AS RELIGIÕES DO RIO - SEXTA PARTE

 

O ESPIRITISMO ENTRE OS SINCEROS

O marechal Ewerton Quadros esperava um bonde para a cidade, quando um bonde passou inteiramente vazio.

- Por que não toma este? - perguntaram-lhe.

O marechal mergulhou mais a face adunca nas barbas matusalêmicas:

- Não é possível. Está cheio de espíritos maus! - e, como aparecesse outro inteiramente cheio, agarrou-se ao balaústre e veio de pé até à cidade.

Desde que se deixa a traficância do baixo espiritismo, que se conversa nas rodas intelectuais cultivadas, esse estado alucinante torna-se normal.

Ao subirmos as escadas da Federação, o meu amigo ia dizendo.

 

There are more things in heaven and earth, Horatio,
There are more dreams in your philosophy.

 

Esses melancólicos versos temerosos, do mundo invisível, resumem o nosso estado mental.

Muita coisa há no mundo de que não cuida a nossa vá filosofia, muita coisa há neste mundo invisível...

Já não se conta o número de espíritos ortodoxos, conta-se a atração dos nossos cérebros mais lúcidos pela ciência da revelação. A Marinha, o Exército, a advocacia, a medicina, o professorado, o grande mundo, a imprensa, o comércio têm milhares de espíritas. Há homens que não fazem mistério da sua crença. Os generais Girard e Piragibe, o major Ivo do Prado, o almirante Manhães Barreto, Quintino Bocaiúva, Eduardo Salamonde, os Drs. Geminiano Brasil, Celso dos Reis, Monte Godinho, Alberto Coelho, Maia Barreto, Oliveira Menezes, Alfredo Alexander proclamam a pureza da sua fé. A Federação tem 800 sócios e ainda o ano passado expediu 48 mil receitas.

Os que não praticam a moral, aceitam a parte fenomenal. E ao chegar a essa esfera que se começa a temer a frase do católico: "O espiritismo é um abismo encantador; foge ou de lá nunca mais sairás". Se na sociedade baixa, centenas de traficantes enganam a credulidade com uma inconsciente mistura de feitiçaria e catolicismo, entre a gente educada há um número talvez maior de salas onde estudam o fenômeno psíquico e a adivinhação do futuro, com correspondência para Londres e um ar superiormente convencido.

Decerto, em parte, a frivolidade que faz senhoras elegantes citarem poetas franceses e conversarem de ocultismo nos gutters invernais, faz de algumas dessas sessões um divertimento idêntico à lanterna mágica e ao laun-tennis; decerto há entre os mais convictos Bouvard, Pécuchet e mesmo o conselheiro Acácio; mas, frívolos e tolos foram sempre os meios inconscientes de expansão de uma crença, e o espiritismo científico deles se serve para triunfar.

Nas rodas mais elegantes, entre sportsmen inteligentes, lavra o desespero das comunicações espíritas, como em Paris o automobilismo.

Ainda há alguns meses senhores do tom, ao voltarem do Lírico, encasacados e de gardênia ao peito, comunicavam-se no Hotel dos Estrangeiros com as almas do outro mundo, por intermédio de uma cantora, medium ultra-assombroso.

À tarde na Colombo, esses senhores combinavam a partie de plaisir, e à noite nos corredores do Lírico, enquanto o Caruso rouxinoleava corpulentamente para encanto das almas sentimentais, eles prelibavam as revelações sonambúlicas da medium musical.

Esses fatos são raros, porém, e as experiências assombrosas multiplicam-se; os mediuns curam criaturas a morrer. Leôncio de Albuquerque, que tratava caridosamente a Saúde em peso, anuncia, sem tocar no doente, o primeiro caso de peste bubônica, e cada vez mais aumenta o número de crentes.

O meu amigo dizia-me:

- Nunca se viu uma crença que com tal rapidez assombrasse crentes. Se o Figaro dava para Paris cem mil espíritas, o Rio deve ter quase igual soma de fiéis. O Brasil, pela junção de uma raça de sonhadores como os portugueses com a fantasia dos negros e o pavor indiano do invisível, está fatalmente à beira dos abismos de onde se entreve o além. A Federação publicou uma estatística de jornais espíritas no inundo inteiro. Pois bem: existe no mundo 96 jornais e revistas, sendo que 56 em toda a Europa e 19 só no Brasil.

