AS RELIGIÕES DO RIO - QUINTA PARTE

 

A NOVA JERUSALÉM

A sede da Nova Jerusalém, anunciada pelo Apocalipse, fica na rua Maria José, n.0 10.  É uma casa de dois pavimentos, muito alta, pintada de vermelho-escuro, que assenta à beira da rua Colina como uma fortaleza.

De longe parece formidável aos reflexos do sol, que queima todas as vidraças, e reverbera nas escadas de pedra; de perto é solene. Abre-se um portão, sobe-se uma das escadas, abre-se outro portão, dá-se num pátio que termina para a frente em estreitas arcarias ogivais e perde-se ao fundo num jardim obumbroso. Desse pátio vê-se o declive das ruas que descem, e vagos trechos da cidade.

Antes de bater, olhamos ainda a casa alta. Detrás daqueles muros viceja a religião de Swedenborg, a nova igreja, a verdadeira compreensão da Bíblia; detrás daqueles muros, iluminados da luz da tarde, guarda-se a chave com que tudo se pode explicar neste mundo. "Eu sou o Deus - disse Jesus a Swedenborg -, o Senhor, o Criador e o Redentor, e te elegi para explicares aos homens o sentido interior e espiritual das Escrituras Santas. Ditar-te-ei o que escreveres!"

Subimos mais uma escada de pedra nua, no patamar da qual nos recebe o Sr. Frederico Braga. Esse cavalheiro amável é uma espécie de "diletante" dos cultos. Dizem que já foi até faquir, fazendo crescer bananeiras de um momento para outro. Neste momento, porém, limita-se a fazer-nos entrar para uma sala simples e, enquanto nós vagamente o interrogamos, passeia da porta para a janela.

- O pastor está aí - diz de repente. - Ninguém melhor do que ele pode informar.

O pastor é o Sr. Levindo Castro de la Fayette, que aparece logo. Homem de fisionomia inteligente, falando bem, com o ar de quem está sempre na peroração de um discurso interrompido por apartes, o pastor agrada. Há decerto nos seus gestos um pouco de morgue, o íntimo orgulho de ser profeta de uma religião de intelectuais, de espalhar pela terra a palavra do maior homem do mundo, que tudo descobrira na ciência terrestre e vira Deus na terra celeste.

O Sr. la Fayette consulta o óculo brilhante, fala da conquista da Nova Igreja através do mundo, fala torrencialmente. É a história do swedenborgismo desde a morte de grande visionário, desde a defesa de Tomás Wright e Roberto Hindmarsh, que demonstraram o perfeito estado mental do mestre, até à reunião dos adeptos de Swedenborg em Londres em 1788, donde começou a expansão do culto novo que agora aumenta diariamente na Áustria, na França, na Inglaterra, na Austrália, nos Estados Unidos, com igrejas novas e novos adeptos. Pode-se calcular em cento e vinte mil o número de crentes.

O Sr. Frederico Braga mostra-nos as revistas alemãs e inglesas, o New Church Messenger a New Church Review, onde vêm reproduzidas em fotogravura as fachadas dos novos templos através do mundo.

- A verdade caminha! - diz o pastor -, e leva-nos à sala onde se realizam as reuniões dos swedenborgeanos. É no 1.º pavimento, na frente, uma sala nua. Ao centro uma grande mesa, rodeada de cadeiras com uma cadeira mais alta para o pastor. Ao lado a biblioteca, onde se empilha a obra interminável de Swedenborg desde os Arcania Ca'lestia até o Tratado do Cavalo Branco do Apocalipse.

A Nova Jerusalém do Brasil data de 1898. Foi seu fundador o próprio Sr. de la Fayette, e isto devido a revelações que recebera em Paris alguns anos antes. É o caso que o pastor, nesse tempo simples professor de português num instituto parisiense, foi nomeado chanceler do consulado-geral do Brasil na França. Essa função fê-lo desejoso de conhecer a verdade espiritual, e, para que a verdade brilhasse, de la Fayette observou logo um rigoroso regime de temperança em todas as coisas... Swedenborg, cavaleiro da ordem eqüestre da Suécia, que de tudo escrevera e falara, só em 1745 teve a revelação de que estava talhado para explicar os símbolos da Bíblia. Mas Swedenborg comia muito. A primeira vez que os espíritos invisíveis lhe falaram foi durante um jantar. O filósofo engolia vorazmente no quarto reservado de um hotel, onde à vontade devorava e pensava, quando sentiu a vista se lhe empanar e répteis horríveis arrastarem-se pelo soalho. Os olhos pouco tempo depois recobraram a visão perfeita e Swedenborg viu, distintamente, no ângulo da sala, um homem com o seio em luz que lhe dizia, paternalmente:

- Não comas tanto, meu filho!

