AS RELIGIÕES DO RIO - PRIMEIRA PARTE

NO MUNDO DOS FEITIÇOS

 

 

OS FEITICEIROS

Antônio é como aqueles adolescentes africanos de que fala o escritor inglês. Os adolescentes sabiam dos deuses católicos e dos seus próprios deuses, mas só veneravam o uísque e o schilling. Antônio conhece muito bem N. S.ª das Dores, está familiarizado com os orixálas da África, mas só respeita o papel-moeda e o vinho do Porto. Graças a esses dois poderosos agentes, gozei da intimidade de Antônio, negro inteligente e vivaz; graças a Antônio, conheci as casas das ruas de São Diogo, Barão de S. Felix, Hospício, Núncio e da América, onde se realizam os candomblés e vivem os pais-de-santo. E rendi graças a Deus, porque não há decerto, em toda a cidade, meio tão interessante.

Vai V.S. admirar muita coisa! - dizia Antônio a sorrir; e dizia a verdade.

Da grande quantidade de escravos africanos vindos para o Rio no tempo do Brasil colônia e do Brasil monarquia, restam uns mil negros. São todos das pequenas nações do interior da África, pertencem ao igesá, oié, ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se consideram filhos dos ibouam, ixáu dos gêge e dos cambindas. Alguns ricos mandam a descendência brasileira à África para estudar a religião, outros deixam como dote aos filhos cruzados daqui os mistérios e as feitiçarias. Todos, porém, falam entre si um idioma comum: - o eubá.

Antônio, que estudou em Lagos, dizia:

- O eubá para os africanos é como o inglês para os povos civilizados. Quem fala o eubá pode atravessar a África e viver entre os pretos do Rio. Só os cambindas ignoram o eubá, mas esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil. Quando os cambindas falam, misturam todas as línguas... Agora os orixás e os alufás só falam o eubá.

- Orixás, alufás? - fiz eu, admirado.

- São duas religiões inteiramente diversas. Vai ver.

Com efeito. Os negros africanos dividem-se em duas grandes crenças: os orixás e os alufás.

Os orixás, em maior número, são os mais complicados e os mais animistas. Litólatras e fitólatras, têm um enorme arsenal de santos, confundem os santos católicos com os seus santos, e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada casco de tartaruga, em cada erva, uma alma e um espírito. Essa espécie de politeísmo bárbaro tem divindades que se manifestam e divindades invisíveis. Os negros guardam a idéia de um Deus absoluto como o Deus católico: Orixa-alúm. A lista dos santos é infindável. Há o orixalá, que é o mais velho, Axum, a mãe dágua doce, Ie-man- já, a sereia, Exu, o diabo, que anda sempre detrás da porta, Sapanam, o Santíssimo Sacramento dos católicos, o Irocô, cuja aparição se faz na árvore sagrada da gameleira, o Gunocô, tremendo e grande, o Ogum, S. Jorge ou o Deus da guerra, a Dadá, a Orainha, que são invisíveis, e muitos outros, como o santo do trovão e o santo das ervas. A juntar a essa coleção complicada, têm os negros ainda os espíritos maus e os heledás ou anjos da guarda.

É natural que para corresponder à hierarquia celeste seja necessária uma hierarquia eclesiástica. As criaturas vivem em poder do invisível e só quem tem estudos e preparo pode saber o que os santos querem. Há por isso grande quantidade de autoridades religiosas. Às vezes encontramos nas ruas negros retintos que mastigam sem cessar. São babalaôs, matemáticos geniais, sabedores dos segredos santos e do futuro da gente; são babás que atiram o endilogum; são babaloxás, pais-de-santos veneráveis. Nos lanhos da cara puseram o pó da salvação e na boca têm sempre o obi, noz de cola, boa para o estômago e asseguradora das pragas.

Antônio, que conversava dos progressos da magia na África, disse-me um dia que era como Renan e Shakespeare: vivia na dúvida. Isso não o impedia de acreditar nas pragas e no trabalhão que os santos africanos dão.

- V. s. não imagina! Santo tem a festa anual, aparece de repente à pessoa em que se quer meter e esta é obrigada logo a fazer festa; santo comparece ao juramento das Iauô e passa fora, do Carnaval à Semana Santa; e logo quer mais festa... Só descansa mesmo de fevereiro a abril.

- Estão veraneando.

- No carnaval os negros fazem ebó.

- Que vem a ser ebó?

- Ebó é despacho. Os santos vão todos para o campo e ficam lá descansando.

- Talvez estejam em Petrópolis.

- Não. Santo deixa a cidade pelo mato, está mesmo entre as ervas.

- Mas quais são os cargos religiosos?

- Há os babalaôs, os açoba, os aboré, grau máximo, as mães-pequenas, os ogan, as agibonam...

A lista é como a dos santos, muito comprida, e cada um desses personagens representa papel distinto nos sacrifícios, nos candomblés e nas feitiçarias. Antônio mostra-me os mais notáveis, os pais-de-santo: Oluou, Eruosaim, Alamijo, Adé-Oié, os babalaôs Emídio, Oloô-teté, que significa treme-treme, e um bando de feiticeiros: Torquato requipá ou fogo pára-chuva, Obitaiô, Vagô, Apotijá, Veridiana, Crioula Capitão, Rosenda, Nosuanan, a célebre Chica de Vavá, que um político economista protege...

- A Chica tem proteção política?

- Ora se tem! Mas que pensa o senhor? Há homens importantes que devem quantias avultadas aos alufás e babalaôs que são grau 32 da Maçonaria.

Dessa gente, poucos lêem. Outrora ainda havia sábios que destrinçavam o livro sagrado e sabiam porque Exu é mau - tudo direitinho e claro como água. Hoje a aprendizagem é feita de ouvido. O africano egoísta pai-de-santo, ensina ao aboré, as iauô quando lhes entrega a navalha, de modo que não só a arte perde muitas das suas fases curiosas como as histórias são adulteradas e esquecidas.

- Também agora não é preciso saber o Saó Hauin. Negro só olhando e sabendo o nome da pessoa pode fazer mal, diz Antônio.

Os orixás são em geral polígamos. Nessas casas das ruas centrais de uma grande cidade, há homens que vivem rodeados de mulheres, e cada noite, como nos sertões da África, o leito do babaloxás é ocupado por uma das esposas. Não há ciúmes, a mais velha anuncia quem a deve substituir, e todas trabalham para a tranqüilidade do pai. Oloô-Teté, um velho que tem noventa anos no mínimo, ainda conserva a companheira nas delícias do himeneu, e os mais sacudidos transformam as filhas-de-santo em huris de serralhos.

Os alulás têm um rito diverso. São maometanos com um fundo de misticismo. Quase todos dão para estudar a religião, e os próprios malandros que lhes usurpam o título sabem mais que os orixás.

Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua, sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.

- Só os alufás ricos sentam-se em peles de tigre, diz-nos Antônio.

Essas criaturas contam à noite o rosário ou tessubá, têm o preceito de não comer carne de porco, escrevem as orações numas taboas, as atô, com tinta feita de arroz queimado, e jejuam como os judeus quarenta dias a fio, só tomando refeições de madrugada e ao pôr-do-sol.

Gente de cerimonial, depois do assumy, não há festa mais importante como a do ramadan, em que trocam o saká ou presentes mútuos. Tanto a sua administração religiosa como a judiciária estão por inteiro independentes da terra em que vivem.

Há em várias tribos vigários gerais ou ladamos, obedecendo ao lemano, o bispo, e a parte judiciária está a cargo dos alikaly, Juizes, sagabamo, imediatos de juizes, e assivajiú, mestre de cerimônias.

Para ser alufá é preciso grande estudo, e esses pretos que se fingem sérios, que se casam com gravidade, não deixam também de fazer amuré com três e quatro mulheres.

- Quando o jovem alufá termina o seu exame, os outros dançam o opasuma e conduzem o iniciado a cavalo pelas ruas, para significar o triunfo.

- Mas essas passeatas são impossíveis aqui, brado eu.

- Não são. As cerimônias realizam-se sempre nas estações dos subúrbios, em lugares afastados, e os alufás, vestem as suas roupas brancas e o seu gorro vermelho.

Naturalmente Antônio fez-me conhecer os alufás:

Alikali; o lemano atual, um preto de pernas tortas, morador à rua Barão de S. Félix, que incute respeito e terror; o Chico Mina, cuja filha estuda violino, Alufapão, Ojó, Abacajebú, Ginjá, Manê, brasileiro de nascimento, e outros muitos.

Os alufás não gostam da gente de santo a que chamam auauadó-chum; a gente de santo despreza os bichos que não comem porco, tratando-os de malés. Mas acham-se todos relacionados pela língua, com costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da feitiçaria. Os orixás fazem sacrifícios, afogam os santos em sangue, dão-lhes comidas, enfeites e azeite-de-dendê.

Os alufás, superiores, apesar da proibição da crença, usam dos aligenum, espíritos diabólicos chamados para o bem e o mal, num livro de sortes marcado com tinta vermelha e alguns, os maiores, como Alikali, fazem até idams ou as grandes mágicas, em que a uma palavra cabalística a chuva deixa de cair e obis aparecem em pratos vazios.

Antes de estudar os feitiços, as práticas por que passam as iauô nas camarinhas e a maneira dos cultos, quis ter uma impressão vaga das casas e dos homens.

Antônio levou-me primeiro à residência de um feiticeiro alufá. Pelas mesas, livros com escrituras complicadas, ervas, coelhos, esteiras, um calamo de bambu finíssimo.

Da porta o guia gritou:

- Salamaleco.

Ninguém respondeu.

- Salamaleco!

- Maneco Lassalama!

No canto da sala, sentado numa pele de carneiro, um preto desfiava o rosário, com os olhos fixos no alto.

- Não é possível falar agora. Ele está rezando e não quer conversar. Saímos, e logo na rua encontramos o Xico Mina. Este veste, como qualquer de nós, ternos claros e usa suíças cortadas rentes. Já o conhecia de o ver nos cafés concorridos, conversando com alguns deputados. Quando nos viu, passou rápido.

- Está com medo de perguntas. Chico gosta de fingir.

Entretanto, no trajeto que fizemos do Largo da Carioca à praça da Aclamação, encontramos, a fora um esverdeado discípulo de Alikali, Omancheo, como eles dizem, duas mães-de-santo, um velho babalaô e dois babaloxás.

