AS RELIGIÕES DO RIO - TERCEIRA PARTE - O MOVIMENTO EVANGÉLICO

 

A IGREJA FLUMINENSE

A Igreja Fluminense data de 1858. Foi a primeira congregação evangélica estabelecida no Brasil, graças ao espírito de um homem rico e feliz.

O Sr. Robert Reid Kalley trabalhava na ilha da Madeira, quando, em 1855, lembrou-se de vir ao Rio de Janeiro. Era escocês, médico, ministro evangélico e possuía bens da fortuna. Ao deixar o clima delicioso da ilha por esta cidade, naquele tempo foco de algumas moléstias terríveis, não o enviava nenhum board estrangeiro, vinha espontaneamente apenas por amor do evangelho de Jesus Cristo.

O Brasil sempre foi um centro de reunião de colônias diversas praticando as suas crenças com a mais inteira liberdade.

Entre a prática da religião, porém, e a pregação à grande massa vai uma diferença radical. Robert Kalley vinha para uma monarquia católica, em que a Igreja era um desdobramento do Estado; aportara a uma terra em que cada data festiva fazia repicar no ar os sinos das catedrais e desdobrava por sobre a cidade os pálios e as sedas roxas dos paramentos sacros; vinha pregar ao povo, amante de procissões, que rojava na poeira das ruas quando passavam as imagens seguidas de soldados. E Kalley veio e pregou contra os pálios, contra as imagens e contra o povo a rojar, escudado na doce crença de Jesus...

Íamos os dois, eu e o Rev. Marques, pelo asfalto do campo da Aclamação. Muito cedo ainda, os pássaros cantavam indiferentes ao bulício da grande praça, e eu, cada vez mais encantado, ia a ouvir tão suave conversa.

Era o diletantismo da evangelização.

- Era o conforto moral que a religião dá. Se até hoje os nossos evangelizadores são apedrejados, se nos fecham as igrejas, imagine a impressão do protestante naquele tempo. Kalley, o ousado capaz de afirmar meia dúzia de idéias desconhecidas, teve uma série infindável de inimigos.

- O protestante! Que recordação de épocas históricas. Carlos IX, os huguenotes, o êxodo para a América, o horror das imagens...

- Os populares naquele tempo não admitiam o funcionamento regular, com entrada franca, das igrejas evangélicas. KalIey, três anos depois da sua chegada, fundava sem bulha, com alguns adeptos, o primeiro templo evangélico, que chamou Fluminense.

- Há temperamentos de missionários. Kalley era um desses. Olhe que podia viver muito bem na Escócia, à beira dos lagos, entre os verdes lindos dos vales. Preferiu a nossa cidade de há meio século, bárbara, feia, cheia de calor; esteve vinte anos no Rio, e só voltou à pátria quando teve a certeza de deixar uma igreja completamente organizada.

- E deixou?

- Ao partir, em 1876, a igreja tinha uns cem membros, havia um pastor substituto, João Manuel Gonçalves dos Santos, eram presbíteros Francisco da Gama, Francisco da Silva Jardim e Bernardo Guilherme da Silva e diáconos João Severo de Carvalho, Antônio Soares de Oliveira, Manuel Antônio Pires de Melo, José Antônio Dias França, Manuel Joaquim Rodrigues, Manuel José da Silva Viana e Antônio Vieira de Andrade. O esforço fora recompensado. Frutificara a semente, e já outras igrejas iam nascendo.

- A Igreja Fluminense tem muitas filiais?

- Tem. Há outras Igrejas organizadas por ela, e a essas seria mais apropriado chamar igrejas congregacionais. São essas a de Niterói, cujo pastor é o Rev. Leônidas da Silva, e que possui um belo edifício na rua da Praia, tendo cerca de cem membros; a de Pernambuco, a de Passa-Três, a de São José de Bonjardim e a que eu pastoreio no Encantado, organizada a 10 de maio, com 56 membros.

Antônio Marques terminara a sua frase com tal carinho que o interrompi:

- Vejo que ama o seu rebanho!

- Não há melhor!... gente simples, boa, capaz de ouvir a palavra do Senhor...

Fez uma pausa, sorriu.

- Devo-lhe dizer que essas igrejas têm também as suas missões. Só a de Passa-Três tem no Cipó, no Arrozal de São João Batista e em toda a zona mais próxima do Estado do Rio.

- A Igreja Fluminense é só de nacionais?

- É a única no Brasil que não tem proteção estrangeira, que vive dos seus próprios recursos apenas; - é o completo atestado do nosso esforço moral. Já educou três jovens para o mistério, sustenta três missionários, acabou de construir um templo e, apesar disso, ainda o ano passado teve no seu "budget" um saldo de oito contos. Sendo nacional, recebe entretanto na sua comunhão pessoas de ambos os sexos crentes em Cristo.

- E tem uma escola?

- Tem duas: a dominical, de leitura bíblica, e uma outra diária para as crianças, dirigida pelo Sr. Joaquim Alves e D. Carlota Pires. A característica da igreja é a evangelização da cidade, uma evangelização que vai de porta em porta, levando auxílios, carinhos, paz moral. Há a Sociedade de Evangelização, a União Bíblica Auxiliadora de Moços, a União das Senhoras, a União das Moças, das Crianças... Os templos congregacionais também têm idênticas sociedades.

No Encantado, além de duas outras, nós, que estamos em caminho de ter um templo, vamos organizar agora o Esforço Cristão Juvenil.

- Mas uma evangelização assim constante?

- Os rapazes distribuem folhetos, fazem a expedição pelo Correio, vão de porta em porta com subscrições para mandar companheiros estudar na Europa. Eu lhe posso citar os nomes de João Menezes, Isaac Gonçalves, Luiz Fernandes Braga, Antônio Maria de Oliveira... São tantos! E todos brasileiros.

Havia na voz do pastor um justo orgulho. Eu emudeci um instante, acompanhando-o. Nesta cidade de comércio, em que o dinheiro parece o único deus, homens moços e fortes pregam a bondade de porta em porta, como os pobrezinhos pedem pão! Ou eu delirava, ou aquele cavalheiro calmo, de redingote de alpaca, dava-me o favo da ilusão, como outrora Platão entre árvores mais belas e discípulos mais argutos.

- A igreja tem hoje um patrimônio grande? - fiz com o desejo de voltar à realidade.

- Sempre aumentado, mas regulado ainda pelos estatutos de 1886, aprovados pelo governo imperial, quando ministro o Barão Homem de Melo. O patrimônio criado com donativos e legados consiste em prédios e títulos da dívida pública. A administração é eleita anualmente dentre os membros da igreja, compõe-se de um presidente, dois secretários, um tesoureiro e um procurador, que têm a seu cargo representar a igreja em todos os seus negócios. Deus tem abençoado a nossa obra.

- As igrejas evangélicas abundam entre nós, pastor. Falam-me agora numa seita, os miguelistas, que dizem ter Jesus Cristo voltado ao mundo, encarnado no Dr. Miguel Vieira Ferreira...

- As verdadeiras igrejas evangélicas do Rio são a Fluminense, a Metodista, a Presbiteriana, a Batista e a Episcopal para os ingleses e os alemães.  Nós propriamente, filhos da Fluminense, somos congregacionistas.

A religião é uma só, havendo apenas diferença no ritual e na forma do governo eclesiástico.

O nosso governo é congregacionista, composto de pastor, presbítero e diáconos. Atualmente na Igreja Fluminense o pastor é Gonçalves dos Santos, os presbíteros José Novais, José Fernandes Braga e Gonçalves Lopes, os diáconos Antônio de Assunção, Guilherme Tâner, José Valença e José Martins.

- Há uma tal subdivisão de ritos entre os evangelistas.

- Nós nos regulamos por 28 artigos de fé. Cremos na existência de um Deus, na trindade de pessoas, na divindade de Jesus Cristo, na sua encarnação, nascendo de Maria e sendo verdadeiro Deus e homem.

Estávamos à esquina da rua Floriano Peixoto. Verdadeiro homem! Ia perguntar, aprofundar a intenção da frase. O pastor, porém, continuava.

- A Bíblia foi escrita por inspiração divina.

- Não há dúvida.

- Só acreditamos em doutrinas que por ela possam ser provadas. E por isso cremos na imortalidade da alma, na vida futura, na punição eterna dos que não pensam em Jesus, na ressurreição dos mortos, no julgamento do tribunal de Deus.

Antônio Marques parara defronte da igreja, um casarão que tem em letras grandes este apelo convidativo. - Vinde e vede!

- Custou muito?

- Uns setenta contos.

- E o pastor ainda é o substituto de Kelley?

- Ainda. Conhece-o?

- É um ancião de maneiras secas.

- Oh! tem-se esforçado tanto. Há vinte e sete anos que trabalha sem cessar. Foi a Londres estudar o ministério, voltou e nunca mais nos deixou. É o mais antigo ministro evangélico do Brasil, e hoje os seus sessenta e dois anos curvam-se a um trabalho insano. Entre; hoje é o dia da comunhão.