De la Fayette não precisou desse celeste conselho. Praticou-o antes da revelação; - e foi por isso que meses depois, começou, durante o sono, a receber ensinamentos do mundo espiritual a respeito da palavra de Deus. Desde esse tempo o Sr. Levindo foi guiado pelo céu, e chegou até à Biblioteca Nacional.

- Que livro hei de pedir? - interrogou aos seus botões o homem feliz.

- Pede Swedenborg! - bradaram os espíritos bons de dentro do Sr. Levindo.

O iluminado pediu os Arcania Caelestia, em latim, porque além de cinco línguas vivas, lê correntemente a língua em que Catulo escreveu tão belos versos e tão sugestivas patifarias. Leu os Arcania, foi à igreja da rua Thouin, conversou com Mme. Humann que o recebeu inefavelmente doce, e meses depois, era batizado na nova igreja.

Em agosto de 1893, o Sr. de la Fayette, que é mineiro, veio para o Rio, mas quando aqui chegou a revolta estalara, havia estado de sitio, e não teve remédio senão abalar para as montanhas do seu Estado. A cidade de Lamim, em Minas, foi onde primeiro se falou no Brasil da Nova Jerusalém.

De volta ao Rio, o pastor fez um adepto, o Sr. Carlos Frederico Braga, também mineiro. A adesão foi rápida. O Sr. Carlos concordou logo com o Sr. de la Fayette, como concordava naquele instante em que eu os ouvia. Daí por diante Levindo foi o texto do credo e Carlos Frederico o comentário entusiasmado. Esses dois homens atiraram-se pela cidade a explicar a Nova Jerusalém, a fazer compreender pelos homens inteligentes as sagradas interpretações do prolixo Swedenborg, escritas sob as vistas de Cristo Deus, que é só. Quatro anos depois reuniram na rua Minervina cinqüenta swedenborgianos, fundando duas sociedades: - a Associação de Propaganda da Nova Jerusalém, pela imprensa, conferência e leitura das obras do mestre, e uma sociedade de beneficência para auxiliar os irmãos brasileiros.

Um jornal, a Nova Jerusalém, foi logo publicado e existe há oito anos; o círculo da propaganda aumentou, amigos em viagem levaram a notícia ao Pará, ao Rio Grande do Sul, à Minas e,  afora esses adeptos, cerca de duzentos swedenborgianos reúnem-se aos domingos para ouvir de la Fayette narrar o símbolo de Adão, explicar o sentido único de cada palavra em todos os livros da Bíblia e louvar Swedenborg.

- Swedenborg! eu não preciso dizer-lhe quem foi esse extraordinário espírito que tudo descobriu da terra e do céu. Na sua época, chamou a atenção de grandes cérebros como Goethe, Kant, Wesley, de Wieland, Klopstock...

Nós batemos as pálpebras, gesto que Swedenborg considera sinal de entendimento e sabedoria. Goethe pusera o filósofo no Fausto com o pseudônimo de Pater Seraphicus, Kant falando dele recorda o cumprimento do seu cocheiro a Tycho Brahe: "o Sr. pode ser muito entendido nas coisas do céu, mas neste mundo não passa de um doido". Os outros não tinham sido mais amáveis.  Mas para que discutir?  O ministro da Nova Jerusalém continuava contando a atenção e curiosidade dos povos modernos pelo extraordinário profeta do Norte. Depois parou.

- O que é, em síntese, a Nova Jerusalém? - perguntei.

Swedenborg, ao morrer em casa de um barbeiro, achava desnecessário receber os sacramentos por ser de há muito cidadão do outro mundo. A respeito dessa região o cidadão escreveu enormes volumes ex auditis et visis, isto é, sobre o que vira e ouvira.

Os Arcania, o tratado do Céu e do inferno, o tratado das Representações e Correspondências, a Sabedoria Angélica sobre o divino Amor e a divina Sabedoria, a Doutrina Novae Hierrosalymae, as terras do nosso mundo solar e no céu astral, até o Amor Conjugal, com umas máximas arriscadas sobre o amor escortatório, explicaram bem as suas extraordinárias viagens.

Swedenborg esteve no inferno e conversou com tanta gente que Mater para simplificar fez uma lista cronológica desde os deuses gregos até os contemporâneos; teve relações íntimas com os espíritos de Júpiter, de Mercúrio, de Marte e até da Lua, apesar de não simpatizar muito com esses que eram pequenos e faziam barulho. Não foi só. O extraordinário homem viu o paraíso, ouviu os anjos, esteve com Deus em pessoa. Era natural que compreendesse o sentido das correspondências entre os espíritos dos planetas e o máximo homem, que revelasse ao mundo o sentido íntimo espiritual ou celeste das revelações que até então ficara ignorado.

"A doutrina da Igreja atual é viciosa, deve desaparecer" e Swedenborg, com os olhos espirituais abertos, não inovou, elucidou os textos sagrados.