Nós íamos à casa do velho matemático Oloô-Teté.

As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora, mas estão cheias de negros baianos e de mulatos. São quase sempre rótulas lobregas, onde vivem com o personagem principal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, móveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos; por cima das mesas, terrinas, pucarinhos de água, chapéus de palha, ervas, pastas de oleado onde se guarda o opelé; nas paredes, atabaques, vestuários esquisitos, vidros; e no quintal, quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos.

Há na atmosfera um cheiro carregado de azeite-de-dendê, pimenta-da-costa e catinga. Os pretos falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha. Não fosse a credulidade, a vida ser-lhes-ia difícil, porque em cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular.

Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.

- Está pensando! - dizem os outros.

De repente, os pobres velhos ingênuos acordam,  com um sonho mais forte nessa confusa existência de pedras animadas e ervas com espírito.

 - Xangô diz que eu tenho de fazer sacrifício!

Xangô, o deus do trovão, ordenou no sono, e o opelê, feito de cascas de tartaruga e batizado com sangue, cai na mesa enodoada para dizer com que sacrifício se contenta Xangô.

Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no sofá. As filhas-de-santo, prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência, a gente que as vai procurar dá-lhes o supérfluo. A preocupação destes é saber mais coisas, os feitiços desconhecidos, e quando entra o que sabe todos os mistérios, ajoelham assustados e beijam-lhe a mão, soluçando:

- Diz como se faz a cantiga e eu te dou todo o meu dinheiro!

À tarde, chegam as mulheres, e os que por acaso trabalham em alguma pedreira. Os feiticeiros conversam de casos, criticam-se uns aos outros, falam com intimidade das figuras mais salientes, do país, do imperador, de que quase todos têm o retrato, de Cotegipe, do barão de Mamanguape, dos presidentes da República.

As mulheres ouvem mastigando obi e cantando melopéas sinistramente doces. Essas melopéas são quase sempre as preces, as evocações, e repetem sem modalidade, por tempo indeterminado, a mesma frase.

Só pelos candomblés ou sessões de grande feitiçaria, em que os babalaôs estão atentos e os pais-de-santo trabalham dia e noite nas camarinhas ou fazendo evocações diante dos fogareiros com o tessubá na mão, é que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida de acassá com azeite-de-dendê.

Quando entramos na casa de Oloô-Teté, o matemático macróbio e sensual, uma velha mina, que cantava sonambulicamente, parou de repente.

- Pode continuar.

Ela disse qualquer coisa de incompreensível.

- Está perguntando se o senhor lhe dá dois tostões, ensina-nos Antônio.

- Não há dúvida.

A preta escancara a boca, e, batendo as mãos, põe-se a cantar:

Baba ounlô, ó xocotám, o ilélê.

- Que vem a ser isso?

- É o final das festas, quando o santo vai embora. Quer dizer: papai já foi, já fez, já acabou; vai embora!

Eu olhava a réstia estreita do quintal onde dormiam jabotis.

- O jaboti é um animal sagrado?

- Não, diz-nos o sábio Antônio. Cada santo gosta do seu animal. Xangô, por exemplo, come jaboti, galo e carneiro. Abaluaié, pai de varíola, só gosta de cabrito. Os pais-de-santo são obrigados pela sua qualidade a fazer criação de bichos para vender e tê-los sempre à disposição quando precisam de sacrifício. O jaboti é apenas um bicho que dá felicidade. O sacrifício é simples. Lava-se bem, às vezes até com champanha, a pedra que tem o santo e põe-se dentro da terrina. O sangue do animal escorre; algumas das partes são levadas para onde o santo diz e o resto a roda come.

- Mas há sacrifícios maiores para fazer mal às pessoas?

- Há! para esses até se matam bois.

- Feitiço pega sempre, sentencia o ilustre Oloô-Tetê, com a sua prática venerável. Não há corpo-fechado. Só o que tem é que uns custam mais. Feitiço para pegar em preto é um instante, para mulato já custa, e então para cair em cima de branco a gente sua até não poder mais. Mas pega sempre. Por isso preto usa sempre o assiqui, a cobertura, o breve, e não deixa de mastigar obi, noz de cola preservativa.

Para mim, homem amável, presentes alguns companheiros seus, Oloô-Tetê tirou o opelé que há muitos anos foi batizado e prognosticou o meu futuro.

Este futuro vai ser interessante. Segundo as cascas de tartaruga que se voltavam sempre aos pares, serei felicíssimo, ascendendo com a rapidez dos automóveis a escada de Jacó das posições felizes. É verdade que um inimigozinho malandro pretende perder-me. Eu, porém, o esmagarei, viajando sempre com cargos elevados e sendo admirado.

Abracei respeitoso o matemático que resolvera o quadrado da hipotenusa do desconhecido.

- Põe dinheiro aqui - fez ele.

Dei-lhe as notas. Com as mãos trêmulas, o sábio a apalpou longamente.

- Pega agora nesta pedra e nesta concha. Pede o que tiveres vontade à concha, dizendo sim, e à pedra dizendo não.

Assim fiz. O opelé caiu de novo no encerado. A concha estava na mão direita de Antônio, a pedra na esquerda, e Oloô tremia falando ao santo, com os negros dedos trêmulos no ar.

- Abra a mão direita! ordenou.

Era a concha.

- Se acontecer, ossumcê dá presente a Oloô?

- Mas decerto.

Ele correu a consultar o opelé. Depois sorriu.

- Dá, sim, santo diz que dá. - E receitou-me os preservativos com que eu serei invulnerável.

Também eu sorria. Pobre velho malandro e ingênuo! Eu perguntara apenas, modestamente, à concha do futuro se seria imperador da China... Enquanto isso, a negra da cantiga entoava outra mais alegre, com grande gestos e risos.

 

O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé
O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé

 

- E esta, o que quer dizer?

- É uma cantiga de Orixalá. Significa: O homem do dinheiro está aí. Vamos erguê-lo...

Apertei-lhe a mão jubiloso e reconhecido. Na alusão da ode selvagem a lisonja vivia o encanto da sua vida eterna...

 

AS IAUÔ

A recordação de um fato triste - a morte de uma rapariga que fora à Bahia fazer-santo - deu-me ânimo e curiosidade para estudar um dos mais bárbaros e inexplicáveis costumes dos fetiches do Rio.

Fazer-santo é a renda direta dos babaloxás, mas ser filha-de-santo é sacrificar a liberdade, escravizar-se, sofrer, delirar.

Os transeuntes honestos, que passeiam na rua com indiferença, não imaginam sequer as cenas de Salpetrière africana passadas por trás das rótulas sujas.

As iauô abundam nesta Babel da crença, cruzam-se com a gente diariamente, sorriem aos soldados ébrios nos prostíbulos baratos, mercadejam doces nas praças, às portas dos estabelecimentos comerciais, fornecem ao Hospício a sua quota de loucura, propagam a histeria entre as senhoras honestas e as cocottes, exploram e são exploradas, vivem da crendice e alimentam o caftismo inconsciente. As iauô, são as demoníacas e as grandes farsistas da raça preta, as obsedadas e as delirantes. A história de cada uma delas, quando não é uma sinistra pantomima de álcool e mancebia, é um tecido de fatos cruéis, anormais, inéditos, feitos de invisível, de sangue e de morte. Nas iauô está a base do culto africano. Todas elas usam sinais exteriores do santo, as vestimentas simbólicas, os rosários e os colares de contas com as cores preferidas da divindade a que pertencem; todas elas estão ligadas ao rito selvagem por mistérios que as obrigam a gastar a vida em festejos, a sentir o santo e a respeitar o pai-de-santo.

Fazer-santo é colocar-se sobre o patrocínio de um fetiche qualquer, é ser batizado por ele, e por espontânea vontade dele. As negras, insensíveis a quase todas as delicadezas que produzem ataques na haute-gomme, são, entretanto, de uma impressionabilidade mórbida por tudo quanto é abusão. Da convivência com os maiores nesse horizonte de chumbo, de atmosfera de feitiçarias e pavores, nasce-lhes a necessidade iniludível de fazer também o santo; e não é possível demovê-las, umas porque a miragem da felicidade as cega, outras porque já estão votadas à loucura e ao alcoolismo. Entre as tribos do interior da África, há o sacrifício do agamum, em que se esmagam vivas as crianças de seis meses. Ao Moloch das vesânias a raça preta sacrifica aqui uma quantidade assustadora de homens e de mulheres.

Antônio, que me mostrara a maior parte das casas-de-santo, disse-me um dia:

- Vou levá-lo hoje a ver o 16.º dia de uma iauô.

Para que uma mulher saiba a vinda do santo, basta encontrar na rua um fetiche qualquer, pedra, pedaço de ferro ou concha do mar. De tal maneira estão sugestionadas, que vão logo aos babalaôs indagar do futuro. Os babalaôs, a troco de dinheiro, jogam o edilogum, os búzios, e servem-se também por aproximação dos signos do zodíaco.

- O mês do Capricórnio - diz Antônio - compreende todos os animais parecidos, a cabra, o carneiro, o cabrito, e segundo o cálculo do dia e o animal preferido pelo santo, os matemáticos descobrem quem é.

Quando já sabe o santo, babalaô atira a sorte no obelê para perguntar se é de dever fazê-lo. A natureza mesmo do culto, a necessidade de conservar as cerimônias e a avidez de ganho da própria indolência fazem o sábio obter uma resposta afirmativa.

Algumas criaturas paupérrimas batem então nas faces e pedem:

- Eu quero ter o santo assentado!

É mais fácil. Os pais-de-santo dão-lhe ervas, uma pedra bem lavada, em que está o santo, um rosário de contas que se usa no pescoço depois de purificado o corpo por um banho. Nessas ocasiões o vadio invisível contenta-se com o ebó, despacho, algumas comedorias com azeite-de-dendê, ervas e sangue, deixadas na encruzilhada dos caminhos.

Quase sempre, porém, as vitimas sujeitam-se, e não é raro, mesmo quando são pobres os pais, a aceitarem o trabalho com a condição de as vender em leilão ou serem servidos por elas durante longo tempo. Como as despesas são grandes, as futuras iauô levam meses fazendo economias, poupando, sacrificando-se. E de obrigação levar comidas, presentes, dinheiro ao pai-de-santo para a sua estada no ylê ache-ó-ylê-orixá, estada que regula de 12 a 30 dias.