- Como se reconhecem as nossas aptidões literárias!

- Não ria. Tudo na terra tem a sua dupla significação.

- E quais são essas revistas e jornais?

- Mensageiro, em Manaus (Amazonas); Luz e Fé e Sofia, em Belém (Pará); A Cruz, em Amarante (Piauí); Doutrina de Jesus, em Maranguape (Ceará); A Semana (ciências e letras), no Recife (Pernambuco), A Verdade, em Palmares (Pernambuco); O Espírita Alagoano, A Ciência, em Maceió, (Alagoas); Revista Espírita, em S. Salvador (Bahia); Reformador, no Rio de Janeiro; Fraternização, Verdade e Luz, A Nova Revelação, O Alvião e A Doutrina, em Curitiba (Paraná); Revista Espírita, em Porto Alegre (Rio Grande do Sul); A Reencarnação, no Rio Grande; O Allan Kardec, em Cataguazes (Minas Gerais).

- Como começou esta propaganda no Brasil?

- Homem, o Sr. Catão da Cunha diz que os primeiros espíritas brasileiros apareceram no Ceará ao mesmo tempo que em França. A propaganda propriamente só começou na Bahia, no ano de 1865, com o Grupo Familiar do Espiritismo.

Era o espiritismo em família, ab ovo, porque aos quatro anos depois surgiu o primeiro jornal, dirigido pelo Dr. Luís Olímpio Teles de Menezes, membro do Instituto Histórico da Bahia. Esse jornal intitulava-se O Eco de Além Túmulo.  A propaganda tem sido rápida.

Ainda em 1900 no seu relatório ao Congresso Espírita e Espiritualista de Paris, a Federação acusava adesões de setenta e nove associações e o aparecimento de trinta e dois jornais e revistas de propaganda, entre os quais o Reformador, que conta vinte e quatro anos de existência.

Basta esse relatório para afirmar a força latente da crença.

- Vamos à Federação, o centro onde se praticam todas as virtudes do espiritismo. Verá com os seus próprios olhos.

A Federação fica na rua do Rosário, 97. É um grande prédio, cheio de luz e de claridade. Cumprem-se aí os preceitos da ortodoxia espírita; não há remuneração de trabalho e nada se recebe pelas consultas. A diretoria gasta parte do dia a servir os irmãos, tratando da contabilidade, da biblioteca, do jornal, dos doentes. A instalação é magnífica. No primeiro pavimento ficam a biblioteca, a sala de entrega do receituário, a secretaria, o salão de espera dos consultantes e os consultórios. Seis mediuns psicográficos prestam-se duas horas por dia a receitar, e as salas conservam-se sempre cheias de uma multidão de doentes, mulheres, homens, crianças, figuras dolorosas com um laivo de esperança no olhar.

A casa está sonora do rumor contínuo, mas tudo é simples, caridoso e sem espalhafato. Quando entramos não se lhe altera a vida nervosa. A Federação parece um banco de caridade, instalado à beira do outro mundo. Os homens agitam-se, andam, conversam, os doentes esperam que os espíritas venham receitar pelo braço dos mediuns, sob a ação psicográfica, falam e conversam enquanto o braço escreve.

Atravessamos a sala dos clientes, entramos no consultório do Sr. Richard. Há, uma hora que esse honrado cavalheiro, espírita convencido, escreve e já receitou para quarenta e sete pessoas.

- Há curas? - perguntamos nós, olhando as fileiras de doentes.

- Muitas. Nós, porém, não tomamos nota.

- Mas o senhor não se lembra de ter curado ninguém?

- A mim me dizem que pus boa uma pessoa da família do general Argolo. Mas não sei nem devo dizer. É o preceito de Deus.