A nova igreja tem um catecismo que explica e resume a Nova Jerusalém e a sua doutrina celeste. Assim o homem foi criado por Deus para amar a Deus e fazer o bem ao próximo. Quem faz mal, vai para o inferno, quem faz bem, vive com luxo e conforto no reino do céu que, segundo Swedenborg, tem edifícios magníficos, parques encantadores e vestidos bonitos. O homem aprende a fazer o bem nos dez mandamentos. É simples e fácil.

O Senhor, deve o homem julgá-lo o único Deus, em que está encarnada a Santíssima Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A trindade perfaz numa só pessoa a alma, o corpo e o ato da obra. Na Trindade Divina, o Pai é a alma, o Filho o corpo, o Espírito Santo a operação condensados numa só pessoa: - Jesus. É esta a divergência capital do Catolicismo. A Nova Jerusalém é o cristianismo primitivo. Os seus membros não têm ambições e ajudam-se uns aos outros, praticando a caridade, o único amor capaz de nos desprender de nós mesmos para nos aproximar de Deus. A regeneração vem da oração. O homem ora só a Jesus, porque o mais é idolatria. Todas as ciências e religiões nada são sem o conhecimento de Deus. Possuidores desse conhecimento, os swedenborgeanos têm a chave da interpretação exata de tudo e explicam com harmonia espiritual todas as ciências e todas as religiões.

- Não se podia voltar ao Cristianismo, ao tempo em que começou a ser falsificado - diz-nos o Sr. de la Fayette. - Seria desconhecer as leis da ordem divina, que teria desse modo perdido quinze séculos, quando esse período serviu para a execução das suas obras sempre misericordiosas. O Senhor anunciou que, na consumação dos séculos, isto é, no fim da igreja atual, viria, "nas nuvens do céu, com poder e glória" fundar outra igreja que não terá fim. Esta igreja é a Nova Jerusalém, que o Senhor instaurou, retirando o véu que ocultava o Verbo...

Escurecia. As trevas entravam pela sala onde o Verbo é revelado. Em derredor, quanto abrangia o olhar, via-se a cidade reclinada por vales e montes, preguiçosamente. No céu puríssimo as estrelas palpitavam devagar; pela terra estrelavam os combustores um infinito recamo de luzes.

- Vou aos Estados Unidos - disse o ministro - comprar livros, editar obras minhas para franquear a biblioteca ao povo. A regeneração far-se-á!

E nós descemos o monte, onde, naquela casa de pedra, duzentos homens, compenetrados do secreto sentido das correspondências, louvam todos os domingos Swedenborg que gozou o Céu, e Jesus que é a caridade e o supremo Amor.

 

O CULTO DO MAR

O Culto do Mar é praticado pelos pescadores das nossas praias. É um culto variado, cosmólatra e fantasista, cm que entram a lua e alguns elementos divinizados.

- Não conhece os nossos pescadores? Gente tranqüila. Raramente se agridem e sempre por questão de pesca.

Os pescadores formam um corpo distinto, diverso dos catraeiros, dos marítimos, dessa população ambígua e viciada que anda no cais à beira das ondas perturbadoras. Não há canto da nossa baia que não tenha uma colônia de pescadores. Vivem todos muito calmos, sem saber do resto do mundo. Enfim, uma classe à parte, com festas próprias, que não se afasta do oceano e é unida pelo culto do mar. Os pescadores são os últimos idólatras das vagas. Conversar com eles é ter impressões absolutamente inéditas de moral, de filosofia e de religião.

- Mas essas colônias são brasileiras? - indaguei do meu informante.

- Não. Há colônias só de portugueses, como a de Santa Luzia e de Santo Cristo, de portugueses e brasileiros, como em Sepetiba, de italianos apenas, de brasileiros só. Uma série de núcleos ligados pela crença. São outros homens. Nascem de mães pescadoras, partejadas quase sempre por curiosas, vivem nas praias, nunca as abandonam. Aos quatro anos nadam, aos dez remam e acompanham os parentes às pescarias, e assim passam a existência, familiarizados apenas com as redes, os apetrechos de pesca e o calão, o pitoresco calão marítimo.

O oceano imprime-lhe um cunho especial, são propriedades do mar. Nunca reparaste nos pescadores? Têm os pés diferentes de todos, uns pés contráteis que se crispam nas pranchas como os dos macacos; andam a bambolear, balouçando como um barco, e a sua pele lustrosa tem o macio grosso dos veludos. A alma dessa gente conserva-se ondeante, maravilhosa e simples.

- Mas os pescadores são cristãos?

- Está claro. Mas cristãos puros é difícil encontrar hoje afora os evangelistas e os sírios.

- Lembro-me da festa de Nossa Senhora, na Lapa.