- Isto acontece só para as iauô dos orixás, - diz Antônio.

- Há outras?

- Há as dos negros cambindas. Também essa gente é ordinária, copia os processos dos outros e está de tal forma ignorante que até as cantigas das suas festas têm pedaços em português.

- Mas entre os cambindas tudo é diferente?

- Mais ou menos. Olhe por exemplo os santos.

Orixalá é Ganga-Zumba, Obaluaci, Cangira-Mungongo, Exu, Cubango, Orixá-oco, Pombagira, Oxum, a mãe d'água, Sinhá Renga, Sapanam, Cargamela. E não é só aos santos dos orixás que os cambindas mudam o nome, é também aos santos das igrejas. Assim S. Benedito é chamado Lingongo, S. Antônio, Verequete, N. Senhora das Dores, Sinhá Samba.

Para os cambindas serve para santo qualquer pedra, os paralelepípedos, as lascas das pedreiras e esses pretos sem-vergonha adoram a flor do girassol que simboliza a lua...

Eu estava atônito. Positivamente Antônio achava muito inferiores os cambindas.

- As iauô?

- As filhas-de-santo macumbas ou cambindas chegam a ter uma porção de santos de cada vez, manifestando-se na sua cabeça. Sabe V.S. o que cantam eles quando a yauô está com a crise?

 

Maria Mucangué
Lava roupa de sinhá,
Lava camisa de chita,
Não é dela, é de yayá.

 

- Quer ouvir outra?

 

Bumba, bumba, ó calunga,
Tanto quebra cadeira como quebra sofá
Bumba, bumba, ó calunga.

 

Houve uma pausa e Antônio concluiu:

- Por negro cambinda é que se compreende que africano foi escravo de branco.

Cambinda é burro e sem-vergonha!

Disse e voltou à narrativa da iniciação das iauô.

Antes de entrar para camarinha, a mulher, predisposta pela fixidez da atenção a todas as sugestões, presta juramento de guardar o segredo do que viu, toma um banho purificador e à meia-noite começa a cerimônia. A iauô senta-se numa cadeira vestida de branco com o ojá apertando a cintura. Todos em derredor entoam a primeira cantiga a Exu.

 

Echu tiriri, lô-nam bará ô bebê.
Tiriri lo-nam Echu tiriri.

 

O babaloxá pergunta ao santo para, onde deve ir o cabelo que vai cortar à futura filha, e, depois de ardente meditação, indica com aparato a ordem divina. Essas descobertas são fatalmente as mesmas no centro de uma cidade populosa como a nossa. Se o santo é a mãe d'agua doce, Oxum, o cabelo vai para a Tijuca, a Fábrica das Chitas; se é Ié-man-ja fica na praia do Russel, em Santa Luzia; se é outro santo qualquer, basta um trecho de praça em que as ruas se cruzem.

As rezas começam então; o pai-de-santo molha a cabeça da iauô com uma composição de ervas e com afiadíssima navalha faz-lhe uma coroa, enquanto a roda canta triste.

 

Orixalá otô ô yauô!

 

Essa parte do cabelo é guardada eternamente e a iauô não deve saber nunca onde a guardam, porque lhe acontece desgraça. Em seguida, o lúgubre barbeiro raspa-lhe circularmente o crânio, e quando a carapinha cai no alguidar, a operada já perdeu a razão.

Babaloxá, lava-lhe ainda a cabeça com o sangue dos animais esfaqueados pelos ogans, e as iauô antigas levam-na a mudar a roupa, enquanto se preparam com ervas os cabelos do alguidar.

Daí a momentos a iniciada aparece com outros fatos, pega no alguidar e sai acompanhada das outras, que a amparam e cantam baixo o ofertório ao santo. Em chegando ao lugar indicado, a hipnotizada deixa a vaso, volta e é recebida pelo pai, que entorna em frente à porta um copo d'água.

A nova iauô vai então descansar, enquanto os outros rezam na camarinha em frente ao estado-maior.

- O estado-maior? - indago eu, assustado com o exército misterioso. O estado-maior é a coleção de terrinas e sopeiras colocadas numa espécie de prateleiras de bazar. Nas sopeiras estão todos os santos pequenos e grandes. Há desde as terrinas de granito às de porcelanas com frisos de ouro, rodeando armações de ferro, onde se guarda o Ogum, o São Jorge da África.

No dia seguinte à cerimônia, a iauô lava-se e vai à presença do pai para ver se tem espíritos contrários.

Se os espíritos existem, o pai poderoso afasta a influência nefasta por meio de ebós e ogunguns. A iauô é obrigada a não falar a ninguém: quando deseja alguma coisa, bate palmas e só a ajuda nesses dias a mãe-pequena ou Iaque-que-rê.  As danças para preparo de santo realizam-se nos 1.º, 3.º, 7.º, 12.º, e no 16.º dia o santo revela-se.

- Mas que adianta isso às iauô?

- Nada. O pai-de-santo domina-as. O erô ou segredo que lhe dá, pode retirá-lo quando lhe apraz; o poder de as transformar e fazer-lhes mal está em virar o santo sempre que tem vontade.

- E quando essas criaturas morrem?

- Faz-se a obrigação raspando um pouco de cabelo para saber se o santo também vai, e o babaloxá procura um colega para lhe tirar a mão do finado.

As cerimônias das iauô renovam-se de resto de seis em seis meses, de ano em ano, até à morte. São elas que em grande parte sustentam o culto.

Quando a iauô não tem dinheiro, ou o pai vende-a em leilão ou a guarda como serva. Desta convivência é que algumas chegam a ser mães-de-santo, para o que basta dar-lhe o babaloxá uma navalha.

- E há muita mãe-de-santo?

- Umas cinqüenta, contando com as falsas. Só agora lembro-me de várias: a Josefa, a Calu Boneca, a Henriqueta da Praia, a Maria Marota, que vende à porta do Glacier, a Maria do Bonfim, a Martinha da rua do Regente, a Zebinda, a Chica de Vavá, a Aminam pé-de-boi, a Maria Luiza, que é também sedutora de senhoras honestas, a Flora Coco Podre, a Dudu do Sacramento, a Bitaiô, que está agora guiando seis ou oito filhas, a Assiata.

Esta é de força.  Não tem navalha, finge de mãe-de-santo e trabalha com três ogans falsos - João Ratão, um moleque chamado Macário e certo cabra pernóstico, o Germano. A Assiata mora na rua da Alfândega, 304. Ainda outro dia houve lá um escândalo dos diabos, porque a Assiata meteu na festa de Iemanjá algumas iauô feitas por ela. Os pais-de-santo protestaram, a negra danou, e teve que pagar a multa marcada pelo santo. Essa é uma das feiticeiras de embromação.

Nesse mesmo dia Antônio veio buscar-me à tarde.

- A casa a que vai V.S. é de um grande feiticeiro; verá se não há fatos verdadeiros.

Quando chegamos, a sala estava enfeitada. Em derredor sentavam-se muitos negros e negras mastigando olobó, ou cola amargosa, com as roupas lavadas e as faces reluzentes.  A um canto, os músicos, fisionomias estranhas, faziam soar, com sacolejos compassados, o xequerêe, os atabaques e ubatás, com movimentos de braços desvairadamente regulares. Não se respirava bem.

A cachaça, circulando sem cessar, ensangüentava os olhos amarelos dos assistentes.

- As vezes tudo é mentira, à custa de cachaça e fingimento - diz Antônio. Quando o santo não vem, o pai fica desmoralizado. Mas aqui é de verdade...

Olhei o célebre pai-de-santo, cujas filhas são sem conta. Estava sentado à porta da camarinha, mas levantou-se logo, e a negra iniciada entrou, de camisola branca, com um leque de metal chocalhante. Fula, com uma extraordinária fadiga nos membros lassos, os seus olhos brilhavam satânicos sob o capacete de pinturas bizarras com que lhe tinham brochado o crânio. Diante do pai estirou-se a fio comprido, bateu com as faces no assoalho, ajoelhou e beijou-lhe a mão. Babaloxá fez um gesto de bênção, e ela foi, rojou-se de novo diante de outras pessoas. O som do agogó arrastou no ar os primeiros batuques e os arranhados do xequeré. A negra ergueu-se e, estendendo as mãos para um e para outro lado, começou a traçar passos, sorrindo idiotamente. Só então notei que tinha na cabeça uma esquisita espécie de cone.

- É o ado-chú, que faz vir o santo - explica Antônio. - É feito com sangue e ervas. Se o ado-chú cai, santo não vem.

A negra, parecia aos poucos animar-se, sacudindo o leque de metal chocalhante.

Em derredor, a música acompanhava as cantigas, que repetiam indefinidamente a mesma frase.

As dança dessas cerimônias é mais ou menos precipitada, mas sem os pulos satânicos dos Cafres e a vertigem diabólica dos negros da Luisiania.  É simples, contínua e insistente, horrendamente insistente. Os passos constantes são o alujá, em roda da casa, dando com as mãos para a direita e para a esquerda, e o jêquedê, em que ao compasso dos atabaques, com os pés juntos, os corpos se quebram aos poucos em remexidos sinistros. Não sei se o enervante som da música destilando aos poucos desespero, se a cachaça, se o exercício, o fato é que, em pouco, a iauô parecia reanimar-se, perder a fadiga numa raiva de louca. De cada xequexé-xequexé que a mão de um negro sacudia no ar, vinha um espicaçamento de urtiga, das bocas alsas. Só agora lembro-me de várias: a Josefa, a Calu Boneca, a Henriqueta da Praia, a Maria Marota, que vende à porta do Glacier, a Maria do Bonfim, a Martinha da rua do Regente, a Zebinda, a Chica de Vavá, a Aminam pé-de-boi, a Maria Luiza, que é também sedutora de senhoras honestas, a Flora Coco Podre, a Dudu do Sacramento, a Bitaiô, que está agora guiando seis ou oito filhas, a Assiata.

Esta é de força.  Não tem navalha, finge de mãe-de-santo e trabalha com três ogans falsos - João Ratão, um moleque chamado Macário e certo cabra pernóstico, o Germano. A Assiata mora na rua da Alfândega, 304. Ainda outro dia houve lá um escândalo dos diabos, porque a Assiata meteu na festa de Iemanjá algumas iauô feitas por ela. Os pais-de-santo protestaram, a negra danou, e teve que pagar a multa marcada pelo santo. Essa é uma das feiticeiras de embromação.