Deixamo-lo receitando, já perfeitamente normalizados com aquele ambiente estranho, e interrogamos. Há milhares de curas. A Sra. Georgina, esposa do Sr. César Pacheco, depois de louca e cega, ficou boa em dez dias; o Sr. Júlio César Gonçalves, morador à rua de Santana, n. 26, que tinha o corpo num só dartro, curou-se em dois meses com passes magnéticos; D. Jesuína de Andrade, viúva, quase tísica, em trinta dias salva, e outros muitos.

Que valor têm essas declarações? Os doentes enfileirados parece crerem e o Sr. Richard é a fé em pessoa. É quanto basta talvez.

No segundo pavimento, encontramos desenhos de homens ignorantes inspirados pelos grandes pintores. Rafael guia a mão de operários em movimentados quadros de batalhas, e outros pintores mortos, sob incógnito, fazem desenhos extraordinários por intermédio de maquinistas da Armada...

Essas coisas nos eram explicadas simplesmente, como se tratássemos de coisas naturais.

- Quando há sessão? - perguntou o nosso amigo.

- Hoje, às 7 horas. Podem ver, é a sessão de estudo.

Nós ainda olhamos fotografias de espíritos, o retrato de D. Romualdo, um sacerdote que de além-túmulo vem sempre visitar a Federação, e esperamos a sessão de estudo, atraídos, querendo ver, querendo ter a doce paz daqueles entes.

A sessão começou às 7½, na sala do 2.º andar, toda mobiliada de canela cirée com frisos de ouro. Nas cadeiras, cavalheiros de sobrecasaca, senhoras, demoiselles. Os bicos Auer acesos banhavam de luz clara toda a sala, e pelas janelas abertas ouviam-se na rua o estalar de chicotes e gritos de cocheiros.

Sem as visitas do irmão Samuel, ninguém diria uma sessão espírita. Depois de lida e aprovada a ata da sessão anterior, como na Câmara dos Deputados, Leopoldo Cirne, o presidente, que ao começo nos dissera um adeusinho, perfeitamente mundano, transfigura-se e a sua voz toma suavidades inéditas.

- Concentremo-nos, irmãos!

Imediatamente todos fechamos os olhos, como querendo concentrar o pensamento numa única idéia. As senhoras tapam o rosto com o leque e têm os olhos cerrados. De repente, como movida por todas aquelas vontades, a mão do psicógrafo cai, apanha o papel, o lápis, e escreve rapidamente linhas adelgadas. No silêncio ouve-se o lápis roçando o papel de leve; e é nesse silêncio que o lápis pára, o medium esfrega os olhos e começa a leitura da comunicação.

- "Paz! Irmãos. Deus seja convosco. As palavras do filósofo grego: conhece-te a ti mesmo...

É Samuel o espírito que fala, achando que para compreender a vida e o bem é necessário antes de tudo conhecermo-nos a nós mesmos. Leopoldo Cirne não se move.

Quando Samuel termina, ouve-se então a sua voz delicada, trêmula de humildade.

É ele quem faz o comentário.

- Meus irmãos, essas palavras que Sócrates mandou inserir no templo de Delfos...

E esse homem, que nós vemos tão correto e tão mundano, gostando de Eça de Queirós e lendo Verlaine, surge-nos o pastor, o rabi, o iniciador. O seu semblante espiritualiza-se em atitudes extáticas, a sua voz é a blandícia mesma que nos acaricia a alma pregando a bondade e a demolição das vaidades. As senhoras ouvem-no ansiosas; ao nosso lado dizem-no inspirado, atuado pelos espíritos. De tal forma é sutil o seu raciocínio, de tal forma desfaz velhas crenças no incensário de um Deus espiritual que, decerto, se o atuam espíritos, fala pela sua boca Ponce de Léon.

Ele cala, enxuga a face. Depois, no estudo do Evangelho, no trecho de Jesus com os escribas e fariseus sobre o alimento da alma, de novo a sua voz corre como um fio d'água entre sombras macias, sorvida por toda aquela gente atenta e sôfrega. Leopoldo Cirne acaba num sopro, tão baixo que mais parece uma vaga harmonia.

