em atenção que se trata aí de um tipo bem particular de situação; e que há outros onde é necessário manter a distinção entre os diferentes sentidos da palavra estratégia.

Referindo-nos ao primeiro sentido indicado pode-se chamar 'estratégia do poder' ao conjunto de meios postos em ação para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Pode-se falar de estratégia própria às relações de poder na medida em que elas constituem modos de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros. Pode-se então decodificar em termos de estratégias os mecanismos postos em ação nas relações de poder. Mas o ponto mais importante é evidentemente a relação entre relações de poder e estratégias de afrontamento. Pois se é verdade que no coração das relações de poder e como condição permanente da sua existência, há uma insubmissão e liberdades essencialmente retentoras, não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem retorno eventual; toda a relação de poder implica, portanto, ao menos de forma virtual, uma estratégia de luta, sem que por isso elas se venham a sobrepor, a perder a sua especificidade e finalmente a confundir-se. Elas constituem uma para a outra uma espécie de limite permanente, um ponto de reversão possível. Uma relação de afrontamento reencontra o seu termo, o seu momento final (e a vitória de um dos dois adversários) logo que o jogo de reações antagônicas se vem substituir aos mecanismos estáveis pelas quais se pode conduzir de uma forma bastante constante e com suficiente certeza a conduta dos outros; para uma relação de afrontamento, desde que não seja uma luta de morte, a fixação de uma relação de poder constitui um ponto de mira - simultaneamente o seu cumprimento e a sua colocação em suspenso. E no outro sentido, para uma relação de poder, a estratégia de luta a constitui também uma fronteira: aquela ou a indução calculada das condutas nos outros não pode ir além da réplica à sua própria ação. 

Como se sabe não é possível aí haver relação de poder sem pontos de insubmissão que por definição lhe escapam, toda a intensificação, toda a extensão das relações de poder para as submeter não pode deixar de conduzir aos limites do exercício do poder; este reencontra então a sua finalidade seja num tipo de ação que reduz o outro à impotência total (uma vitória sobre o adversário substitui-se ao exercício do poder), seja numa inversão daqueles que governam e a sua transformação em adversários. Em suma toda a estratégia de afrontamento sonha em transformar-se em relação de poder; e toda a relação de poder pende, na medida em que ela segue a sua própria linha de desenvolvimento e que evita as resistências formais, a tornar-se estratégia 'vitoriosa'.

De fato, entre relação de poder e estratégia de luta, há um apelo recíproco, encadeamento indefinido e trocas perpétuas. (...)


(*)Tradução parcial do texto: Michel Foucault, "Deux essais sur le sujet et le pouvoir", in Hubert Freyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault. Un parcours philosophique, Paris, Gallimard, 1984, pp. 297-321