Nesse mesmo dia Antônio veio buscar-me à tarde.

- A casa a que vai V.S. é de um grande feiticeiro; verá se não há fatos verdadeiros.

Quando chegamos, a sala estava enfeitada. Em derredor sentavam-se muitos negros e negras mastigando olobó, ou cola amargosa, com as roupas lavadas e as faces reluzentes.  A um canto, os músicos, fisionomias estranhas, faziam soar, com sacolejos compassados, o xequerêe, os atabaques e ubatás, com movimentos de braços desvairadamente regulares. Não se respirava bem.

A cachaça, circulando sem cessar, ensangüentava os olhos amarelos dos assistentes.

- As vezes tudo é mentira, à custa de cachaça e fingimento - diz Antônio. Quando o santo não vem, o pai fica desmoralizado. Mas aqui é de verdade...

Olhei o célebre pai-de-santo, cujas filhas são sem conta. Estava sentado à porta da camarinha, mas levantou-se logo, e a negra iniciada entrou, de camisola branca, com um leque de metal chocalhante. Fula, com uma extraordinária fadiga nos membros lassos, os seus olhos brilhavam satânicos sob o capacete de pinturas bizarras com que lhe tinham brochado o crânio. Diante do pai estirou-se a fio comprido, bateu com as faces no assoalho, ajoelhou e beijou-lhe a mão. Babaloxá fez um gesto de bênção, e ela foi, rojou-se de novo diante de outras pessoas. O som do agogó arrastou no ar os primeiros batuques e os arranhados do xequeré. A negra ergueu-se e, estendendo as mãos para um e para outro lado, começou a traçar passos, sorrindo idiotamente. Só então notei que tinha na cabeça uma esquisita espécie de cone.

- É o ado-chú, que faz vir o santo - explica Antônio. - É feito com sangue e ervas. Se o ado-chú cai, santo não vem.

A negra, parecia aos poucos animar-se, sacudindo o leque de metal chocalhante.

Em derredor, a música acompanhava as cantigas, que repetiam indefinidamente a mesma frase.

As dança dessas cerimônias é mais ou menos precipitada, mas sem os pulos satânicos dos Cafres e a vertigem diabólica dos negros da Luisiania.  É simples, contínua e insistente, horrendamente insistente. Os passos constantes são o alujá, em roda da casa, dando com as mãos para a direita e para a esquerda, e o jêquedê, em que ao compasso dos atabaques, com os pés juntos, os corpos se quebram aos poucos em remexidos sinistros. Não sei se o enervante som da música destilando aos poucos desespero, se a cachaça, se o exercício, o fato é que, em pouco, a iauô parecia reanimar-se, perder a fadiga numa raiva de louca. De cada xequexé-xequexé que a mão de um negro sacudia no ar, vinha um espicaçamento de urtiga, das bocas cusparinhentas dos assistentes escorria a alucinação. Aos poucos, outros negros, não podendo mais, saltaram também na dança, e foi então entre as vozes, as palmas e os instrumentos que repetiam no mesmo compasso o mesmo som, uma teoria de cara bêbedas cabriolando precedidas de uma cabeça colorida que esgareiava lugubremente. A loucura propagou-se. No meio do pandemônio vejo surgir o babaloxá com um desses vasos furados em que se assam castanhas, cheio de brasas.

- Que vai ele fazer?

- Cala, cala... é o pai, é o pai grande - balbucia Antônio.

As cantigas redobram com um furor que não se apressa. São como uma ânsia de desesperado essas cantigas, como a agonia de um mesmo gesto arrancando dos olhos a mesma lâmina de faca, são atrozes! O babaloxá coloca o cangirão ardente na cabeça da iauô, que não cessa de dançar delirante, insensível, e, alteando o braço com um gesto dominador e um sorriso que lhe prende o beiço aos ouvidos, entorna nas brasas fumegantes um alguidar cheio de azeite-de-dendê.

Ouve-se o chiar do azeite nas chamas, a negra, bem no meio da sala, sacoleja-se num jequedé lancinante, e pela sua cara suada, do cangirão ardente, e que não lhe queima a pele, escorrem fios amarelos de azeite...

 

Ie-man-já atô cuaô.

 

continuava a turba.

- Não queimou, não queimou, ele é grande - fez Antônio.

Eu abrira os olhos para ver, para sentir bem o mistério da inaudita selvageria. Havia uma hora, a negra dançava sem parar; pela face o dendê quente escorria benéfico aos santos. De repente, porém ela estacou, caiu de joelhos, deu um grande grito.

- Emim oiá bonmim'. - Bradou.

- É o nome dela, o santo disse pela sua boca o nome que vai ter.

A sala rebentou num delírio infernal. O babaloxá gritava, com os olhos arregalados, palavras guturais.

- Que diz ele?

- Que é grande, que vejam como é grande!

Criaturas rojavam-se aos pés do pai, beijando-lhes os dedos, negras uivavam, com as mãos empoladas de bater palmas; dois ou três pretos aos sons dos xequerês sacudiam-se em danças com o santo, e a iauô revirava os olhos, idiota, como se acordasse de uma grande e estranha moléstia.

- Que vai ela fazer agora, Deus de misericórdia! - murmurei saindo.

- Vai trabalhar, pagar no fim de três meses a sua obrigação, ochu meta, dar dinheiro a pai-de-santo, ganhar dinheiro...

- Sempre o dinheiro! - fiz eu olhando a velha casaria.

Antônio parou e disse:

- Não se engana V.S.

E limpando o suor do rosto, o negro concluiu com esta reflexão profunda:

- Neste mundo, nem os espíritos fazem qualquer coisa sem dinheiro e sem sacrifício!

Fomos pela rua estreita com a visão sinistra da pobre mártir aos pulos, dessa cabeça pintada, entre os chocalhos e os atabaques, que dançava e gritava horrendamente...

 

O FEITIÇO

 

Nós dependemos do Feitiço.

Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, mas nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo o indiscutível valor do Feitiço, do misterioso preparado dos negros.

É provável que muita gente não acredite nem nas bruxas, nem nos magos, mas não há ninguém cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casas sujas onde se enrosca a indolência malandra dos negros e das negras. É todo um problema de hereditariedade e psicologia essa atração mórbida. Os nossos ascendentes acreditaram no arsenal complicado da magia da idade média, na pompa de uma ciência que levava à forca e às fogueiras sábios estranhos, derramando a loucura pelos campos; os nossos avós, portugueses de boa fibra, tremeram diante dos encantamentos e amuletos com que se presenteavam os reis entre diamantes e esmeraldas.  Nós continuamos fetiches no fundo, como dizia o filósofo, mas rojando de medo diante do Feitiço africano, do Feitiço importado com os escravos, e indo buscar trêmulos a sorte nos antros, onde gorilas manhosos e uma súcia de pretas cínicas ou histéricas desencavam o futuro entre cágados estrangulados e penas de papagaio!

Vivi três meses no meio dos feiticeiros, cuja vida se finge desconhecer, mas que se conhece na alucinação de uma dor ou da ambição, e julgo que seria mais interessante como patologia social estudar, de preferência, aos mercadores da paspalhice, os que lá vão em busca de consolo.

Vivemos na dependência do Feitiço, dessa caterva de negros e negras, de babaloxás e iauô, somos nós que lhe asseguramos a existência, com o carinho de um negociante por uma amante atriz. O Feitiço é o nosso vício, o nosso gozo, a degeneração. Exige, damos-lhes; explora, deixamo-nos explorar, e, seja ele maitre-chanteur, assassino, larápio, fica sempre impune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro.

Os feiticeiros formigam no Rio, espalhados por toda a cidade, do cais à Estrada de Santa Cruz.

Os pretos, alufás ou orixás, degeneram o maometismo e o catolicismo no pavor dos aligenum, espíritos maus, e do exu, o diabo, e a lista dos que praticam para o público não acaba mais. Conheci só num dia a Isabel, a Leonor, a Maria do Castro, o Tintino, da rua Frei Caneca; o Miguel Pequeno, um negro que parece os anões de D. Juan de Byron; o Antônio, mulato conhecedor do idioma africano; Obitaiô, da rua Bom Jardim; o Juca Aboré, o Alamijo, o Abede, um certo Maurício, ogan de outro feiticeiro - o Brilhante, pai-macumba dos santos cabindas; o Rodolfo, o Virgílio, a Dudu do Sacramento, que mora também na rua do Bom Jardim; o Higino e o Breves, dois famosos tipos de Niterói, cuja crônica é sinistra; o Oto Ali, Ogan-Didi, jogador da rua da Conceição; Armando Ginja, Abubaca Caolho, Egidio Aboré, Horácio, Oiabumin, filha e mãe-de-santo atual da casa de Abedé; Ieusimin, Torquato Arequipá, Cipriano, Rosendo, a Justa de Obaluaei, Apotijá, mina famoso pelas suas malandragens, que mora na rua do Hospício, 322 e finge de feiticeiro falando mal do Brasil; a Assiata, outra exploradora, a Maria Luiza, sedutora reconhecida, e até um empregado dos Telégrafos, o famoso pai Deolindo...

Toda essa gente vive bem, à farta, joga no bicho como Oloô-Teté, deixa dinheiro quando morre, às vezes fortunas superiores a cem contos, e achincalha o nome de pessoas eminentes da nossa sociedade, entre conselhos às meretrizes e goles de parati. As pessoas eminentes não deixam, entretanto, de ir ouvi-los às baiucas infectas, porque os feiticeiros que podem dar riqueza, palácios e eternidade, que mudam a distância, com uma simples mistura de sangue e de ervas, a existência humana, moram em casinholas sórdidas, de onde emana um nauseabundo cheiro.

Para obter o segredo do feitiço, fui a essas casas, estive nas salas sujas, vendo pelas paredes os elefantes, as flechas, os arcos pintados, tropeçando em montes de ervas e lagartos secos, pegando nas terrinas sagradas e nos obélês, cheios de suor.

- V. S., se deseja saber quais são os principais feitiços, é preciso acostumar-se antes com os santos, dizia-me o africano.