Entrei. Uma sombra tranqüila aquietava-se na sala. Os ruídos de fora, da alegria movimentada da rua, chegavam apagados. No coro, nem viva alma; pelos bancos, alguns perfis emergindo da sombra, muitos atentos e calmos; ao fundo, em derredor de uma mesa onde havia garrafas e pratos de prata, vários senhores. E naquela paz vozes cantavam:

Disposta a mesa, ó Salvador,
Vem presidir aqui,
Ministra o vinho, parte o pão
Tipos, Jesus, de ti!

Depois, no silêncio que se fizera, o pastor disse:

- Bendito Deus! e a prece evoluía-se direta, pedindo para que se retificasse o fato em memória da morte de Cristo. Era a consagração.

Gonçalves dos Santos tomou do pão e o partiu, os presbíteros foram pela sala com os pratos lavrados de prata, onde branquejavam os pedaços do bolo sem fermento.

- Tomai isso e comei!

Sentei-me humilde no último banco. Como nos evangelhos, eu via os homens darem de comer o pão de Deus, e darem a beber o sangue de Jesus. Era tocante, naquele mistério, na paz da vasta sala, quase deserta. E, com gula, a cada um que eu seguia no gozo da suprema felicidade, parecia-me ver o seu olhar, - o olhar, a janela da alma! - voltar-se para o céu na certeza tranqüila de um repouso celeste.

Quando a cerimônia terminou, como um ruflo de asas brancas, de novo as vozes sussurraram.

Eu trouxe a salvação
Dos altos céus louvor,
É livre o meu perdão,
É grande o meu amor.

- Que faz tão triste aí? - disse-me o pastor Antônio. - Aos moços quer Deus alegres! E eu que lhe fora buscar uma Bíblia e o Cristão, o nosso jornalzinho! Venha falar ao pastor.

Ergui-me. Manuel Gonçalves dos Santos, com a sua barba alvadia e o seu duro olhar, fitava-me.

Voltei do sonho para reflorir uma lisonja. Eu já o sabia um probo, praticando o ministério sem remuneração de espécie alguma. Santos conservava-se de gelo. Falei da coesão das igrejas, da propaganda, do evidente progresso do evangelismo no Brasil, com a sua simples essência de fé, gabei o hospital que estão a concluir.

O pastor então discorreu. A única religião compatível com a nossa República é exatamente o evangelismo cristão. Submete-se às leis, prega o casamento civil, obedece ao código e é, pela sua pureza, um esteio moral. A propaganda torna cada vez mais clara essas idéias, no espírito público aos poucos se cristaliza a nítida compreensão do dever religioso. Os evangelistas serão muito brevemente uma força nacional, com chefes intelectuais, dispondo de uma grande massa. E, de repente, com convicção, o velho reverendo concluiu:

- Havemos de ter muito breve na representação nacional um deputado evangelista.

Apertei a mão do mais antigo ministro evangélico do Brasil. Diante dos esforços que me contara Antônio Marques, a minha alma se extasiara; durante a comunhão, vendo o grave grupo beber o sangue de Jesus, eu sentira o bálsamo do sonho. Mas enquanto meus olhos olhavam com inveja o outro lado da vida, a margem diamantina da Crença, o pastor sonhava com o domínio temporal e a Câmara dos Deputados...

Eterna contradição humana, que não se explicará nunca, nem mesmo com o auxílio daquele que no Apocalipse sonda o coração e os rins e anda entre sete candeeiros de ouro!

Eterna contradição, que cativa a alma de uns e faz as religiões triunfarem através dos séculos!

 

A IGREJA PRESBITERIANA

A sede da Igreja Presbiteriana fica na rua Silva Jardim, n.0 15.

É um dos mais lindos templos evangélicos do Rio. A sala pode conter oitocentas pessoas. Tudo reluz, as paredes banhadas de sol, as portas envernizadas, as fechaduras niqueladas, o púlpito severo. Pelas aléias do jardim, brunidas, anda-se sob o desfolhar das rosas e da montanha a pique que lhe fica aos fundos, desce um intenso perfume de mata. A primeira vez que eu lá estive, a sala estava apinhada, não havia um lugar; e, por trás de sobrecasacas, severas, de fatos sombrios, na luz crua dos focos, eu via apenas o gesto de um homem de larga fronte, descrevendo a delícia da moral impecável. Perguntei a um cavalheiro que o ouvia embevecido, quase nas escadas.

- Quem é?

O cavalheiro passou o lenço pela testa alagada.

- Admira não o conhecer: é o Dr. Álvaro Reis.

Álvaro Reis é o pastor atual da Igreja Presbiteriana do Rio, essa igreja produto de uma propaganda tenaz e de um longo esforço de quase meio século. Não há de certo na história dos nossos cultos exemplo tão frisante de quanto vale o querer como essa vasta igreja. Fundada em 1861 pelos Revs. Green Simonton, Alexandre Blackford e Francisco Shneider, três missionários mandados pelo board da igreja Presbiteriana dos Estados Unidos para a evangelização do Brasil, quarenta e tantos anos depois tornou-se realidade; e a semente guardada no celeiro do Senhor, sob o seu divino olhar, brotou e floriu em árvore estrondosa. Quanto custou isso!  Simonton ensinava grátis o inglês para, aprendendo o português, inocular nos discípulos os sãos princípios da Bíblia; cada sermão era um acontecimento, marcava-se com carinho o dia em que professava um novo simpático. Os puritanos pregavam em salas estreitas e sem conforto. Algumas vezes, um padre católico surgia intolerante, protestava; os pastores interrompiam-se e as duas igrejas combatiam, a ver quem pela palavra melhor parecia estar com Deus.

Como a seita Positivista, a propaganda começou numa sala da rua Nova do Ouvidor, com dezesseis ouvintes. Passou depois à rua do Cano, desceu à rua do Regente, à praça da Aclamação, à rua de Santa Ana, comprou com sacrifícios e recursos americanos o barracão da fábrica de velas de cera da travessa da Barreira, e ali orou, pediu a Deus e continuou a propagar. Os meios eram os usuais de toda a fé que quer predominar. Os evangélicos faziam versos, faziam o bem e eram tenazes. Foi uma evolução segura e lenta.

A Igreja teve mártires. O sábio padre romano Manuel da Conceição abjurou e ordenou-se presbítero.

Era uma alma antiga. Ordenou-se e logo começou a evangelizar a pé pelas estradas. Não levava uma moeda na bolsa, e de porta em porta, com a Bíblia na mão, revelava aos homens a verdade. Atravessou Minas assim, tropeçando pelos caminhos ardentes, quase sem comer, e, onde parava, o seu lábio abria falando do prazer de ser puro. Em Campanha correram-no à pedra. Conceição, com a Bíblia de encontro ao peito, tropeçando, fugia sob a saraivada, e a turba só o deixou fora da cidade, quando o viu em sangue cambalear e cair. Ao chegar a Sorocaba, o mártir estava andrajoso, quase a morrer, e, morto, os seus ossos foram exumados, por ordem do bispo D. Lacerda, para serem atirados fora do cemitério, ao vento.

Os pastores trabalhavam tanto que Simonton morrera, aos trinta e quatro anos, de cansaço. Eram os primeiros tempos! A adesão religiosa vem da tenacidade. A tenacidade dessas criaturas de aço que atraiu os fiéis, desde os analfabetos aos homens ilustres; a igreja recebeu no seu seio médicos, engenheiros, literatos, arquitetos, professoras públicas, homens rudes, lentes de escolas superiores e cada um que daqui saía, levava para as igrejas dos Estados com a carta demissória um elemento de propaganda. Por último, os pastores foram brasileiros, a derradeira etapa estava ganha, a igreja, ponto inicial da evangelização brasileira, foi construída luxuosamente, e o Rev. Trajano, com verdade e poesia, o afirmou: - depois de peregrinar por seis tetos estrangeiros, só no sétimo a nossa igreja descansou.

Foi nesse descanso que eu dias depois voltei a conversar com o Dr. Álvaro Reis. A casa do pastor fica ao lado esquerdo do templo, oculta nos roseirais. O protestantismo trouxe para os nossos costumes latino-americanos não sei se a pureza da alma, de que o mundo sempre desconfia, mas o asseio inglês, o regime inglês, a satisfação de bem cumprir os deveres religiosos e de viver com conforto.

Logo que vieram abrir a porta, eu tive essa impressão.

- O Pastor?

O pastor não estava, mas isso não impedia que um homem de Deus entrasse a refrescar das agruras do sol. O Dr. Álvaro Reis é paulista: na sua residência encontrei alguns amigos seus, paulistas, que me receberam entre as cortinas e os tapetes, com uma franqueza encantadora. Quando me sentei na doce paz de uma poltrona, como um velho camarada irmão em Cristo, estava convencido de que ia beber café e conversar largamente. Não há como os evangelistas e os evangelistas brasileiros, para gentilezas. À bondade ordenada pela escritura reúnem essa especial e íntima carícia do brasileiro, que, quando quer ser bom, é sempre mais que bom.