Em seguida fala o Sr. Richard, que condena alguns dos nossos males, entre os quais o patriotismo - porque não se pode amar uns mais do que outros, quando todos, são iguais perante Deus.

- Terminamos o nosso estudo. Não há mais quem queira falar?

Leopoldo Cirne ergueu a loira cabeça de Salvador, fixando os olhos na minha pobre pessoa. Era a atração do abismo, uma explicação indireta, feita como quem, muito cansado da travessia por mundos ignorados, viesse a conversar à beira da estrada com o viandante descrente.

"O Espiritismo, fez ele, ou revelação dos espíritos, sistematizada em doutrina por Allan Kardec, que recolheu os seus ensinos acerca do universo e da vida e das leis que os regem, e com os quais formou as obras ditas fundamentais O Livro dos Espíritos - O Livro dos médiuns - O Céu e o Inferno - A Gênese - O Evangelho segundo o Espiritismo, reúne o tríplice aspecto de ciência, filosofia e moral ou religião.

Como ciência de observação, estuda, não somente os fenômenos espíritas, desde os mais simples, como os ruídos e perturbações (casas mal-assombradas) e os efeitos físicos (deslocação de objetos sem contato) etc., até os mais transcendentes, como as materializações de espíritos (observações de Crookes, Aksakoff, Zoellner, Dr. Gibier etc.), como também todos os fenômenos da natureza, investigando a gênese de todos os seres, numa vasta síntese, e neles buscando a origem do princípio espiritual, dos estados mais rudimentares aos mais complexos pois que um germe, um esboço dessa natureza parece constituir a essência de toda forma. Em tais condições, relaciona-se com todos os ramos das ciências humanas: a física, a química, a biologia, a história natural etc., sem esquecer a própria astronomia, por isso que igualmente sonda o universo sideral, "as diversas moradas da casa do Pai" de que falou Jesus, e que são os mundos habitados, disseminados no infinito.

Ao lado de tais observações, procura fixar as leis do universo e da vida, das quais a da evolução é a chave, estando tudo submetido ao progresso, na ordem física, moral e intelectual.

Como filosofia, sobre esses dados da observação desdobra as mais lógicas induções, partindo do infinitamente pequeno e dos raciocínios mais elementares para o infinitamente grande e até às mais transcendentes conseqüências, isto é, até à demonstração da existência de Deus.

Sobre aquele princípio da evolução universal, prova com a pluralidade dos mundos a pluralidade das existências da alma, a imanência da lei eterna de justiça, em virtude da qual o espírito, depois de cada existência, colhe as lições da experiência (de resto, permanente na vida quotidiana) e sofre as conseqüências de seus atos bons ou maus, sendo assim feliz ou desgraçado, trazendo para a outra existência, em uma nova encarnação, as suas aquisições do passado, que se denunciam nas tendências e aptidões inatas, guardando assim latente a reminiscência substancial desse passado, com esquecimento apenas do circunstancial, isto é, dos fatos concretos e dos incidentes, além de tudo porque no cérebro atual só se acham gravadas as impressões dessa nova vida. Tudo o mais está guardado nas profundezas da subconsciência, podendo reaparecer nos estados de sonambulismo e, em geral, em todos os casos de desdobramento - experiência do magnetismo e de psicologia transcendental.

Assim prossegue, de vida em vida, a evolução insefinitae do espírito, sendo-lhe acessíveis todas as perfeições, que conquistará pelo próprio esforço.

Com a evolução dos indivíduos e, por conseguinte, das humanidades, coincide a evolução dos mundos fisicamente, devendo a nossa terra, como todas as do espaço, ao aperfeiçoamento já assinalado das épocas pré-históricas aos nossos dias acrescentar novos e constantes aperfeiçoamentos, em harmonia com essas maravilhosas leis da criação, que constituem o lado mais belo do estudo filosófico do Espiritismo.

Como moral ou religião e no sentido de favorecer a realização do seu ideal filosófico, o Espiritismo se propõe o restabelecimento do Evangelho de Jesus, que a igreja deturpou e fez cair no olvido.

O seu lema é: "Fora da caridade não há salvação..."