Acostumei-me. São inumeráveis. As velhas que lhes discutem o preço em conversa, até confundem as histórias. Em pouco tempo estava relacionado com Exu, o diabo, a que se sacrifica no começo das funçanatas, Obaluaiê, o santo da varíola, Ogum, o deus da guerra, Oxóocí, Eíulé, Oloro-quê, Obalufan, Orixá-agô, Exu-maré, Orixá-ogrinha Aíra, Orominha, Ogodô, Oganju, Baru, Orixalá, Bainha, Dadá, Percuã, Coricotó, Doú, Alabá, Ari e as divindades beiçudas, esposas dos santos - Aquará, Oxum-gimoun, Aíá-có, a mãe da noite, Inhansam, Obi-am, esposa de Orixá-lá; Orainha, Ogango, Jená, mulher de Elôquê; Io-máo-já, a dona de Orixáocô; Oxum de Xangô e até Obá, que, príncipe neste mundo, é no éter hetairia do formidável santo Ogodô.

Os fetiches contaram-me a história de Orixá-alum, o maior dos santos que aparece raras vezes só para mostrar que não é de brincadeiras, e eu assisti às cerimônias do culto, em que quase sempre predomina a farsa pueril e sinistra. Diante dos meus olhos de civilizado, passaram negros vestidos de Xangô, com calça de cor, saiote encarnado enfeitado de búzios e lantejoulas, avental, babadouro e gorro; e esses negros dançavam com Oxum, várias negras fantasiadas, de ventarolas de metal na mão esquerda e espadinha de pau na direita. Concorri para o sacrifício de Obaluaiê, o santo da varíola, um negro de bigode preto com a roupa de Polichinelo e uma touca branca orlada de urtigas. O santo agitava uma vassourinha, o seu xaxará, e nós todos em derredor do babaloxá víamos morrer sem auxílio de faca, apenas por estrangulamento, uma bicharada que faria inveja ao Jardim Zoológico.

Os africanos porém continuavam a guardar o mistério da preparação.

- Vamos lá, dizia eu, camarário, como é que faz para matar uni cidadão qualquer?

Eles riam, voltavam o rosto com uns gestos quase femininos.

- Sei lá!

Outros porém tagarelavam:

- V. S. não acredita? É que ainda não viu nada. Aqui está quem fez um deputado! O...

Os nomes conhecidos surgiam, tumultuavam, empregos na polícia, na Câmara, relações no Senado, interferências em desaguisados de famílias notáveis.

- Mas como se faz isso?

- Então o senhor pensa que a gente diz assim o seu meio de vida?

E imediatamente aquele com quem eu falava, descompunha o vizinho mais próximo - porque, membros de uma maçonaria de defesa geral, de que é chefe o Ojó da rua dos Andradas, os pretos odeiam-se intimamente, formam partidos de feiticeiros africanos contra feiticeiros brasileiros, e empregam todos os meios imagináveis para afundar os mais conhecidos.

Acabei julgando os babaloxás sábios na ciência da feitiçaria como o Papa João XXII e não via negra mina na rua sem recordar logo o bizarro saber das feiticeiras de d'Annunzio e do Sr. Sardou. A lisonja, porém, e o dinheiro, a moeda real de todas as maquinações dessa ópera pregada aos incautos, fizeram-me sabedor dos mais complicados feitiços.

Há feitiços de todos os matizes, feitiços lúgubres, poéticos, risonhos, sinistros. O feiticeiro joga com o Amor, a Vida, o Dinheiro e a Morte, como os malabaristas dos circos com objetos de pesos diversos. Todos entretanto são de uma ignorância absoluta e afetam intimidades superiores, colocando-se logo na alta política, no clero e na magistratura. Eu fui saber, aterrado, de uma conspiração política com os feiticeiros, nada mais nada menos que a morte de um passado presidente da República. A principio achei impossível, mas os meus informantes citavam com simplicidade nomes que estiveram publicamente implicados em conspirações, homens a quem tiro o meu chapéu e aperto a mão. Era impossível a dúvida.

- O presidente está bem com os santos, disse-me o feiticeiro, mas bastava vê-lo à janela do palácio para que dois meses depois ele morresse.

- Como?!

- E difícil dizer. Os trabalhos dessa espécie fazem-se na roça, com orações e grandes matanças. Precisa a gente passar noites e noites a fio diante do fogareiro, com o tessubá na mão, a rezar. Depois matam-se os animais, às vezes um boi que representa a pessoa e é logo enterrado. Garanto-lhe que dias depois o espírito vem dizer ao feiticeiro a doença da pessoa.

- Mas por que não matou?

- Porque os caiporas não me quiseram dar sessenta contos.

- Mas se você tivesse recebido esse dinheiro e um amigo do governo desse mais?

- O feitiço virava. A balança pesa tudo e pesa também dinheiro. Se Deus tivesse permitido a essa hora, os somíticos estariam mortos.

Esse é o feitiço maior, o envoutement solene e caro. Há outros, porém, mais em conta.

Para matar um cavalheiro qualquer, basta torrar-lhe o nome, dá-lo com algum milho aos pombos e soltá-los numa encruzilhada. Os pombos levam a morte... É poético. Para ulcerar as pernas do inimigo um punhado de terra do cemitério é suficiente. Esse misterioso serviço chama-se etu, e os babaloxás resolvem todo o seu método depois de conversar com os iffá, uma coleção de 12 pedras. Quando os iffá estão teimosos, sacrifica-se um cabrito metendo as pedras na boca do bicho com alfavaca de cobra.

Os homens são em geral volúveis.  Há o meio de os reter per eternum sujeitos à mesma paixão, o effifá, uma forquilha de pau preparada com besouros, algodão, linhas e ervas, sendo que durante a operação não se deve deixar de dizer o ojó, oração. Se eu amanhã desejar a desunião de um casal, enrolo o nome da pessoa com pimenta-da-costa, malagueta e linha preta, deito isso ao fogo com sangue, e o casal dissolve-se; se resolver transformar Catão, o honesto, no mais desbriado gatuno, arranjo todo esse negócio apenas com um bom tira, um rato e algumas ervas! E maravilhoso.

Há também feitiços porcos, o mantucá, por exemplo, preparado com excremento de vários animais e coisas que a decência nós salva de dizer; e feitiços cômicos como o terrível xuxuguruxu... Esse faz-se com um espinho de Santo Antônio besuntado de ovo e enterra-se à porta do inimigo, batendo três vezes e dizendo:

- Xuxuguruxu io le bará....

Para ô homem ser absolutamente fatal, D. Juan, Rotschild, Nicolau II e Morny, recolhi com carinho uma receita infalível; É mastigar orobó quando pragueja, trazer alguns tiras ou breves escritos em árabe na cinta, usar do ori para o feitiço não pegar, ter aléni do xorá, defesa própria, o essiqui, cobertura e o irocó, defumação das roupas, num fogareiro cm que se queima azeite-de-dendê, cabeças de bichos e ervas, visitar os babaloxás e jogar de vez em quando o até ou a praga. Se apesar de tudo isso a amante desse homem fugir, há um supremo recurso: espera-se a hora do meio-dia e crava-se um punhal detrás da porta.

Mas o que não sabem os que sustentam os feiticeiros, é que a base, o fundo de toda a sua ciência é o Livro de S. Cipriano. Os maiores alufás, os mais complicados pais-de-santo, têm escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do S. Cipriano. Enquanto criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas fatais os negros soletram o S. Cipriano, à luz dos candeeiros...

O feitiço compõe-se apenas de ervas arrancadas ao campo depois de lá deixar dinheiro para o saci, de sangue, de orações, de galos, cabritos, cágados, azeite-de-dendê e do livro idiota. É o desmoronamento de um sonho!

Os feiticeiros, porém, pedem retratos, exigem dos clientes coisas de uma depravação sem nome para agir depois fazendo o egum, ou evocação dos espíritos, o maior mistério e a maior pândega dos pretos; e quase todos roubam com descaro, dando em troco de dinheiro sardinhas com pó-de-mico, cebolas com quatro pregos espetados, cabeças de pombo em salmoura para fortalecer o amor, uma infinita série de extravagâncias. Os trabalhos são tratados como nos consultórios médicos: a simples consulta de seis a dez mil réis, a morte de homem segundo a sua importância social e o recebimento da importância por partes. Quando é doença, paga-se no ato - porque os babaloxás são médicos, e curam com cachaça, urubus, penas de papagaio, sangue e ervas.

A policia visita essas casas como consultante. Soube nesses antros que um antigo delegado estava amarrado a uma paixão, graças aos prodígios de um galo preto. A polícia não sabe pois que alguns desses covis ficam defronte de casas suspeitas, que há um tecido de patifarias inconscientes ligando-as. Mas não é possível a uma segurança transitória acabar com um grande vício como o Feitiço. Se um inspetor vasculhar amanhã os jabotis e as figas de uma das baiúcas, à tarde, na delegacia os pedidos choverão...

Eu vi senhoras de alta posição saltando, às escondidas, de carros de praça, como nos folhetins de romances, para correr, tapando a cara com véus espessos, a essas casas; eu vi sessões em que mãos enluvadas tiravam das carteiras ricas notas e notas aos gritos dos negros malcriados que bradavam.

- Bota dinheiro aqui!

Tive em mãos, com susto e pesar, fios longos de cabelos de senhoras que eu respeitava e continuarei a respeitar nas festas e nos bailes, como as deusas do Conforto e da Honestidade. Um babaloxá da costa da Guiné guardou-me dois dias às suas ordens para acompanhá-lo aos lugares onde havia serviço, e eu o vi entrar misteriosamente em casas de Botafogo e da Tijuca, onde, durante o inverno, há recepções e conversationes às 5 da tarde como em Paris e nos palácios da Itália. Alguns pretos, bebendo comigo, informavam-me que tudo era embromação para viver, e, noutro dia, tílburis paravam à porta, cavalheiros saltavam, pelo corredor estreito desfilava um resumo da nossa sociedade, desde os homens de posição às prostitutas derrancadas, com escala pelas criadas particulares. De uma vez mostraram-me o retrato de uma menina que eu julgo honesta.

- Mas para que isso?

- Ela quer casar com este.

Era a fotografia de um advogado.

- E vocês?

- Como não quer dar mais dinheiro, o servicinho está parado. A pequena já deu trezentos e cinqüenta.

Tremi romanticamente por aquela ingenuidade que se perdia nos poços do crime à procura do Amor...