- A Igreja Presbiteriana - disse-me o substituto do Dr. Álvaro Reis - realiza, como sabe, o trabalho de propaganda nesta cidade, há 42 anos. Atualmente, além do templo, tem congregações prósperas na rua da Passagem, em Botafogo, na rua do Riachuelo e na Ponta do Caju, onde existem salas de culto muito freqüentadas. Foi com elementos nossos que se organizou a igreja de Niterói.

- E nos Estados?

- A Igreja Presbiteriana do Rio ramificou-se por todos os Estados do Brasil. Há presbiterianos no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, em Goiás, no Piauí e até nos confins de Mato Grosso. A propaganda ficou ao cuidado da Igreja Evangélica Episcopal. O número de congregações e de templos que se organizaram depois do nosso, sobe a 300.

- E há vários colégios?

- Vários? Há muitos. A Igreja Presbiteriana conseguiu estabelecer no Brasil os seguintes colégios: o Mackenz e a Escola Americana, em São Paulo; o Colégio de Lavas, em Minas; o de Curitiba, no Paraná; o da Bahia, da Feira de Santa Ana e o da Cachoeira, na Bahia; o das Laranjeiras, em Sergipe; o do Natal, no Rio Grande do Norte; e ainda várias escolas gratuitas.

- É natural que uma tão copiosa propaganda tenha uma forma de governo? - fiz vagamente.

- Tem. A igreja é governada por unia sessão de igreja, presidida pelo pastor e composta de seis oficiais, que têm o título de presbíteros. A sessão da igreja apresenta anualmente atas e relatórios ao presbitério do Rio, concílio superior composto de todos os ministros presbiterianos que trabalham no Rio, no sul de Minas e no Espírito Santo.

No Presbitério, cada sessão se faz representar pelo pastor e um presbítero. Além do Presbitério do Rio há o de São Paulo, o de Minas, o do oeste de São Paulo, o de Pernambuco e o do Sul do Brasil. Esses seis presbitérios, reunidos de três em três anos em uma só assembléia, formam o supremo concílio da igreja, com o nome de Sínodo Presbiteriano Brasileiro. E aí que se discutem os interesses gerais da causa.

- A defesa tem jornais?

- Alguns. Venha ver.

Entramos na biblioteca de Álvaro Reis, uma sala confortável, forrada de altas estantes de canela. Por toda a parte, em ordem, livros, papéis, brochuras, cartas, fotografias.

- Veja. Aqui no Rio temos o Presbiteriano e o Puritano. Há em São Paulo a Revista das Missões Nacionais, em Araquati o Evangelista, o Despertador em Rio Claro, a Vida em Florianópolis e o Século no Natal.

- E com tantos jornais os senhores não vivem em guerra constante?

- Contra quem?

- Contra as outras igrejas, os batistas, os metodistas... Um jornal só basta para fazer a discórdia; dez jornais fazem o conflito universal!

- Não - fez o meu interlocutor a sorrir -, não. Reina completa harmonia. A Igreja Fluminense já existia quando começamos a nossa campanha. As relações conservam-se cordiais. O pastor Santos ministra aqui a palavra de Deus sempre que é convidado.  Enquanto o templo esteve em construção, a Igreja Fluminense permitiu-nos o uso da sua vasta sala para o nosso serviço religioso. Com os metodistas e batistas a mesma cordialidade existe. Os pastores de lá falam no nosso púlpito, como nós falamos nos seus.

Depois, com tristeza:

- Talvez entre os de casa não existisse essa harmonia há bem pouco tempo... É simples. Na última reunião do Sínodo Presbiteriano houve, uma cisão que se refletiu francamente na igreja do Rio. Um membro do concílio imaginou que a maçonaria fazia pressão nas deliberações do Sínodo, propondo logo que a igreja banisse do seu seio a heresia maçônica. Não era verdade a pressão. O concílio discutiu largamente e aprovou a seguinte resolução.

- "O Sínodo julga inconveniente legislar sobre o assunto!" A tolerante aprovação deu em resultado separarem-se sete ministros, que formaram uma igreja independente e antimaçônica. À nova igreja ligaram-se ex-membros da nossa.

Ele falava simplesmente. Em torno, faces tranqüilas aprovavam e naquela atmosfera agradável eu não pude deixar de dizer:

- Como o grande público os ignora, como a população, a verdadeira, a massa, os confunde numa complicada reunião de cultos!

Todos sorriam perdoando.

- Sabemos disso. É natural! Oh! os protestantes! Passam pela porta, pensam coisas incríveis...  Mas alguns entram e encontram a tranqüilidade. Qual é, afinal, secamente, em poucas palavras, o modo por que a Igreja Presbiteriana difere da Igreja Romana? Não considera o Papa como chefe, nem tolera a sua infalibilidade, não crê na intercessão dos santos, que estão na glória e nenhum poder tem neste mundo, não aceita o celibato clerical, considerando uma inovação funesta...

- Oh! Funestíssima!

- ... de Gregório VII, no século XI; não admite o culto das imagens, uma infração ao 2.º mandamento do Decálogo; crê que Jesus Cristo ressuscitou e está vivo e reina como único chefe da sua igreja; crê no único fundamento, na única regra da Religião Cristã, a Palavra de Deus, a Bíblia, e prega que Deus, onipotente, onisciente e onipresente, é único apto a ouvir as orações dos homens. Só aceita dois sacramentos, o Batismo e a Comunhão, os únicos instituídos por Jesus Cristo; só reconhece o casamento civil, sobre o qual impetra a bênção de Deus; não admite o purgatório...

- O absurdo purgatório!

- Diante das santas escrituras.

- Ah!

- Proíbe as missas em sufrágio das almas, porque Jesus nunca rezou missas, e crê que o homem é salvo de graça pela fé viva, como crê na ressurreição, na regeneração, na vida eterna e no juízo final. Todo o seu culto se resume na leitura das escrituras, em sermões explicativos, em orações a Deus, e no primeiro domingo de cada mês na celebração da Eucaristia...

- Há sociedades na igreja?

- Há o Esforço Cristão e uma de acordo com todas as igrejas, o Hospital Evangélico.

Nessa mesma noite eu ouvi, no templo cheio, Álvaro Reis. A sua larga fronte parecia inspirada e ele, desfazendo sutilmente as frases diamantinas da Bíblia, num polvilho de bem, falava da Caridade, da Caridade que sustenta todos os que crêem em Jesus, - da Caridade suavemente doce que protege e esquece.

 

A IGREJA METODISTA

- Amados irmãos, estamos reunidos aqui à vista de Deus, e na presença destas testemunhas, para unir este homem e esta mulher em santo matrimônio, que é um estado honroso, instituído por Deus no tempo da inocência do homem, significando-nos a união mística que existe entre Cristo e a sua Igreja. Esse estado santo, Cristo adornou-o com a beleza da sua presença, fazendo o primeiro milagre em Cananéia da Galiléia; São Paulo o recomenda como um estado honroso entre os homens; e por isso não deve ser empreendido ou contraído sem reflexão, mas, sim, reverente, discreta, refletidamente, e no temor de Deus.

No ar pairava um suave perfume, senhoras de rara elegância tinham fisionomias imóveis, cavalheiros graves pareciam ouvir com atenção a palavra do pastor e tudo cintilava ao brilho dos focos luminosos. Era um casamento na Igreja Metodista, na praça José de Alencar. Ao fundo, via-se, à mão direita do pastor, o noivo, à esquerda a noiva, e por trás dos vitrais, lá fora, naquele recanto onde corre de vagar um rio, a turba dos curiosos que não entram nunca.

- Estas duas pessoas apresentam-se - continuava o ministro evangélico - para serem unidas nesse estado santo. Se alguém sabe coisa que possa ser provada como causa justa, pela qual estas pessoas não devam legalmente ser unidas, queira dizer agora, ou do contrário - nunca mais fale sobre isso.

Houve um sussurro como se entrasse pela porta ogival uma lufada de ar. O pastor voltou-se para as pessoas que casavam.

- Exijo e ordeno de vós ambos (como respondereis no terrível dia de juízo, quando os segredos de todos os corações forem desvendados) que se algum de vós souber de impedimento pelo qual não podeis legalmente ser unidos pelos laços do matrimônio, queira dizer agora, pois, ficai bem certos disso, que aqueles que se unem de um modo diferente daquele que é autorizado pela palavra de Deus não são unidos por Deus, nem o seu matrimônio é legal.

Nem o noivo nem a noiva responderam. Ela parecia tranqüila, ele sorria, um sorriso mais ou menos irônico entre as cerdas do bigode. O ministro então disse ao noivo:

- Queres casar com esta mulher para viverdes juntos, segundo a ordenação de Deus, no estado santo do matrimônio? Amá-la-ás, confortá-la-ás, honrá-la-ás e guardá-la-ás na doença e na saúde; e deixando tudo o mais guardar-te-ás para ela somente, enquanto ambos viverem?