E por conseguinte tolerante e, fiel às máximas cristãs fundamentais: "Não faças aos outros o que não queres que te façam".

- "Ama o teu próximo como a ti mesmo", não hostiliza nenhuma crença, respeitando todas as convicções sinceras.

E, sob qualquer dos seus aspectos, partidário do livre exame, nada recomendando que seja aceito e admitido sem a sanção do raciocínio, porque sabe, com o Mestre Allan Kardec, que "a única fé inabalável é aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade".

O Espiritismo, em suma, sobre explicar todas as aparentes anomalias da vida, vem oferecer o conforto e a esperança aos que sofrem, aos que erram e se transviam no mal, cedendo às suas múltiplas ciladas; vem esclarecer acerca das suas responsabilidades, dando à vida um objetivo alto, nobre e digno, sobranceiro às torpes materialidades e às transitórias vicissitudes; aos que procuram lealmente a verdade proporciona um ideal que ultrapassa as mais exigentes aspirações da inteligência e da razão.

A todos oferece a calma interior, a paz, a resignação, a paciência e a fé inabalável no futuro. É, pois, o problema da regeneração e da felicidade humana que vem resolver.

Houve um longo silêncio. Um homem magro levanta-se e conta que veio da casa de um irmão agonizante. O irmão deseja uma oração e pede aos amigos não o deixem de ver.

- Concentremo-nos! - diz de novo a voz expirante do presidente.

As frontes curvam-se, o medium toma o lápis. É Samuel que volta.

- Paz! - diz ele - a vaidade é um monte que nos separa do bem.  Entretanto, irmãos...

Com a presença do espírito de Samuel, levantam-se todos e Richard faz a oração pelo irmão agonizante para que o guarde em bons céus.

Depois um arrastar de cadeiras, apertos de mão, riso, conversa. Está acabada a sessão. Leopoldo Cirne volta da sua transfiguração, recobrando a voz habitual e a cortesia de sempre.

Faço, receoso, um cumprimento aos seus dotes sagrados.

- Ah! - sim? faz ele, pasmado, como se nunca se tivesse ouvido.

Então peguei no chapéu sorrateiramente. Esse constante estado flutuante entre a realidade e o invisível, essas fugidas ao espaço para conversar com os espíritos, a caridade evangélica do homem à beira do real eram alucinantes. Desci as escadas devagar, aquelas escadas por onde subia sempre a romaria dos enfermos; na rua enxuguei a fronte, olhando o edifício, menos misterioso que qualquer clube político. E como passasse um bonde inteiramente vazio, refleti que esse bonde podia ser como o do marechal Quadros e voltei, a pé, devagar, para não dar encontrões nas pessoas que talvez comigo tivessem passado todo aquele dia do outro mundo.

 

OS EXPLORADORES

False Sphinx! False Sphinx! by reedy Styx
 Old Charon, learning on his oar
 Waits for my coin. Go thou before...

 

Ao chegar à praça Onze, tomamos por uma das ruas transversais, escura e lôbrega. Ventava.

- É aqui - murmurou cansado o nosso amigo, parando à porta de um sobrado de aparência duvidosa.

Havia oito dias já andávamos nós em peregrinação pelo baixo espiritismo. Ele, inteligente e esclarecido, dissera:

- Há pelo menos cem mil espíritas no Rio. É preciso, porém, não confundir o espiritismo verdadeiro com a exploração, com a falsidade, com a crendice ignorante. O espiritismo data de 1873 entre nós, da criação da Sociedade de Confúcio. Talvez de antes; data de umas curiosas sessões da casa do Dr. Melo Morais Pai, a bondade personificada, um homem que andava de calções e sapatos com fivelas de prata. Mas, desde esse tempo, a religião sofre da incompreensão de quase todos, substitui a feitiçaria e a magia.

Foi então que começamos ambos a percorrer os centros, os focos dessa tristeza.