Mas esse caso é comum. Encontrei papelinhos escritos em cursivo inglês, puro Coração-de-Jesus, cartões-bilhetes, pedaços de seda para misteres que a moralidade não pode desvendar. Eles diziam os nomes com reticências, sorrindo, e eu acabei humilhado, envergonhado, como se me tivessem insultado.

- A curiosidade tem limites, disse a Antônio que desaparecera havia dias para levar aos subúrbios umas negras. Se eu dissesse metade do que vi, com as provas que tenho!... Continuar é descer o mesmo abismo vendo a mesma cidade misteriosamente rojar-se diante do Feitiço... Basta!

- V. S. não passou dos primeiros quadros da revista. É preciso ver as loucuras que o Feitiço faz, as beberagens que matam, os homicídios nas camarinhas que nunca a polícia soube; é preciso chegar à apoteose. Venha...

E Antônio arrastou-me pela rua, do General Gomes Carneiro.

 

A CASA DAS ALMAS

 

Os negros "cambindas" do Rio guardam com terror a história de um branco que lhes apareceu certa vez em pleno sertão africano. Quando o rei deu por ele, que por ali vinha calmo, com as suas barbas de sol, precipitou-se mais a tribo em atitude feroz. O branco tirou da cinta um pequeno feitiço de metal e prostrou morto, golfando sangue, o babaláo.

- Exu! Exu! ganiu a tribo, recuando de chofre.

- Quem és tu, santo que eu não conheço? perguntou trêmulo o poderoso rei.

- Sou o que pode tudo, bradou o branco. Vê.

E Antônio arrastou-me pela rua, do General Gomes Carneiro.

 

A CASA DAS ALMAS

Os negros "cambindas" do Rio guardam com terror a história de um branco que lhes apareceu certa vez em pleno sertão africano. Quando o rei deu por ele, que por ali vinha calmo, com as suas barbas de sol, precipitou-se mais a tribo em atitude feroz. O branco tirou da cinta um pequeno feitiço de metal e prostrou morto, golfando sangue, o babaláo.

- Exu! Exu! ganiu a tribo, recuando de chofre.

- Quem és tu, santo que eu não conheço? perguntou trêmulo o poderoso rei.

- Sou o que pode tudo, bradou o branco. Vê.

Estendeu a mão de novo e matou outros negros.

- Só te deixarei em paz se me mostrares todos os teus feitiços.

Sua Majestade, apavorada, levou-o à tenda real e durante o dia e durante a noite, sem parar, lhe deu tudo quanto sabia.

- Perdôo-te, disse o branco. Adeus! Levo para o mistério a rainha.

Aconchegou o feitiço, que parecia egum, o deus da guerra, no seio da preferida, deixou-a cair, e partiu devagar pela estrada a fora...

Não precisei dos meios violentos do Caramuru da África, para saber do mais terrível mistério da religião dos minas: - o egum ou evocação das almas. Naquela mesma noite em que encontrara Antônio, o negro serviçal levou-me a uma casa nas imediações da praia de Santa Luzia.

- Em tudo é preciso mistério, dizia ele. V. S. vai à casa do babaloxá, finge acreditar e depois é convidado para uma cerimônia na casa das almas. Poderá então ver o segredo da pantomima. Quem descobre o segredo do egum, morre. Eu me arrisco a morrer.

A sua voz era trêmula.

- Tens medo?

- Não, mas se morrer amanhã, todos os feiticeiros dirão que foi o feitiço. Do egum depende toda a traficância. O negro parou. Não imagina! Abubáca Caolho, que mora na rua do Resende, é um dos tais. Quando há uma morte, vai logo dizer que foi quem a fez. Se fôssemos acreditar nas suas mentiras, Abubáca tinha mais mortes no costado que cabelos na cabeça. V. S. já o viu. É um negro que usa gravata do lado e pontas - as roupas velhas dos outros... Apotijá é outro.

- Mas há desse gênero de morte, Antônio? indaguei eu acendendo o cigarro com um gesto shakespereano.

- Ora se há! Vou provar quando quiser. De morte misteriosa lembro a Maria Rosa Duarte, sogra do mama Pão Baltazar, alufá muito amigo de um político conhecido; o Salvador Tapa, a Esperança Laninia, Larê-quê, Fantuchê, o Jorge da rua do Estácio, Ougu-olusaim... Todos morreram por ter descoberto o egum. Na Bahia, então, esses assassinatos são comuns. Hei de lembrar sempre o velho feiticeiro Aguidi, coitado! Era dos que sabem. Um dia, farto de viver, descobriu a traficância e logo depois morria no incêndio do Tabão, com os braços cruzados, impassível e a sorrir. Aguidi na minha língua significa: - o que quer morrer... Ele quis.

Pela praia de Santa Luzia o luar escorria silenciosamente, e de leve o vento, sacudindo as folhas das árvores em melancólico sussurro, entristecia Antônio.

- Ah! meu senhor. Não é só por causa do egum que negro mata. Quando as iauô não andam direito, quando não fingem bem, quase nunca escapam de morrer. Há vários processos de morte, a morte lenta, com beberagens e feitiços diretos, a morte na camarinha por sufocação...  Muitos negros apertam uma veia que a gente tem no pescoço e dentro de um minuto qualquer pessoa está morta. Outros dependuram as criaturas e elas ficam bracejando no ar com os olhos arregalados.

A Morte e a Loucura nem sempre se limitam ao estreito meio dos negros. As beberagens e o pavor atuam suficientemente nas pessoas que os freqüentam. A Assiata, uma negra baixa, fula e presunçosa, moradora à rua da Alfândega, dizem os da sua roda que pôs doida na Tijuca uma senhora distinta, dando-lhe misturadas para certa moléstia do útero. Apotijá, o malandro da rua do Hospício, que aproveita os momentos de ócio para descompor o Brasil, tem também uma vastíssima coleção de casos sinistros.

A Morte e todas as vesânias não são apenas os sustentáculos dos seus ritos e das suas transações religiosas, são também o meio de vida extra-cultual, o processo de apanhar heranças. Alikali, lemamo atual dos alufás, e Amando Ginja, cujo nome real é Fortunato Machado, quando morre negro rico vão logo à polícia participar que não deixou herdeiros. Alikali é testamenteiro de quase todos e bicho capaz de fazer amuré com as negras velhas, só para lhes ficar com as casas. A certidão de óbito é dada sem muitas observações.

- Mas, você conhece mais feiticeiros, Antônio?

- Pois não! O João Mussê, alufá feiticeiro tremendo, que mora na rua Senhor dos Passos, 222 e é respeitado por todos; Obalei-ié, Obio Jamin, Ochu-Toqui, Ochu-Bumin, Emin-Ochun, Oumigi, Obitaiô-homem, Obitaiô-mulher, Ochu Taiodé, a Ochu-boheió, da rua do Catete, Siê, Xangô-Logreti, Ajagum-baru, Eçu-hemin, Angelina, o ogan Conrado... Mais de cem feiticeiros, mais cem.

- Quase todos com os nomes dos santos...

- Os negros usam sempre o nome do santo que têm no corpo...

Mas de repente Antônio parou entre as árvores.

- Temos ebó de iê-man-já. A negralhada vem ..... Se quer ver, esconda-se detrás de algum tronco.

Com efeito, sentiam-se vozes surdas ao longe, cantando.

O despacho, ou ebó, da mãe-d'Água salgada, é um alguidar com pentes, alfinetes, agulhas, pedaços de seda, dedais, perfumes, linhas, tudo o que é feminino.

Detrás da árvore, pouco depois eu vi aparecer no plenilúnio a teoria dos pretos. À frente vinha uma com o alguidar na cabeça, e cantavam baixo.

 

Baô de ré se equi je-man-já
Pelé bé Apotá auo yo tô toro fym la cho
Ere...

 

Era o ofertório. Ao chegar à praia, na parte em que há uns rochedos, a negra desceu, depositou o alguidar. Uma onda mais forte veio, bateu, virou o vaso de barro, quebrou-o, levou as linhas e todos balbuciaram, rojando:

- Iê-man- já!

A santa aparecera na fosforescência lunar, agradecendo...

Depois os sacerdotes ergueram-se, reuniram e nós ficamos de novo sós, enquanto o oceano rugia e, ao longe, tristemente a canzoada ladrava.

- Ainda apanhamos o candomblé, disse Antônio. É preciso que o babaloxá convide V. S. para o egum...

Noutro dia, pouco mais ou menos à meia-noite, estávamos no ilê-saim ou casa das almas.

O egum é uma cerimônia quase pública, a que os feiticeiros convidam certos brancos para presenciar a pantomima do seu extraordinário poder. Esses curiosos fetiches, que para fazer o guincho de santo Ossaim amarram nas pernas bonecas de borracha, com assobio; cujos santos são uni produto de bebedeiras e de hipnose, têm na evocação dos espíritos a máxima encenação da sua força sobre o invisível. Quando morre alguém, quando todos estão diante do corpo, um dos pretos esconde-se e dá um grito. No meio da confusão geral, então, mudando a voz, esse negro grita:

- Emim, toculoni mopé, cá-um-pé, emim! Eu que morri hoje, quero que chamem por mim.

Os donos do defunto arranjam o dinheiro para a evocação, pessoas estranhas ajudam também com a sua quota para aproveitar e saber do futuro. O babaloxá não faz o egum enquanto não tem pelo menos trezentos mil réis. Arranjada a quantia, começa a cerimônia.

Quando entramos na sala das almas, à luz fumarenta dos candeeiros a cena era estranha. Havia brancas, meretrizes de grandes rodelas de carmim nas faces, mulatas em camisa, mostrando os braços com desenhos e iniciais em azul dos proprietários do seu amor, e negros, muitos negros. Estes últimos, sentados em roda do assoalho, estavam quase nus, e algumas negras mesmo inteiramente nuas com os seios pendentes e a carapinha cheia de banha.

- Por que estão eles assim?

- Para mais facilmente receber o espírito.

Junto à porta do fundo, três negros de vara em punho quedavam-se estáticos. Eram os annichans, que faziam guarda ao saluin ou quarto-dos-espíritos. Ouvi dentro do saluin um barulho de pratos, de copos tocados, de garrafas desarrolhadas; um momento pareceu-me ouvir até o estouro forte do champanha barato.

- Há gente lá dentro?