- Sim! - fez o noivo.

- Queres casar com este homem para viver, segundo a ordenação de Deus, no estado santo do matrimônio? Obedece-lo-ás, servi-lo-ás, honrá-lo-ás e guardá-lo-ás na doença e na saúde, e deixando todos os outros guardar-te-ás somente para ele, enquanto ambos viverdes?

- Quero - disse a linda senhora.

Houve a cerimônia do anel, enquanto os assistentes abanavam-se. O ministro tomou-o, deu-o ao noivo, que o enfiou no quarto dedo da mão esquerda da noiva, repetindo as palavras do pastor:

- Com este anel eu me caso contigo e doto-te de todos os meus bens terrestres: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém!

- Oremos! Pai nosso que estás no céu...  Era um Padre-nosso... Depois, juntando as mãos do noivo, o ministro disse:

- O que Deus ajuntou não o separe o homem. Visto como têm consentido unir-se, e têm assim testemunhado diante de Deus e das pessoas aqui presentes, e portanto têm prometido fidelidade um ao outro e assim declarado, juntando as mãos, eu os declaro casados no nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo.

Deus o pai, Deus o filho, Deus o Espírito abençoe, preserve e guarde-os; o Senhor misericordiosamente com o seu favor olhe para vós; e assim vos encha de todas as bênçãos e graças espirituais, para que no mundo por vir tenhais vida eterna. Amém!

Estava terminada a cerimônia. Houve um movimento, como nos templos católicos, para felicitar o feliz par, capaz de jurar em tão pouco tempo tantos juramentos de eternidade. As senhoras afiavam um sorrizinho e os homens iam em fila tocantemente indiferentes.

E da féerie do templo, por cima dágua, do mais lindo templo evangelista, onde as luzes ardiam por trás dos vitrais numa confusa irradiação de cores, começaram a sair os convidados. Carros estacionavam na escuridão da praça com os faróis acesos carbunculando... Eu assistira a um casamento sensacional.

No dia seguinte fui à residência do pastor Camargo.

No ano de 1739 falaram com John Wesley, em Londres, oito pessoas que estavam convencidas do pecado e ansiosas pela redenção. Essas criaturas tementes da ira futura desejavam que com elas John gastasse algum tempo em oração. Wesley marcou um dia na semana e daí surgiu a sociedade unida. Aos que desejam entrar para a sociedade só se exige uma condição: o desejo de fugirem da ira vindoura e de serem salvos de seus pecados.

Muita gente há no Brasil receosa da dita ira. A Igreja Metodista, que é um desdobramento da episcopal, começou os seus trabalhos, há vinte e sete anos, no Catete, na casa onde está hoje instalada a pensão Almeida. Tinha apenas sete membros e os missionários mandados pelo board americano, os Revs. Ransom, Cowber, Tarbou Kennedy, sabiam que desses sete já quatro eram metodistas nos Estados Unidos.  Hoje a Igreja conta cinco mil membros, todos os anos o número aumenta, as igrejas surgem, fundam-se colégios, e as missões levam aos recessos do pais, perseguidas, corridas à pedra, a palavra de Cristo. Só o templo da praça José de Alencar custou 107 contos; há missões e igrejas em Petrópolis, na Paraíba, em São Paulo, em Itapecerica, São Roque, Piracicaba, Capivari, Taubaté, Cunha, Amparo; todo o Estado de Minas e o Rio Grande estão cheios de metodistas, e os missionários chegaram até Cruz Alta e Forqueta, no desejo tenaz de prolongar a fé.

Os metodistas têm um grande dispêndio anual. No Rio contribuem para as despesas do pastor em cargo, presbítero-presidente, bispos, missões domésticas, missões estrangeiras, educação de pensionários, Sociedade Bíblica Americana, pobres, atas, construções, casa publicadora, ligas Epworth, escolas dominicais, sociedade auxiliadora de senhoras, de modo que, sendo a média de cada contribuinte de vinte e nove mil réis, a despesa geral eleva-se anualmente a quantia superior a vinte contos. Há cinqüenta e seis sociedades e dezesseis casas de culto, cujo valor é de trezentos e dezenove contos, oito residências e nove colégios, e o valor desses é de quatrocentos e sessenta contos.

Quando cheguei à residência de Jovenilo Camargo, ordenado presbítero há dois anos, estava edificado da situação financeira da igreja, dessa excelente situação. Camargo é paulista, simples e amável. Recebeu-me no seu gabinete de trabalho, donde se descortina todo um trecho belo da praia de Botafogo.

- Há quanto tempo está aqui?

- Há dois anos; os pregadores metodistas não levam mais de quatro anos em cada igreja.

- Quais são os pregadores atualmente no Rio?

- Rev. Parker, da Igreja Evangélica; Guilherme da Costa, que prega em Vila Isabel e no Jardim Botânico, e eu.

Os metodistas têm uma grande quantidade de ministros e de oficiais de igreja, bispos, presbíteros, pregadores em cargo e em circuito, diáconos itinerantes, presbíteros itinerantes, pregadores supranumerários, locais, exortadores, ecônomos, depositários.

- Para cada distrito; na cidade propriamente há apenas os pregadores locais e os ecônomos que tratam das questões financeiras, uma junta de sete membros, que atualmente é composta dos Srs. Joaquim Dias, João Medeiros, Manuel Esteves de Almeida, José Pinto de Castro, Antônio Joaquim e Elesbão Sampaio.

- Há vários jornais metodistas?

- A Revista da Escola Dominical, em São Paulo; O Expositor Cristão, órgão da conferência anual brasileira, dirigido pelos Srs. Kennedy e Guilherme da Costa; O Juvenil, O Testemunho. Como as outras igrejas evangélicas, a Metodista tem sociedades internas que a propagam; a Sociedade Missionária das Senhoras no Estrangeiro, a Sociedade de Missões Domésticas das Senhoras...

- A liga Epworth...

- A liga Epworth é um meio de graça como o culto, a oração, as escolas dominicais, as festas do amor. Temos 34 ligas Epworth. As ligas organizam-se em nossas congregações para a promoção da piedade e lealdade à nossa igreja entre a mocidade, para a sua instrução na Bíblia, na literatura cristã, no trabalho missionário da igreja.

A junta compõe-se de um bispo, seis pregadores itinerantes e seis leigos, sendo todos eleitos de quatro em quatro anos pela conferência geral, sob a nomeação da comissão permanente das ligas Epworth. As ligas locais estão sob a direção do pastor e da conferência trimensal.

- Mas o meio da propaganda?

- É quase todo literário; a liga é propriamente a difusão da literatura evangélica.

- O mais admirável entre os metodistas é o maquinismo, o funcionamento da sua igreja.

- Que é governada por conferências, pode-se dizer. Há conferências da igreja, mensais, trimensais, distritais, anuais e gerais de quatro em quatro anos.

Nessa ocasião, Jovelino Camargo ofereceu-me café, e sorvendo o néctar precioso, eu indaguei:

- Muitos casamentos na capela do Catete?

- Alguns. Para esses atos os pastores procuram sempre os templos mais belos.

- Há muita gente que acredita o vosso casamento uma válvula que a nossa lei não permite.

- Mas é absolutamente falso, é uma calúnia formidável. Os evangelistas respeitam antes de tudo a lei do país em que estão. A totalidade dos nossos pastores não casam sem ver antes a certidão do ato civil. Ah! meu caro, a calúnia tem corrido, os pedidos são freqüentes aos ministros evangélicos para a realização do casamento de pessoas divorciadas, mas nós nos furtamos sempre; e ainda este mês C. Tacker, Álvaro dos Reis, Antônio Marques e Franklin do Nascimento fizeram público pelos jornais que não podiam lançar a bênção religiosa sobre nenhum casal que não tenha antes contraído matrimônio.

Os meus companheiros Kennedy e Guilherme da Costa comentaram esse manifesto que o momento exigia. Nós temos uma lei que nos inibe esse crime. Quer ver?

Ergueu-se, foi à estante, abriu um pequeno livro de capa preta.

- Esta é nossa disciplina, leia.

Ambos curvamos a cabeça, procurando os caracteres à luz fugace do anoitecer e ambos na mesma página lemos: - "Os ministros de nossa igreja serão proibidos de celebrarem os ritos do matrimônio entre pessoas divorciadas, salvo o caso de pessoas inocentes, que têm sido divorciadas pela única causa de que fala a Escritura..."

Houve um longo silêncio. As sombras da noite entravam pelas janelas.

- A causa única de que fala a Bíblia...

- É preciso afinal compreender que nem todas as igrejas denominadas cristãs e protestantes, pertencem à Aliança Evangélica Brasileira e que nós não podemos em nome de Cristo pregar, por assim dizer, a dissolução moral.