O Rio está minado de casas espíritas, de pequenas salas misteriosas onde se exploram a morte e o desconhecido. Esta pacata cidade, que há 50 anos festejava apenas a corte celeste e tinha como supremo mistério a mandinga, o preto escravo, é hoje como Bizâncio, a cidade das cem religiões, lembra a Roma de Heliogábalo, onde todas as seitas e todas as crenças existiam. O espiritismo difundiu-se na populaça, enraizou-se, substituindo o bruxedo e a feitiçaria. Além dos raros grupos onde se procede com relativa honestidade, os desbriados e os velhacos são os seus agentes. Os médiuns exploram a credulidade, as sessões mascaram coisas torpes e de cada um desses viveiros de fetichismo a loucura brota e a histeria surge. Os ingênuos e os sinceros, que se julgam com qualidades de mediunidade, acabam presas de patifes com armazéns de cura para a exploração dos crédulos; e a velhacaria e a sem-vergonhice encobrem as chagas vivas com a capa santa do espiritualismo. Quando se começa a estudar esse mundo de desequilibrados, é como se vagarosamente se descesse um abismo torturante sem fundo.

A polícia sabe mais ou menos as casas dessa gente suspeita, mas não as observa, não as ataca, porque a maioria das autoridades têm medo e fé. Ainda há tempos, um delegado moço freqüentava a casa de um espírita da praia Formosa para se curar da sífilis. Se os delegados são assim apavorados do futuro, reduzindo a mentalidade à crença numa panacéia misteriosa, o pessoal subalterno delira.

- Veja você - disse-nos o amigo espírita -, toda a nossa religião resume-se nas palavras de Cristo à Samaritana: "Deus é espírito e em espírito quer ser adorado". Essa gente não compreende nada disso, maravilha-se apenas com a parte fenomenal, com a canalhice e a magia. É horrível. Os proprietários dos estabelecimentos de cura anímica a preço reduzido exploram; o povaréu vai todo, aliando as crendices do novo às bagagens antigas. São católicos ou perdidos a servirem-se dos espíritos como de um baralho de cartomante.

Com efeito, todas as casas em que entramos, estavam sempre cheias. Na maioria freqüentam-nas pessoas de baixa classe, mas se pudéssemos citar as senhoras, as damas do high-lífe que se arriscam até lá, a lista abrangeria talvez metade das criaturas radiosas que freqüentam as récitas do Lírico. Alguns desses lugares equívocos não são só engodos da credulidade, servem de máscaras a outras conveniências. A sessão fica na sala da frente, mas o resto da casa, com camas largas, é alugado por hora a alguns pares de irmãos. O médium, nesses momentos, deixa o estado sonambúlico para servir o freguês, e um centro espírita revestido de mistério, com o aparato das portas fechadas, dos passes e das velas acesas, transforma a crença, cuja oblata é a virtude máxima, numa nódoa de descaro sem nome.

Nós visitamos uns cinqüenta desses milhares de centros. A cidade está coalhada deles. Há em algumas ruas dois e três. Estivemos no Andaraí Grande, na rua Formosa, na estação do Rocha, na rua da Imperatriz, no morro do Pinto, na praia Formosa, no Engenho de Dentro, na rua Frei Caneca, na rua Francisco Eugênio, assistindo às sessões e ouvindo a vizinhança, que é sempre o termômetro da moralidade de qualquer casa.

Um pouco de ceticismo ou de simples crença basta para compreender a pulhice dessas pantomimas lúgubres.

Assim, há uma tropa de mulheres, a Galdina da rua da Alfândega, a negra Rosalina da rua da América, a Aquilina da rua do Cunha, a Amélia do Aragão, a Zizinha Viúva da rua Senhor de Matozinhos, a Augusta da rua Presidente Barroso, a Tomásia da rua Torres Homem, n.0 14, que estabelecem o comércio com consultas de 500 réis para cima e praticam coisas horrendas, abortos, violações a preço fixo e têm trabalhos em que são acompanhadas de secretárias; há espíritas ambulantes, como o negro Samuel, que já foi cozinheiro, mora na rua Senador Pompeu, n.0 157, e vai de casa em casa fazer passes; há mulatos pernósticos, o Zizinho da rua de S. Januário, o Claudino da rua de Santana, o Joãozinho da rua Sorocaba, com consultas noturnas; há portugueses como um tal Sr. Carneiro, da Praia Formosa, e o Simões, da rua Visconde de Itaúna, que exigem 20$000 por consulta e mandam os doentes comprar uma vela de cera e tomar um banho de cevada. Há de tudo, até sinetas, rapazes de passinho rebolado, que quando não prestam mais para o comércio público estabelecem-se nas ruas do meretrício com adivinhações espíritas!