- As almas. Está-se banqueteando. O banquete foi pago pelos presentes. Mas, psiu! Daqui a pouco começarão as cantigas, que ninguém compreende. Os africanos inventam nomes para a cena parecer mais fantástica.

Com efeito, minutos depois, aos primeiros sons dos atabaques, as negras bradaram:

- Aluá! o espírito! e romperam uma cantiga assustadora e trôpega.

 

Anu-ha, a o ry au od á
San-ná-elê-o ou baba
Locá-aló

 

A porta continuava fechada, mas eu vi surgir de repente um negro vestido de dominó com os pés amarrados em panos. Os três annichans ergueram as varas, o dominó macabro começou a bater a sua no chão, os xeguedês sacudiram-se, e outra cantiga estalou medrosa:

 

Lou-â gége ou-rou ó uá
Xó la-ry la-ry lary
Que què oura ô uchô
La-ry la mamau rú nam babá

 

Quando o santo aos pulos aproximava-se de alguma mulher, ela recuava bradando com desespero:

- Afapão!

- Vão aparecer as almas, avisou Antônio, a cantiga diz: Procuramos a alma de Fulano e de Sicrano e não a encontramos dormindo. Cansamos sem saber o mistério que a envolvia. A alma está aqui e entrou pela porta do quintal.

- Mas quem é este dominó?

- É Baba-Egum. As almas têm vários cargos. O que traz uma gamela chama-se Ala-té-orum, o 2.º Opocó-echi, o 3.º Eguninhansan, e no meio de sete espíritos aparece o invocado.

Entretanto o dominó Baba-Egum batia furiosamente no chão com a sua vara de marmelo, e no alarido aumentado apareceu aos pulos outro dominó, o Alabá, que por sua vez também se pôs a bater. Era o ritual da entrega das almas. Por fim apareceu Ousaim, enfiado numa fantasia de bebê, de xadrez variado, com duas máscaras: uma nas costas, outra tapando o rosto.

- Quem é esse?

- O Bonifácio da Piedade, um malandro de cavaignac, que faz sempre de Eruosaim.

Eruosaim também dançava. Entre as cantigas, os annichans ergueram de novo as varas, a porta abriu-se, dois negros ficaram um de cada lado, o atafim, ou confidente, e o anuxam, secreta. De dentro saíram mais três dominós cheios de figas e espelhinhos, com os pés embrulhados nos trapos. As negras aterrorizadas uivavam, com o amarelo dos olhos virados e os espíritos, naquela algazarra, pareciam cambalear. Havia gente porém que os reconhecia.

- Eles fingem os gestos dos mortos, segredou-me Antônio. Palmas ressoavam estridentes saudando a chegada do invisível, as varas de marmelo lanhavam o ar e as almas, e naquele círculo silvante, ao som dos xeguedés e dos atabaques batiam surdamente no chão aos pulos da dança demoníaca.

Um dos espíritos, porém, sentiu-se numa espécie de trono de mágica. Como por encanto a dança cessou e naquela pávida atmosfera, em que o medo gemia, as mulheres de borco, os homens contorsionados, o negro fantasiado guinchou do alto.

- Guilhermina ocê percisa gostá de Antônio... José tem que fazê ebô para espírito mau.

Chica, um home há de vi aí, ocê vai com ele...

- Veja V. S. a chantage, murmurou Antônio. Os negros recebem dinheiro antes dos homens e obrigam as criaturas pelo terror a tudo quanto quiserem. Por isso quem descobre o egum, morre.

A Chica, uma mulatinha, coitada! tremia convulsivamente, mas já outras, nuas, em camisa, sacudindo os membros lassos, ganiam de longe, batendo as varas num terror exaustivo.

- E eu? e eu?

- E eu? e eu?

- Ocê tá dereita, sua vida vai pr'a frente.

- E eu? e eu? gargolejaram outras bocas em estertores.

- Ocê está pra traz, percisa ebô.

Aproximei-me de um dos espíritos; cheirava a espírito de vinho; estava literalmente bêbedo.

Quando a cerimônia atingia ao desvario e já os espíritos tinham pastosidade na voz, caiu na sala, como um bedengó, Inhansam, um negro fingindo de santo materializado e, em meio do pavor geral, ao som das cantigas, esticou a mão sinistra, foi pedindo a cada criatura 16 obis, 16 orobôs, 16 galos, 16 galinhas, 16 pimentas-de-costa, 16 mil réis, um cabrito, um carneiro. Ao chegar às meretrizes brancas, Inhansam ferozmente exigia peças de chita, fazendas e objetos caros. A turba gritava toda: Inhansam! Inhansam! gente nova entrava na sala, e de repente, como todos se voltassem a um grito da porta, os espíritos desapareceram...  Tinham fugido tranqüilamente pelo corredor.

- Está acabado, fez Antônio. Os espíritos vão se despir, e voltam daí a pouco para ver se o pessoal acreditou mesmo...

A cena mudara entretanto. Dissipado o sudário apavorado, todas aquelas carnes hiperestizadas erguiam-se ainda vibrantes para a bacanal.

O álcool e a queda na realidade estabeleciam o desejo. Negros arrastavam-se para quintal, para os cantos, longos sorrisos lúbricos abriam em bocejos as bocas espumantes, risinhos rebentavam e negros fortes, estendidos no chão, rolavam as cabeças numa sede de gozo.

Há entre as negras uma propensão sinistra para o tribadismo. Em pouco, naquela casinhola suja e mal-cheirosa, eu via como uma caricatura horrenda as cenas de deboche dos romances históricos em moda. Mais dois negros entraram.

- Então egum esteve bom?

- E eu que não cheguei em tempo...

- Veja, mostrou Antônio, lá está o Bonifácio Eruosaim, vendo se causou efeito fantasiado de bebê. Venha até o quarto do banquete.

Fomos. Antônio empurrou uma porta e logo nos achamos numa sala com garrafas pelo chão, pratos servidos, copos entornados, rolhas, os destroços de uma fome voraz. Num canto a Chica dizia baixinho para um lindo rapaz de calças bombachas:

- É você que o espírito disse?...

Quando reaparecemos o babaloxá murmurava:

- A festa está acabada, companheiros... É não deixar de trazer o que Inhansam pediu.

Saímos então. Vinha pelo céu raiando a manhã. Palidamente, na calote cor de pérola, as estrelas tremiam e desmaiavam. Antônio cambaleava. Chamei um carro que passava, meti-o dentro. Em torno tudo dizia o mistério e a incompreensão humana, o éter puro, os vagalhões do mar, as árvores calmas. Tinha a cabeça oca, e, apesar dos assassinatos, dos roubos, da loucura, das evocações sinistras, vinha da casa das almas julgando babalaôs, babaloxás, mães-de-santo e feiticeiros os arquitetos de uma religião completa. Que fazem esses negros mais do que fizeram todas as religiões conhecidas?

O culto precisa de mentiras e de dinheiro. Todos os cultos mentem e absorvem dinheiro. Os que nos desvendaram os segredos e a maquinação morreram. Os africanos também matam.

E eu, perdoando o crime desse sacerdócio mina, que se impõe e vive regaladamente, tive vontade de ir entregar Antônio negro e a dormir à casa de Ojô, para que nunca mais desvendasse a ninguém o sinistro segredo da casa das almas.

 

OS NOVOS FEITIÇOS DE SANIN

Pois seja! disse Antônio, tomando coragem. V. S. pode ir, mas não cuspa, não fume e não coma nessa casa. Eu não vou.

- Acompanhas-me até a porta?

- Até à esquina. Ficarei de alcatéia. Sanin e Ojô são capazes de me acabar com a vida.

A vida de Antônio é uma vida, sob todos os títulos, preciosa, e naquele momento ainda o era mais, porque a sustentava eu. Refleti e concordei.

- Está direito, ficas à esquina.

Chovia a cântaros. Antônio, sem guarda-chuvas, metido num capote que lhe ia até aos pés, acendia constantemente um charuto, que apagava.

- Mas, que é esse Sanin, afinal?

- Um feiticeiro danado!

- Mas babaloxá, babalaô, traficante?.

- Babalaô, não senhor. Para ser babalaô é preciso muita coisa. Só de noviciado, leva-se muito tempo, anos a fio, e a cerimônia é dificílima. Quando um iniciado quer ser babalaô, tem que levar ao babalaô que o sagra, dois cabritos pretos, duas galinhas d'Angola, duas galinhas da terra, dois patos, dois pombos, dois bagres, duas preás, um quilo de limo, um ori, um pedaço de ossum, um pedaço de giz, dois gansos, dois galos, uma esteira, dois caramujos e uma porção de penas de papagaio encarnadas.

- É difícil.

- E não é tudo. Tem que levar também um quilo de sabão-da-costa, que se chama ochê-i-luaiê, e não entra para o ibodoiffá ou quarto dos santos sem estar de roupa nova e levar na algibeira pelo menos 200$OOO. O futuro babalaô fica sete dias no ibodô, onde não entra ninguém para não ver o segredo.

- O segredo?

- O segredo é um ovo de papagaio. V. S. já viu um ovo de papagaio? Nunca! É difícil. E quem vê um ovo desses, arrisca-se a ficar cego. O ovo em africano chama-se éiu, o papagaio odidé. É o ovo que guardam dentro de uma cuia ou ybadu. O iniciado fica inteiramente nu, senta-se na esteira, e o velho babalaô indaga se é de seu gosto fazer o iffa. Se a resposta for afirmativa, lavam-se quarenta e dois caroços de dendê com diversas ervas, e nessa água o babalaô novo toma banho.

Depois raspa-se-lhe a carapinha, guardando-a para o grande despacho, pinta-se-lhe o crânio com giz e faz-se a matança.

- Todos os animais?

- Todos caem ao golpe das navalhas afiadas, o sangue enche os alguidares, escorre pela casa, mas ninguém sabe, porque lá dentro, de vivos, só há os dois babalaôs e o acólito. O primeiro sacrifício é para exu. Mistura-se o sangue do galo com tabatinga, forma-se um boneco recheado com os pés, o fígado, o coração e a cabeça dos bichos; metem-se em forma de olhos, nariz e boca, quatro búzios e está feito o exu.  Em seguida esfaqueiam-se os outros bichos, sacrificando aos iffá. O novo babalaô recebe na cabeça um pouco desse sangue, o acólito ou ogibanam amarra-lhe na testa uma pena de papagaio com linha preta e, assim pronto, o novo matemático fica seis dias aprendendo a prática de alguns feitiços temíveis e rezando aos odu jilá.