Ergui-me.

- Apesar das injustiças dos homens, a Igreja Metodista caminha.

- E os casamentos honestos são em grande número.

Jovelino Camargo desceu comigo a praia de Botafogo. Vinha, como sempre, calmo, inteligente e simples.

- Aonde vai?

- A uma festa de amor.

Estaquei. Mas, Senhor Deus, os metodistas davam-me uma excessiva quota de amor. No dia anterior um casamento, minutos antes o casamento de novo, e agora ali, na sombra da noite, o pastor que me dizia, como um velho noceur, o lugar perigoso para onde ia!

- A uma festa de amor? - interroguei, feroz.

- Sim, é uma festa nossa, trimensal, fez a sorrir o puro moço. Vou fazer oração e participar do pão e da água em sinal de amor fraternal.

E simplesmente Jovelino Camargo desapareceu na sombra, enquanto eu, olhando o céu, onde as estrelas palpitavam, rendia graças a Deus por haver ainda neste tormentoso mundo quem, por seu amor, ame, respeite e seja honesto.

 

OS BATISTAS

E disse o eunuco: Eis aqui está a água. Que embaraço há para que eu não seja batizado? E disse Felipe: Se crês de todo o teu coração, bem podes... E desceram os dois, Felipe e o eunuco, à água, e o batizou...

Estava na rua de Santana, no templo batista, severo e rígido nas suas linhas góticas. Era de noite. À porta um certo movimento, caras curiosas, gente a sair, gente a entrar, e um velho blandicioso distribuindo folhetos.

- Os batistas? Exatamente.

Pego de um folheto, enquanto lá dentro parte um coro louvando a glória de Deus. Trata do purgatório perante as Escrituras Sagradas e está na 2.ª edição. Leio na primeira página: "Entre as diferentes religiões existentes distinguem-se a religião de Jesus, que nos oferece o céu, e a religião do Papa, que aponta o purgatório. O Papa prega o purgatório porque ama o nosso dinheiro..." Com um pouco mais teríamos a Velhice do Padre Eterno!

A Igreja Batista é, entretanto, um dos ramos em que se divide o que o vulgo geralmente chama protestantismo, é uma das muitas divergentes interpretações dos Evangelhos.

Há seis séculos chamava-se anabatista.

Seita antiqüíssima, com grandes soluções de continuidade, desaparecendo muita vez na história sob o martírio das perseguições, sem deixar documentos, mas nunca de todo se perdeu.

Hoje, como as outras seitas que asseguram ser as únicas e verdadeiras intérpretes da Bíblia, o seu foco principal são os Estados Unidos, mas o mundo está cheio de anabatistas e um magnífico serviço de propaganda na China, no Japão, na África, na Itália, no México e no Brasil aumenta diariamente o número de adeptos.

O movimento das missões é tão intenso que até tem um jornal informativo: The Yorking Mission Journal.

Isso não impede que a controvérsia os selecione e que a crítica os divida. Nos Estados Unidos a igreja está dividida em batistas cristãos, novos batistas, batistas rigorosos, batistas separados, batistas liberais, batistas livres, anabatistas batistas, crianças batistas gerais, batistas particulares, batistas escoceses, batistas nova comunhão geral, batistas negros, batistas do braço de ferro, batistas do sétimo dia e batistas pacíficos.

Aos batistas daqui, pacíficos, cristãos e misturados, bem se pode chamar: - do braço de ferro, desde que braço signifique a decisão e a força com que arredam as nuvens da Luz. A história da igreja do Rio começa em 1884 com a chegada do Sr. e da Sra. Bagby.

O Sr. Bagby foi o patriarca. Quatro dias depois de chegar, organizou a igreja na própria casa, com quatro ovelhas, isto é, com quatro cidadãos. Um ano depois mudava-se para a rua do Senado já com outros recursos, passava a pregar na rua Frei Caneca, na rua Barão de Capanema, quase sem abandonar o rebanho, durante anos a fio, e, passado o décimo primeiro, instalava-se num templo próprio, edifício que custou cinqüenta e um contos.

Era nesse templo que eu estava, defronte da igreja da Senhora Sant'Ana, lendo trechos do tal Purgatório, em que uma igreja solapa a outra por amor do mesmo Cristo misericordioso. O velho blandicioso, porém, apertando um maço de Purgatórios debaixo do braço, empurrava-me com um ar de cambista depois do 2.º ato.

- Entre, entre, o senhor vai perder!

Foi então que eu entrei. Todos os bicos de gás silvavam, enchendo de luz amarela as paredes nuas. No fundo, em letras largas, que pareciam alongar-se na cal da parede, esta inscrição solene negrejava: - "Deus amou o mundo de tal maneira que deu a seu filho unigênito para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha vida eterna." Na cátedra ninguém. Do lado esquerdo, o órgão e diante dele uma senhora com a fisionomia paciente, e um cavalheiro irrepreensível, sem uma ruga no fato, sem um cabelo fora da pasta severa. Pelos bancos uma sociedade complexa, uma parcela de multidão, isto é, o resumo de todas as classes. Há senhoras que parecem da vizinhança, em cabelo e de matinée, crianças trêfegas, burgueses convictos, sérios e limpos, nas primeiras filas, operários, malandrins de tamancos de bico revirado, com o cabelo empastado em cheiros suspeitos, soldados de polícia, um bombeiro de cavanhaque, velhas pretas a dormir, negros atentos, uma dama de chapéu com uma capa crispante de lentejoulas, cabeças sem expressão, e para o fim, na porta, gente que subitamente entra, olha e sai sem compreender. O templo está cheio.

O pastor parece concentrado, olhando o rebanho de ovelhas, a maior parte ignorante do aprisco. Nessa noite não se perde em erudições teológicas; nesta noite chama com o órgão do Senhor os carneiros sem fé. E é uma coisa que se nota logo. A propaganda, a atração da Igreja é a música. Ganham-se mais fiéis entoando um hino que fazendo um sábio discurso cheio de virtudes. O Sr. Soren, o pastor calmo, irrepreensível, parece compreender os que o freqüentam, sem esquecer sua missão evangélica. E positivamente o professor. Sem o perfume dos hinários e sem aquelas letras negras da parede, a gente está como se estivesse numa aula de canto do Instituto de Música, ouvindo o ensaio de um coro para qualquer chêche mundana...

Vamos mais uma vez, diz ele com um leve acento inglês. Este hino é muito bonito! Cantado por duzentas vozes faz um efeito! Sabem a letra? Vamos...  A dama, com um ar de bondade indiferente, corre o teclado, acordando no órgão graves e profundos sons que se perdem no ar vagarosamente. Depois, receosa, acompanhando cada acorde, a sua voz, seguida da do pastor, começa:

Oh! Se-e-nhor!...

Muitos lêem os versos, acompanhando a voz do pastor, outros, nervosos, precipitam o andamento. Mas naquele ensaio, logo me prende a atenção um preto de casaco de brim sem colarinho. O órgão domina-o como um som de violino domina os crocodilos. Nos seus dentes brancos, nos olhos brancos, de um branco albuminoso, correm risos de prazer. Sentado na ponta do banco, os longos braços escorrendo entre os joelhos, a cabeça marcando o compasso, ele segue, com as mandíbulas abertas, os sons e as vozes que os acompanham. Depois, como o Sr. Soren diz:

- Vamos repetir. Já se adiantaram. Um, dois, três!

Oh! Se-e-e-nhor!...

o negro também, abrindo a fauce num repuxamento da face inteira, cantou:

Oh! Se-e-e-nhor!

E todo o seu ser irradiou no contentamento de ter decorado o verso bonito.

Eu curvei-me para o velho, que passava com outro maço de Purgatórios debaixo do braço:

- Vem sempre aqui, aquele?

- Vem sim, é fiel. Eu é que não sou...

E, confidencialmente, desapareceu.

Entretanto o hino acabara bem. Quase que houve palmas. Estavam contentes.

O Sr. Soren consultou o relógio e aproveitou a boa vontade dos irmãos.

- Vamos, mais um hino. É lindo! Estudemos só a primeira parte. De Deus até Salvador.

A organista tocou primeiro a música para que os batistas aprendessem o tom, e todos começaram o novo hino, as crianças, as senhoras, os homens graves, enquanto o negro abria as mandíbulas e uma velha fechava os olhos enlevados e sonolentos. Quando as vozes pararam num último acorde, o Sr. Soren disse algumas palavras sobre a glória do Senhor e estendeu as mãos.

Amém! Estava acabado o estudo. Alguns crentes demoraram-se ainda, o negro saiu dando grandes pernadas, outros estremunhavam. Mandei então o meu cartão ao Sr. Soren, que se apoiava ao órgão rodeado de damas veneráveis.