E nesse complexo notam-se os centros familiares, uma porção de centros, alguns dos quais dão bailes mensais e, quando não são casas de fabricação de loucuras levando à histeria senhoras indefesas, servem para a mais desfaçada imoralidade e a mais ousada exploração.

No morro do Pinto a feitiçaria impera. Numa sala baixa, iluminada a querosene, assentam-se os fiéis, mulheres desgrenhadas, mulatinhas bamboleantes, negras de lenço na cabeça com o olhar alcoólico, homens de calças abombachadas, valentes com medo das almas do outro mundo, que ao sair dali ou ali mesmo não trepidariam em enfiar a faca nas entranhas do próximo. As luzes deixam sombras nos cantos sujos. No momento em que entramos, o médium, em chinelas, é presa de um tremor convulso. Diante do estrado, uma portuguesa, com o olhar de gazela assustada na face velutínea, espera. A pobre casou, o marido deu para beber e, desgraça da vida! bate-lhe de manhã, à noite, deixa-a derreada.

É a mãe dessa mulher que está dentro do médium.  Todos tremem, de olhos arregalados.

De repente, o médium estarrece e por trás dos seus dentes, ouve-se uma voz de palhaço:

- Como estás, minha filha, vais bem?

- A mãe! A mãe! - murmura a portuguesita infeliz, aterrada, em meio o palpitante silêncio.

- Que deve fazer sua filha? - pergunta o evocador.

- Ter confiança em Deus. Eu devia estar no inferno. A misordia perdoou a mãe dela. Toda a desgraça vem de um bruxedo que puseram na soleira da porta.

- Quem foi? - faz a portuguesa, numa voz de medo.

- Uma mulata escura que gosta do seu homem. Ele vai ficar bom. Dê-lhe o remédio que eu receitar e crave um punhal no travesseiro três noites a fio.

Um homem magro, parecido com o general Quintino, faz uns passes; o médium volta a si num sorriso imbecil.

- Está satisfeita? - pergunta o espertalhão dos passes.

- A mãe! a pobre da mãe tão boa! A portuguesa rebenta num choro convulso; uma negra epilética, velha, esquálida, começa a gritar numa crise tremenda, enquanto o homem magro brada:

- Está com o espírito mau! Está mesmo!

Essas cenas sinistras são compensadas por outras mais alegres. Num dos nossos bairros, o médium dá sessões de manhã, evoca os espíritos para saber qual é o bicho que ganha e, como é vidente, vê os espíritos com formas de animais.

- É o burro, é o burro! - grita em estado sonambúlico, e a rodinha toda joga no burro.

No Andaraí Grande o curandeiro é divertido e bailarino. Em vésperas de S. João dá um bródio de estalo com ceia copiosa e vinhaça de primeira. Este tem a especialidade das mulheres baratas. A rua de S. Jorge, a da Conceição, a do Senhor dos Passos, a do Visconde de Itaúna lá extravasam a alma sentimental das meretrizes, dos soldados e dos rufiões. O nosso homem cura tudo: dartros, feridas más, constipações, amores mal retribuídos, ódios. É fantástico! As mulheres têm-lhe uma fé doida. O espiritismo para elas é o milagre, a intervenção dos espíritos junto de um poder superior. Antes de ir à consulta, ajoelham no oratório e vão com todos os seus bentinhos, as figas de Guiné, o espanta mau-olhado das negras minas. Mas o cavalheiro do Andaraí é sagrado. Toda essa fé emana, dizem, de uma sua predição feliz. Uma mulher que voltava da Misericórdia recebeu por seu intermédio comunicação de que seria honesta; e três meses depois um homem sério levou-a. A suburra do Rio venera-o, freqüenta-lhe as festas e sustenta-o.