Os iffá são dezesseis: - eidi-obé, ojécu-meigi, jori-meigi, uri-meigi, ôrosê-meigi, nani-meigi, obará-meigi, ocairá-meigi, egundá-meigi, osé-meigi, oturá-meigi, oreté-meigi, icá-meigi, eturáfan-meigi, achemeigi e ogio-ofum. No fim dos sete dias juntam-se os ossos, as cabeças, os pés dos animais com os restos de comida, a pena de papagaio do jovem professo, as ervas dos serviços anteriores, coloca-se tudo num alguidar para jogar onde o opelé disser, no mar, num lago, em qualquer rio. O iniciado é quem leva o alguidar, sem perder a razão, e canta no trajeto três cantigas...

Estávamos no largo do Capim. A chuva era tanta que nos obrigara a recolher a um botequim qualquer, e Antônio, já sentado, bebendo vinho do Porto e acendendo pela trigésima vez a horrenda ponta do seu charuto, preparava-se para entoar as maviosas cantigas. Chegou mesmo a perpetrar uma, a segunda, a mais curta.

 

O-ché-yturá a narê praquê
Abá gun-nem-gum gebo
Oury ôcú ou-myn-nan
Essé ouxy-cá gô-xê-nan ló nan.

 

Esta apavorada oração significa: sabão-da-Costa serve para resguardar-se a gente do rei que come urubu e limo-da-costa. Nós, se comermos limo ou urubu pelo pé, hoje mesmo morreremos. Ele não defende filho como filho.

- Mas, o Sanin?

- V. S. não quer aprender mesmo? Deixe o Sanin. Está chovendo tanto!

- O Sanin é ou não um sábio?

- É malandro.

- Ainda melhor.

Quando saí, de dentro do botequim, Antônio esticou a mão.

- Orum-my-lá ború ybó, ye, ybó, ybó, xixé!

Negro amável!! Com aquele seu gesto sacerdotal dizia-me:

- Satisfaça ao Deus que faz tudo e tudo entorta, amém!

Abri o guarda-chuva e respondi já de longe.

- Ybó-xixé!

Sanin mora agora na casa do famoso Ojô, o diretor social da feitiçaria. A casa de Ojô fica na rua dos Andradas, quase no começo, com um aspecto pobre e um cheiro desagradável. Quando batemos, a chuva rufava em torno um barulho ensurdecedor. Não nos responderam. Batemos de novo. Alguém decerto nos espiava.  Afinal abriu-se a rótula e uma mulher apareceu.

- Baba Sanin?

- Não está.

- Venho mandado por um conhecido. Sem receio.

- A casa é de Emanuel...

- Ojô, sei bem. Foi o Miguel Pequeno que me mandou. Abre.

De novo a rótula fechou. A mulher ia consultar, mas não demorou muito que voltasse abrindo de esguelha e dizendo misteriosamente.

- Entre.

A sala tinha areia no assoalho, os móveis consertados indicavam que Ojô vive bem. Numa cadeira um fato branco engomado, e mais longe o chapéu de palha atestava a presença do feiticeiro.

- Então Sanin?

- Vem já.

Pouco tempo depois apareceu Sanin, de blusa azul e gorro vermelho, o tipo clássico do mina desaparecido, andando meio de lado, com o olhar desconfiado. O pobre-diabo vive assustado com a polícia, com os jornais, com os agentes. Para o seu cérebro restrito de africano, desde que chegou, o Rio passa por transformações fantásticas. É um malandro, orgulhoso do feitiço e com um medo danado da cadeia. Fora decerto quase à força que aparecera, e só muito lentamente o pavor o deixou falar.

- Baba Sanin, o Miguel Pequeno mandou-me aqui para um negócio muito grave. Baba tem uns feitiços novos.

- Não tem...

- Eu sei que tem. Abri a carteira, uma carteira de efeito, como usam os homens da praça, enorme, com fechos de prata. Não tenha medo. Se o Baba não me faz o trabalho, estou perdido. É a minha última esperança.

- Que trabalho?

Revolvi as notas da carteira, devagar, para mostrá-las, tirei um papelzinho e misteriosamente murmurei:

- Aqui tem o nome dela...

Na cara do feiticeiro deslizou um sorriso diabólico:

- Aha! Aha... Está bom.

- Sanin, eu tenho fé nos santos, mas os outros feiticeiros não dão volta ao negócio.

- Você vai acabar. Olhe, pode contar...

Tudo neste mundo é esperança de dinheiro, de felicidade, de paz, e tanto vive de esperança o feiticeiro que a dá como as pobres criaturas que com ele a vão procurar.

Sanin começou a falar dos feitiços dos outros, lembrou-se dos seus aos bocados, e em pouco, com a esperança de ganhar mais, fazia-me revelações.

Cada feiticeiro tem feitiços próprios. Abubaca Caolho, o alcoólico da rua do Resende, tem o ibá, cuia com pimenta-da-costa e ervas para fazer mal. Quando se fala do ibá, diz-se simplesmente: o feitiço do Abubaca. Gia, cabeça de pato com lesmas e o cabelo da pessoa, é uma descoberta de Ojô e serve para enlouquecer. Quem quer enlouquecer o próximo, arranja ou falsifica a obra de Ojô.

- Mas Baba Sanin, como é que sabe tudo isso?...

- Então, não aprendi? Eu sei tudo.

E como sabe tudo, dá-me receitas. Fico sabendo, sem pasmo, sentado numa cadeira, que giba de camelo com corpo de macaco e um cabrito preto em ervas matam a gente e que esta descoberta é do celebrado João Alabá, negro rico e sabichão da rua Barão de S. Félix, 76. Não é tudo. Sanin faz-me vagarosamente dar a volta ao armazém do feitiço. Eu tomo notas curiosas dessa medicina moral e física.

Para matar, ainda há outros processos. O malandrão Bonifácio da Piedade acaba um cidadão pacato apenas com cuspo, sobejos e treze orações; João Alabá conseguirá matar a cidade com um porco, um carneiro, um bode, um galo preto, um jaboti e a roupa das criaturas, auxiliado apenas por dois negros nus com o tessubá, rosário, na mão, à hora da meia-noite; pipocas, braço de menino, pimenta-malagueta e pé-de-anjo arrancados ao cemitério matam em três dias; dois jabotis e dois caramujos, dois abis, dois orobós e terra de defunto sob sete orações que demorem sete minutos chamando sete vezes a pessoa, é a receita do Emídio para expedir desta vida os inimigos..

Há feitiços para tudo. Sobejo de cavalo com ervas e duas orações, segundo Alufá Ginja, produz ataques histéricos; um par de meias com o rastro da pessoa, ervas e duas orações, tudo dentro de uma garrafa, fá-la perder a tramontana; cabelo de defunto, unhas, pimenta-da-costa e ervas obrigam o indivíduo a suicidar-se; cabeças de cobras e de cágado, terra do cemitério e caramujos atrasam a vida tal qual como os pombos com ervas daninhas, e não há como pombas para fazer um homem andar para trás...

- Mas para dar sorte, caro tio?

- Há mão de anjo roubada ao cemitério em dia de sexta-feira.

- E para tornar um homem ladrão, por exemplo?

- Um rato, cabeça de gato, ervas, o nome da pessoa e orações.

- E para fazer um casal brigar?

- Cabeça de macaco, aranha e uma faca nova.

- E para amarrá-los por toda a vida?

O negro pensou, olhando-me fixamente:

- Um obi, um orobô, unhas dos pés e das mãos, pestanas e lesmas...

- Tudo isso?

- Preparado por mim.

Então Sanin fala-me dos seus feitiços. Sanin é poeta e é fantasista.

Sob a dependência de Ojô, quase seu escravo, esse negro forte, de quarenta anos, trouxe do centro da África a capacidade poética daquela gente de miolos torrados, as últimas novidades da fantasia feiticeira. Para conquistar, Sanin tem um breve, que se põe ao pescoço. O breve contém dois tiras, uma cabeça de pavão e um colibri tudo colorido e brilhante; para amar eternamente, cabeças de rola em saquinhos de veludo; para apagar a saudade, pedras roxas do mar.

Quando lhe pagam para que torne um homem judeu errante, o preto prepara cabeças de coelho, a presteza assustada; pombos pretos, a dor; ervas do campo, e enterra em frente à porta do novo Ashaverus; quando pretende prender para sempre uma mulher, faz um breve de essências que o apaixonado sacode ao avistá-la. Sanin é também mau - mas de maneira interessante.

Os seus trabalhos de morte são os mais difíceis. Sanin ao meio-dia levanta no terreiro uma vara e reza. Pouco tempo depois sai da vara um maribondo e o maribondo parte, vai procurar a vítima, e não pára enquanto não lhe inocula a morte.

O maribondo é vulgar à vista do boto vivo metido dentro de uma caveira humana; em presença do feitiço do morcego, a asa que roça e mata, a raposa e o lenço, e eu o fui encontrar pondo em execução o maior feitiço: baiacu de espinho com ovo de jacaré - que é o babalaô da água, baiacu que faz secar e inchar à vontade das rezas e domina as almas para todo o sempre.

Mas por que você, um homem tão poderoso, não me queria receber?

- Por que andam a falar de nós, porque a polícia vem aí. Fizemos outro dia até um despacho no campo de Santana com os dentes, os olhos de um carneiro, jabotis, ervas e duas orações para quem fala de nós deixar de falar.

- Mas por que um carneiro?

- Porque o carneiro morre calado. Foi o Antônio Mina quem fez o despacho e todos nós rezamos de bruços e todos nós demos para o despacho, que custou cento e oitenta e três mil reis.

Então eu apanhei o meu chapéu, apertei a mão do fantasista Sanin.

- Pois fez mal, Baba, fez muito mal em dar o seu dinheiro, porque quem fala de vocês sou eu.

E como o negro aterrado abrisse a boca enorme, eu abri a carteira e o convenci de que todas as suas fantasias, arrancadas ao sertão da África, não valem o prazer de as vender bem.

Dinheiro, mortes, e infâmia as bases desse templo formidável do feitiço!

 

INTRODUÇÃO O AUTOR PRÓXIMA