Esse homem é amabilíssimo. Nascido no Rio, de uma família francesa que fugia às perseguições religiosas da França, estudou nos Estados Unidos e é bacharel. No seu gabinete, ao fundo, limpo e brunido, onde se move com pausa, tudo respira asseio e austeridade. Soren mostra a biblioteca, encadernações americanas de percaline e couro, bate nos livros recordando as dificuldades do estudo, a aridez, o que certos autores custavam.

- Para tudo isso há a compensação da verdade que conforta - diz.

A verdade deve confortar como um beef. Guardo, porém, essa comparação.

Os batistas, firmados na Bíblia, assim como praticam o batismo por imersão, não comem carne com sangue... Limito-me a dizer.

- A sua crença?

- Mas nós cremos que a Bíblia foi escrita por homens, divinamente inspirados, que têm Deus como autor e a salvação como fim; cremos que a salvação dos pecados é totalmente de graça pelos ofícios medianeiros do filho de Deus; cremos que a grande bênção do Evangelho que Cristo assegurou é a justificação; e cremos na perseverança, no Evangelho, no propósito de graça, na satisfação que começa na regeneração e é sustentada no coração dos crentes.

O Sr. Soren pára um instante.

- Cremos também - continuou -, que o governo civil é de autoridade divina, para o interesse e boa ordem da sociedade e que devemos orar pelos magistrados.

- E crêem no fim do mundo?

- ... Que se aproxima.

Enquanto, porém, o fim não aparece, a propaganda batista é feita com calor no Brasil: em São Paulo, na Bahia, em Pernambuco, no Pará, no Amazonas. No Rio existem os Srs. Entznimger e esposa, Deter e esposa e o Sr. Soren, criaturas de pureza exemplar. Na cidade há quatro congregações. Os pastores, dos quais foi sempre o principal o Sr. Bagby, que se retirou em 1900, têm pregado na rua D. Feliciana, no Estácio de Sá, em Madureira, no morro do Livramento, em São Cristóvão, na ladeira do Barroso, em Paula Matos, em Santa Teresa, na Piedade, no Engenho de Dentro, na rua Barão de São Félix.

O Evangelho caminha.

E são grandes os progressos?

- Ricamente abençoado o trabalho. Pelos dados que tenho, realizaram-se em 1903 cerca de mil batismos, foram organizadas dez igrejas novas, edificaram-se três templos novos e a contribuição das igrejas foi de 50:000$000. Há dois anos que estamos no Brasil. Os batistas aumentaram de 500 a 5.000, de 5 igrejas a 60. A nossa casa publicadora já editou, além do Jornal Batista e do Infantil, mais de um milhão de páginas em folhetos.

- Qual a publicação que tem agradado mais?

- O Cantor Cristão!

A música, o som que convence, a crença em harmonia!

Os gregos admiráveis já tinham no seu divino saber descoberto a propriedade sutil, e na Lacedemônia os rapazes recebiam o amor da pátria ao som das flautas, em odes puras! Já nos íamos despedir. O pastor deu-nos o seu jornal, com um artigo de D. Arquimina Barreto, uma erudita senhora.

- Somos todos iguais perante Deus. No templo pode falar o mais ignorante como o mais sábio... Deus deseja a virtude antes de tudo. D. Arquimina alia as virtudes a um grande saber.

- E, a propósito, aquela senhora organista é sua esposa?

- Não, eu ainda me vou casar nos Estados Unidos.

E eu saí encantado com a clara inteligência desse pastor, que espera calmo e virtuoso o fim do mundo, enquanto, à porta, o velho blandicioso distribui Purgatórios contra os padres e as moças.

 

A  A.C.M.

- Olhe as terras onde se propaga o Evangelho.

Desde um ao outro pólo,
Da China ao Panamá,
Do africano solo
Ao alto Canadá

a A.C.M. conquista, suaviza, prestigia e guia...

Nós acabávamos de jantar e o meu ilustre amigo, com um copo d'água pura na mão, dizia-me coisas excelentes.

- O nosso movimento, continuou, conta entre os seus amigos Eduardo da Inglaterra, o príncipe Bernadotte da Suécia, o presidente dos Estados Unidos e Guilherme II. Na França, ministros de Estado aceitam cargos de administração da A.C.M.; na Inglaterra os seus edifícios erguem-se em todas as cidades como os grandes lares da juventude honesta, e por toda a parte ela reforma os costumes e purifica as almas dos moços, tornando-os simétricos e bons. Você não terá uma idéia integral do movimento das cinco igrejas evangélicas do Rio sem ir apreciar de perto o capitel magnífico dessa coluna de branco mármore. A A.C.M. é o remate admirável da nossa obra de propaganda.

Finquei os cotovelos na mesa com curiosidade.

- Mas a origem da A. C. M. no mundo?

- Shuman, secretário-geral em Buenos Aires, disse-nos na convenção de 1903 essa origem. Em 1836 apareceu na cidade de Bridgewater, na Inglaterra, um rapazola de 15 anos, chamado George Wiliams. Mandava-o o pai do campo para aprender um ofício. George viu que os seus sessenta companheiros eram de moral duvidosa e sem crença e que de um meio tão grande só dois ou três oravam ao Redentor. Orou também no seu mísero quarto, por trás da oficina, durante uma hora. A princípio fazia só esses exercícios, depois convidou os companheiros, e cinco anos depois estava em Londres. Londres! a cidade mais populosa do mundo!

Conhece você os perigos das cidades, o desvario, a luxúria, a perdição, o jogo, a ambição desmedida dos grandes centros? Onde se congregam mais os homens, aí entra com mais certeza Satanás, aí grassa mais terrível a epidemia da perdição. Wiliams na fábrica em que se empregou, não encontrou um só cristão. Ao cabo de um mês, porém, apareceu um novo empregado, Christofer Smith, e os dois ligados pela amizade, resolveram a conversão dos companheiros, convidando-os para estudar a Bíblia e orar. Em pouco tempo as reuniões cresceram, e a 10 de junho de 1844 representantes dessas reuniões efetuaram a organização da primeira Associação Cristã de Moços. Foi seu fundador uma criança de 20 anos, mandada pelo Salvador a um meio cheio de vícios e de tentações para lhe dar o bálsamo da honestidade.

A pequena associação estendeu-se a todos os países do mundo. Hoje há mais de 1.500 na Inglaterra, de 1851 até agora 1.600 fundaram-se só nos Estados Unidos. À primeira convenção internacional compareceram 39 delegados de 38 associações em sete países; em 1902 em Cristiania assistiram 2.508 delegados de 31 países. Há 60 anos a A.C.M. iniciou os seus trabalhos; hoje só na América do Norte há mais de 25.000 moços estudando a Bíblia nas classes das associações e num só ano 3.560 professaram a sua fé convertidos na Associação e 9.600 outros se dedicaram ao serviço do Senhor.

- As A.C.M. não admitem apenas crentes professos?

- Não, a Associação de Londres resolveu, em 1848, receber como sócios auxiliares os moços de boa moral. Atualmente metade dos nossos sócios, cerca de 250.000, pertence a essa classe. Mas, meu caro, é esta uma base luminosa da propaganda, chamar a si os olhos do mundo, mostrar a pureza num século de impurezas, tolerar e purificar. Entre os estudantes das escolas, na profissão borboletante do jornalismo, nas raças mais estranhas, entre chins e caboclos selvagens, na classe universalmente conhecida pela sua intemperança, nos empregados das estradas de ferro da América, a propaganda alça por esse meio a branca flâmula da Associação.

O meu ilustre amigo calou-se. No restaurante o burburinho crescia, senhoras com toilettes caras, homens contentes, curvavam-se no prazer de comer. Havia risos, criados passavam com os pratos de cristofle brilhando à luz dos focos, em baldes de metal as garrafas gelavam e das jarras de cristal as flores de pano pendiam desoladas ao peso do pó e do tempo. Todos ali conversavam de interesse, de ambição, de amor, de si mesmos... Senti-me superior, mandei vir um copo d'água, bebi-o com pureza. Naquela grande feira nós conversávamos da alma e do bem universal!

- E a A.C.M. do Rio?

- A nossa Associação tem também a sua evolução. Os primeiros moços cristãos reuniram-se para ouvir Simonton e Kalley na travessa das Partilhas. Foi aí que germinou a idéia de uma sociedade evangélica de moços. Em junho de 1866 cerca de vinte crentes organizaram a Sociedade Evangélica Amor à Verdade, que se manteve durante quatro anos.

Em 1871 apareceu uma outra sociedade com fins idênticos, funcionando na travessa das Partilhas e na travessa da Barreira. Esta chamava-se o Grêmio Evangélico, tinha uma oficina de impressão da qual eram tipógrafos e impressores os próprios sócios, dirigidos por Antônio Trajano, Azaro de Oliveira, Carvalho Braga e Ricardo Holden.