- São infames. O lema do espírita é: sem caridade não há salvação. Seja a caridade deles. Quando não são isso, fazem das sessões, como o Torterolli, sessões de orgia pública... Não posso mais!

Afinal, naquela noite tínhamos resolvido acabar a travessia pelos bas-fonds da crença, com a alma entristecida pela visão de salas idênticas, onde o espiritismo substituía a bisca, os espíritos servem de feiticeiros e dão remédios para pescar amantes; das salas que, como na rua de S. Diogo, mascaram as casas de quartos por hora. A casa da rua transversal à praça Onze seria a última a visitar.

- Entre - disse o meu amigo.

Enfiamos por um corredor escuro, subimos. No patamar um bico de gás silvava, batido pelo vento da rua.

- Papai, dois homens - bradou uma voz de criança.

Logo apareceu, em mangas de camisa, um mulato de bigodes compridos, que se desmanchou em riso e amabilidades para o meu companheiro.

- A que devo as honras? - disse sibilando os ss.

- As honras - como diz - deve-as ali ao irmão. É um simpático que quer crer e anda, na dúvida, à procura da verdade. Que diz você da verdade?

- Verdade? Ora esta! Verdade é o espírito!

- Bravo!

Fomos entrando para a sala de jantar, com móveis de vinhático e garrafas por todos os aparadores.

- Nem de prepósito - fez o cabra. - O médium está ali proseando com a gente.

O médium é um tipo de hébèté, de quase cretino. Lourinho, de um louro de estopa, com a face cor de oca e as gengivas sem dentes, é carteiro de 2.ª classe dos Correios. Tem a farda suja e a gravata de lado. Durante todo o tempo em que o mulato nos conta as suas curas, ele sopra monossílabos e remexe a cabeça, dolorosamente, como se lhe estivessem enterrando alfinetes na nuca.

Um mal-estar nos invade, como o anúncio de uma grande desgraça.

- Há tipos que usam ervas para fingir que é espírito - diz o curandeiro. - Eu não; cá comigo é a verdade.  Um desses oraras põe noz-vômica na água para os doentes lançarem e diz que é o espírito limpando lá dentro. Pecado! Apre! Eu agora tenho um doentinho. Veio-lhe uma febre de queimar. A mãe não tem quase dinheiro, mas não o gasta na farmácia. Eu o curo logo...

De repente parou. Pela escada subia um tropel, e uma mulher magra, lívida, aos soluços, entrou na sala.

- Então que há?

- O pequeno está mal, muito mal, revirando os olhos. Salve-mo! Salve-mo!

- É o tal que eu lhes dizia. Não se assuste, D. Aninha. Eu já lhe disse que o pequeno ficava bom; os espíritos querem. E para nós: venham ver.

Levou-nos ao terraço, ao fundo, mergulhou um litro vazio numa tina de água, encheu-o, colocou-o em cima da mesa.

- Durma, Zezé, durma!

E esfregou as mãos na cara do carteiro, subitamente em pranto. O homem revirava os olhos, sacudia a cabeça.

- É o espírito; veio, quer que seu filho fique bom...  E de repente o diabólico começou a estender as mãos do carteiro choroso ao gargalo do litro.

- Não está vendo o espírito entrar? Olhe... No litro cheio bolhas de oxigênio subiam vagarosamente e a pobre mulher, agarrando a mesa, com os olhos já enxutos, seguia ansiada o milagre que lhe ia salvar o filho.

De repente, porém, uma voz estalou embaixo, na ventania:

- Mamãe! Mamãe! Depressa! Joãozinho está morrendo, Joãozinho morre!

Essas palavras produziram um tal choque que nós saímos desvairados, de roldão, com o mulato e a mulher, sentindo um travor de morte nos lábios, angustiados, lembrando-nos dessa criança que a inconsciência deixara morrer. E na ventania cortada de chuva, entre as variadas recordações dessa vida de oito dias horrendos pelos antros escuros onde viceja o espiritismo falso, a visão dessa criança perseguia-nos cruciantemente, como o remorso de um grande e infinito mal.

 

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