Myron Clark, que fez o histórico desse movimento, conta ainda mais, antes da atual Associação, a Boa Nova, dirigida por A. Seabra, M. Diel e Antônio Meireles, em 1875; o Grêmio Evangélico Fluminense organizado por Antônio de Oliveira, Severo de Carvalho, Noé Rocha e Benjamin da Silva, na rua de S. Pedro, 97, com o fim de manter um jornal de propaganda, uma classe de música, biblioteca, sessões literárias; a Associação Cristã dos Moços, fundada na mesma rua de S. Pedro com uma diretoria composta pelos Srs. João dos Santos, Antônio Andrade, José Luiz Fernandes Braga e Salomão Guisburgo, que publicaram o Bíblia, primeiro jornal evangélico a ocupar-se da mocidade no Brasil; e a Sociedade Evangélica de São Paulo.

A A.C.M. do Rio foi fundada a 31 de maio de 1893. Vinte e dois moços, representantes das igrejas Metodistas, Presbiteriana, Fluminense e Batista, reuniram-se na rua Sete de Setembro, 79 e Myron Clark e Tucker expuseram o fim da reunião. Dias depois aprovaram os estatutos e elegiam a diretoria: Nicolau do Conto, Antônio Meireles, Luís de Paula e Silva Myron Clark e Irvine. Não é possível ter feito tanto em tão pouco tempo! Em 8 de agosto a Associação já estava instalada na rua da Assembléia e começava a pôr em atividade os diversos departamentos do trabalho social.

Nem a revolta, nem os bombardeios, nem a agitação apavorada da cidade conseguiram esfriar o santo entusiasmo. Quando os tiros eram muitos, a Associação fechava as suas salas, para no outro dia abri-las; as aulas funcionavam; e no dia 12 de outubro, quando toda a gente só falava em tiroteios, os moços cristãos iam a Copacabana, iniciando um dos seus ramos de trabalho, a excursão social.

- Como se realizou a compra do prédio?

O evangelista limpou o lábio seco.

- Em 1895, o secretário-geral sugeria a conveniência do projeto. A diretoria aprovou-o; na reunião da vigília os Revs. Leônidas da Silva e Domingos Silveira falaram, pedindo donativos e compromissos mensais para criar-se um fundo especial, e nesta ocasião começaram os trabalhos da comissão dos compromissos. A Associação tem tido poderosos auxílios estrangeiros, tem em Fernandes Braga, uma alma pura e nobre, um grande esteio, mas no fim da reunião da comissão verificou-se que a soma total dos compromissos era de 65$000 mensais.

- Deus do Céu!

- O patrimônio da Associação eleva-se hoje a mais de cem contos. Fernandes Braga comprou o terreno, James Lawson ofereceu-se para emprestar o dinheiro das obras, abriu-se uma subscrição, Braga deu dez contos e Lawson dois; a comissão, composta de Fernandes Braga Júnior, Lisânias Cerqueira Leite, Luís Fernandes Braga, Domingos de Oliveira e Oscar José de Marcenes, multiplicou-se. Dois anos depois inaugurava-se o edifício, a casa dos moços, a obra de Deus, como diz o Rvdm. Trajano. A nossa satisfação, porém, meu caro, não vem apenas da realização desse tentamen.

A A.C.M. do Rio acendeu nos evangelistas do Brasil o desejo de associações idênticas. Eu, só, posso citar a Associação Cristã de Moços de Belo Horizonte, a Sociedade de Moços Cristãos de Castro (do Paraná), a   A.C.M. de Sorocaba, a Associação Educadora da Bahia, a de Taubaté, a Legião da Cruz, a Milícia Cristã, a Associação de Santo André no Rio Grande, a Associação Cristã dos Estudantes no Brasil, filiada à Federação dos Estudantes no Universo, de São Paulo, a do Natal e a de Nova Friburgo.

Dentro em pouco estaremos como os Estados Unidos.

- Prouvera a Deus!

Tínhamo-nos erguido.

- Onde vai?

- Por aí, passear, ver.

- Pois venha comigo à Associação, agora. São 7 horas, estão funcionando as aulas. Venha e terá uma impressão do que é o centro do evangelismo no Brasil.

E saímos pelas ruas pouco iluminadas, em que a chuva miúda punha um véu de névoas.

A Associação não é nem uma igreja nem uma sociedade mundana, embora possua característicos profanos e seculares; é a casa dos moços, o segundo lar que supre as necessidades intelectuais com biblioteca, cursos, aulas, conferências; mantém a sociabilidade da juventude em salões de diversões, desenvolve-lhe o físico com ginásticas, jogos atléticos, passeios, piqueniques e, conjuntamente, lhe faz sentir a necessidade da religião. Há nessa instituição de fonte inglesa o desejo de um equilíbrio, a vontade de criar o moço simétrico, o desenvolvimento harmonioso, num ser vivo, da inteligência, do físico, da natureza social e da alma.

O homem nas grandes cidades perde-se. A Associação ampara-o, serve-lhe de escola, de clube, de lar, de templo, dá-lhe banho, conversas morais, pingue-pongue, danças, aulas noturnas, ensina-lhe a Bíblia, põe-lhe à disposição os jornais do mundo, fá-lo assistir a conferências sobre assuntos diversos. O moço deixa o lar paterno e, enquanto por sua vez não forma outro lar, fica nesse ambiente de honestidade, não só se tornando o tipo admirável do equilíbrio, como preservando das avarias e dos sofrimentos a prole futura.

A Associação é o conforto, a paz e broquel da honestidade por estes turvos tempos. Tudo quanto ensina é útil, tudo quanto diz é honesto, tudo quanto faz é para o bem.

Ao subir as altas escadarias, recordei a frase do meu amigo. A Associação é o capitel, é a razão de ser da futura propaganda, é o centro do evangelismo, a maneira eficaz por que todas as igrejas evangelistas demonstram na sua perfeita integridade a vida do cristão.

Quando chegamos lá em cima, funcionavam as aulas: na sala de diversões jogava-se o crokinole e o carroms; a um canto conversava-se. Todos estavam bem dispostos e riam com prazer. O meu ilustre amigo apresentou-me ao presidente, Braga Júnior, um moço inteligente, extremamente modesto; ao secretário, de uma distinção perfeita; e os dois mostraram-me, simples e sem exageros, os vastos salões, o de ginástica, o das conferências, o de estudos bíblicos, aulas, a secretaria, a biblioteca.

A gentileza peculiar aos evangelistas cativava naquele vasto prédio, cheio de vida e de mocidade. Cada frase do secretário era uma noção exata, cada reflexão do presidente tinha um grande ar de bondade e de modéstia. As mobílias eram novas e por toda a parte os conselhos cristãos abundavam.

- Não admire aqui, disse o meu amigo, senão a vida do civilizado e do honesto. Você conversou com os pastores, esteve com os missionários, assistiu ao culto nas nossas igrejas, viu o esforço das missões. Veja agora apenas a vida. Estes que aqui estão, meu amigo, livres estão dos três horrendos animais da visão dantesca. Não os aterram a pantera da literatura pornográfica, o leão do jogo da bola e a loba da lascívia. E, por isto, salvos por Cristo, serão maiores amanhã e mais fortes.

Senhor! parecia uma conversão! Apertei-lhe a mão, deixei-o jogando pingue-pongue, desci os dois andares. Na rua ventava uma chuva fria e penetrante. A loba, a lascívia, a pantera, a pornografia, o leão, o jogo, a eterna vida! Quantos neste mundo se salvaram dos animais simbólicos na grande banalidade da existência, quantos?

Como apertasse a chuva, embrulhei-me mais no paletó, atravessei as ruas escuras recordando a aparição que fizera recuar o Dante até lá dove'l sol tace.

Mas sem gritar e sem ver o vulto da salvação, porque talvez a tivesse deixado no salão de divertimentos, na doce paz daquelas almas fortes e tranqüilas.

 

IRMÃOS E ADVENTISTAS

Na própria A.C.M. eu soube que o evangelismo ainda tinha duas igrejas no Rio, os irmãos e os sabatistas. Dos irmãos, apesar dessa classificação tão parternal, o meu informante só conhecia um probo negociante da rua do Hospício.

Esse negociante era um homem baixo, simples e modesto, vendendo relógios e amando a Deus. Recebeu-me por trás do mostrador, e quando soube que tinha sob os olhos um curioso, pasmou.

- Interessa-lhe muito saber o que são os cristãos?

- Os irmãos...

- Perdão, os cristãos.

- Era para mim um grande favor.

Ele coçou a cabeça, alegou uma grande ignorância, com humildade. Depois, como eu continuava diante dele, resolvido a não sair, resignou-se.

- Os irmãos que se reúnem à rua Senador Pompeu, n.0 121 denominam-se cristãos.

Não precisa perguntar porque. Leia os atos dos Apóstolos capítulo 11, versículo 26. Existem no Rio, há vinte e cinco anos. Não tem templo próprio, reúnem-se em casa de um irmão como deve ser. Leia a Epístola de São Paulo aos Romanos, capítulo 16, versículo 5. Os seus estatutos, a sua regra de fé são as Escrituras e a sua divisa é não ir além delas. Leia a 1 a Epístola aos Coríntios, capítulo 4, versículo 6.

- E o pastor, quem é?

- Reconhecemos como único pastor a Jesus Cristo.  Leia São João, capítulo 10, versículos 11 a 16. O governo da igreja está ao cuidado dos anciãos ou mais velhos, que fazem esse serviço sem outra remuneração que não sejam o respeito e a honra da igreja. Leia os Atos... Como não nos achamos autorizados pelas Escrituras, não celebramos casamentos, reconhecemos o instituído pelas potestades legalmente constituídas, a quem buscamos obedecer, desde que não contrariem as determinações de Deus. Leia a Epístola aos Romanos versículos 1 a 6. Naturalmente cuidamos dos pobres e dos enfermos, fazendo coletas e seguindo o ensino das Escrituras. Veja a Epístola aos Coríntios.

- Como se pratica o culto?

- No primeiro dia da semana congregamo-nos para celebrar a festa da Páscoa cristã, ou a Ceia do Senhor, às 11 da manhã com pão e vinho. Nessa ocasião adoramos a Deus, entoando hinos e lendo as Escrituras, interpretando-as e edificando a alma com muitos outros dons do Espírito Santo. Basta ler a neste respeito São Paulo e os Atos e o Evangelho segundo São Mateus.  Reunimo-nos também aos domingos das 5½ às 6½ da tarde para estudar as Escrituras. Das 6½ às 7½ prega-se o Evangelho.

Era simples, puro, primitivo. Aquele relojoeiro, que a cada palavra parecia amparar a sua autoridade na palavra da Bíblia, enternecia.

- E que se diz nessa hora de domingo aos pobres pecadores e irmãos?

- Vede os Atos, São Paulo, São João... Só há um Salvador, só há um meio para o perdão dos pecados e só existe um mediador entre Deus e os homens - é nascer de novo, é nascer do Espírito Santo. Esperemos a sua chegada.

- Então, Cristo está para chegar.

Gravemente o honesto irmão olhou-me.

- Talvez demore. Talvez venha aí... A corrupção é tanta que só ele a pode extinguir.

Saí meio aflito. É possível que ainda se encontre um cristão de conto católico em plena cidade do vício, é possível essa candura?

Estava de tal forma nervoso que, sabendo obter de um crente em Niterói informações sobre os adventistas, escrevi logo uma carta espetaculosa, pedindo-lhe uma nota de efeito.

No dia seguinte lia esta resposta lacônica e seca: - "I;mo. Sr. - Se quiser compreender a verdade de Deus, venha V. S. até ao nosso templo, em Cascadura."

Era uma recusa? Era uma lição? Guardei a carta humilhado, porque grande crime é para mim magoar a crença de qualquer, e estava, domingo, tristemente lendo, quando à porta surgiu um homem de negra barba cerrada, vestido numa roupa de xadrez. Olhou-me fixamente, limpamente, e a sua voz, de uma inédita doçura, disse:

- Eu sou o crente a quem há tempos escreveu!

Levantei-me nervoso. A tarde de inverno, caindo, punha pela sala uma aragem álgida, e a minha pobre alma estava num desses momentos de sensibilidade em que se crê no maravilhoso e nos espaços. Fui excessivo de gentileza. Pedia perdão, de não ter obedecido ao convite, mas era tão longe, tão vago, em Cascadura...

O crente fervoroso sentou-se, pousou a sua mala no chão, encostou o velho guarda-chuva à parede.

- Não é bem em Cascadura, fica entre Cupertino e essa estação, deixei de mandar-lhe as notas porque não me achava com competência para as dar. São João disse. Temei a Deus e dai-lhe Glória. Eu sou muito humilde, só lhe posso dar a minha crença.

- Mas uma simples informação?

- Era preciso consultar os meus irmãos.

Eu ficara na sombra, a luz batia-lhe em cheio no rosto. Reparei então nos traços dessa fisionomia. O lábio era quase infantil, os dentes brancos, pequenos, cerrados, e toda aquela espessa barba negra parecia selar potentemente a inefável bondade do seu perfil. De resto o crente era tímido, cada palavra sua vinha como um apostolado que se desculpa e a sua voz persuasiva ciciava baixinho a crença do Infinito, com um conhecimento dos livros sagrados extraordinário.

- Mas a origem dos adventistas? - indaguei eu.

O crente puxou a cadeira.

Uma discussão que se levantou na América em 1840 e na qual Guilherme Miller ocupou lugar saliente. Os adventistas esperavam o fim do mundo em 1844, porque a profecia de Daniel, no capitulo 8 versículo 14, diz que o santuário será justificado ou purificado ao fim do decurso do período profético de 2.300 dias.

- Deus! em tão pouco tempo?

- Dias proféticos equivalentes a um ano. Os adventistas julgavam que o 2.300 era o ano de 1.844 e que a justificação ou purificação do santuário importaria em ser queimada a terra com a vinda de Cristo.

Esperavam pois a vinda de Jesus.

Olhei o crente. Os seus olhos eram beatos como os olhos dos puros.

- Ora o tempo passou e Cristo não veio...

- Sim - fez ele -, e claro ficou o erro. Ou houve falta na contagem dos 2.300 dias ou a purificação do santuário não era purificação da terra na segunda vinda de Cristo. Mas a questão agitara o estudo. A coisa foi examinada e duas opiniões se formaram. Uns julgavam que o período profético ainda não decorrera, outros, com lento trabalho, chegaram à convicção de que o erro existia na palavra santuário.

- Então o santuário?

- Não tem aplicação à terra, mas verdadeiramente ao céu, onde Jesus Cristo entrou no fim desse período de tempo, para purificá-lo com o seu próprio sangue, conforme está descrito.

A classe que aceitou essa interpretação é a que se chama adventistas do 7.º dia. Não marcamos tempo nem cremos que qualquer período profético assinalado na Bíblia se estenda até nós.

- Então aceitam como base da fé?

- A Bíblia Sagrada, a palavra de Deus, sem tradições, e a autoridade de qualquer igreja. Cristo é o Messias prometido, só por ele se obtém a salvação. As pessoas salvas observam os dez mandamentos inclusive o 4.º, celebram a Santa Ceia do Senhor, em conexão com o ato de humildade praticado por Jesus Cristo, crêem na ressurreição, que os mortos dormem até esse momento, conforme as palavras do Salvador em São João..

- A ressurreição?

- Sim, a dos justos far-se-á na segunda vinda de Cristo, a dos ímpios mil anos depois, com um grande fogo que os queimará e purificará a terra!

- Então não é cedo?...

- Infelizmente, parece. Nós fazemos o bem, temos uma missão médica, que envia facultativos a toda a parte do mundo, fundamos sanatórios, e, crendo que a educação intelectual não basta, conseguimos escolas industriais.

À semelhança do cristianismo nos tempos apostólicos o adventismo tomou um rápido incremento, elevando-se o número de crentes a 80.000, segundo as profecias sagradas.

- E a obra no Brasil?

- A obra no Brasil começou em 1893, contando hoje um número de membros leigos de 800 a 900 espalhados na maioria pelos Estados de Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, contando o seu corpo eclesiástico: três pregadores ordenados, três licenciados, dois missionários médicos, dois professores diretores de escolas missionárias e onze professores de escolas paroquiais, sete colportores evangelistas, uma revista O Arauto da Verdade e um redator.

Na sua organização outros membros ocupam cargos segundo os dons manifestados e conforme a necessidade do trabalho na obra de Deus.

Tem quinze igrejas organizadas.

O atual presidente do trabalho é um médico missionário Dr. H. F. Graf, residente em Taquari - Rio Grande do Sul - e o secretário-tesoureiro, o irmão A . B. Stauffer, residente no Distrito Federal, em Cascadura.

Há ainda uma comissão administrativa composta de sete pessoas, duas escolas missionárias, uma em Taquari no Rio Grande do Sul, outra em Brusque, Santa Catarina, e onze escolas paroquiais.

Ele levantara-se. Terminada a informação, partia como um personagem de lenda. Pegou da mala, do guarda-chuva.

- Bernardino Loureiro, quando quiser...

Apertei-lhe a mão com reconhecimento. Se há no mundo momentos fugazes de sinceridade, a presença desse varão mos tinha dado com a extrema paz que vinha da sua palavra.

- Diga-me uma coisa, uma última. E Cristo? Quando vem Cristo?

- Os sinais que deviam preceder a sua vinda, conforme Ele mesmo predisse em Mateus, cumpriram-se. É de crer que a sua vinda esteja próxima.

- Quando?

- Ainda nesta geração, talvez amanhã, quem sabe?

Tornou a apertar-me a mão, sumiu-se. Passara como o anunciador, apagara-se como um raio de sol. 

A noite caíra de todo. As trevas subiam lentamente pelas paredes, e a brisa úmida, entrando pelas janelas, sacudia as folhas de papel esparsas, num tremor assustado.

 

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