- É outra coisa.

- Vi em Santa Luzia a devoção de São Pedro.

- Era promessa de um rapaz que, por falta de meios não a continua. Deixemos N. Senhora e São Pedro. Falo de um culto que emana no intimo respeito das ondas. Todos os pesca-dores das praias e das ilhas próximas festejam, sacrificam ao mar e têm um objeto especial de devoção. Não há nenhum que não tema a Mãe-d'Água, a Sereia, os Tritões e não respeite a Lua. Conheço três manifestações desse culto. A Mãe-d'Água entre os pescadores de Santo Cristo e de Santa Luzia, a da Lua, e do Mar e a do Arco-Íris.

- O Arco-Íris?

- Em Sepetiba. É dos mais completos e dos mais belos, tendo como sacerdote uma mulher.

O Arco-Íris, a adoração de um deus que se curva nas nuvens policromo e vago, que ergue das ondas um facho de luzes brandas e desaparece, o terror daquilo que se desfaz, sem que se saiba como! Era uma fantasia! Mas os cosmólatras inventam tanta coisa para perfumar a sua ignorância, que bem podia ser.

- Não há dúvidas - disse o meu amigo. - O arco-íris, é uma antiqüíssima divindade, um anúncio dos céus. Lembra-te disso e acompanha-me.

Acompanhei-o, durante um inverno, muito úmido e muito estrelado. Os pescadores têm um temor incalculável da polícia. Desde que um curioso aparece, guardam segredo das suas crenças e negam toda e qualquer co-participação em religião que não seja a católica. Como são primitivos e rudimentares, porém, a bondade que têm é fundamental, transforma-os e não há nenhum que não acabe confiante e falador, exagerando para espantar os mistérios cosmológicos. Esses mistérios são de uma beleza delicada e antiga, de uma beleza de rapsodos que relembra as fantasias escandinavas e helenas, um montão de lendas e de ritos enervantes. Há nas práticas e nas idéias trechos de Hesíodo, de Cristo e dos pretos-minas e a gente afunda-se, quando os quer guardar, num banho de cristal batido pelo sol.

Quase sempre os diretores das festas, os sacerdotes não são pescadores. Em Santo Cristo é o padeiro Carvalho, homem de posses - diz o meu amigo.   Os sacrifícios são feitos geralmente à noite.

Vamos os dois interrogar os pescadores. Essa gente teme a Mãe-d'Água, tendo a longínqua recordação de que ela aparece vestida de branco seguida de homens barbados de verde. A aparição feminina grita de repente, apaga as luzes na barca, faz as cerrações, afasta os peixes, e às vezes canta.

- Como a Darclée?

- Como as sereias meu caro. Os pescadores têm que cair no fundo da barca tapando os ouvidos. Ulisses amarrava-se...

Para aplacar a deusa do mar, ser impalpável e lindo, os pescadores fazem o sacrifício de um carneiro. Matam o bicho à beira do oceano; o sangue cai numa cova aberta na areia. Depois partem canoas levando pedaços do animal com presentes que deixam cair no fundo da baía com uma oração votiva.

Um rapazola, lindo como o Apolo do Belveder, responde às nossas perguntas:

- Eu fui batizado, patrão.

- Mas sabe a história da Mãe-d'Água?

- Sei, sim. Aqui, para Mãe-d'Água ser boa fazem-se despachos. Na ilha do Governador compram tudo do mais fino, põem a mesa à beira da praia, com talheres de prata, copos bonitos, a toalha alva e galinhas sem cabeça, para a santa comer.

- Que diferença há entre Nossa Senhora e a Mãe-d'Água? - indago interessado.

- Nossa Senhora está no céu. Mãe-d'Água é diferente; é a devoção, é como um santo do Mar... E sopra-me na cara uma baforada de fumo mau.

O meu amigo, cheio de literatura, declama logo:

- Não compreendes! A água é em toda a parte uma religião. O Nilo foi feito das lágrimas de Isis, o Ganges é o fator da crença da imortalidade, os gregos povoaram o mar de habitantes sagrados.

Lembra-te dos arías ao descer do planalto: - "ó mar, grande laboratório!..." Laboratório da vida da crença.

E leva-me a uma outra praia, a compreender como tudo depende do mar e da lua. Ele conhecia um velho pescador, José Belchior. O velho recebe-o com intimidade e conta-me o que pensa deste mundo. É curiosíssimo.

Para José o mar representa o homem, o princípio ativo. Por isso o mar é superior em tudo à terra, que como a mulher só serve para o descanso. O oceano circunda a terra num longo abraço. O mar só sofre uma influência, a da lua, que mostra a sua face de trinta em trinta dias e o faz inquieto e a arfar. Nela mora Nossa Senhora com o seu filho Jesus, e esse doce alampadário de ouro desencadeia os ventos, faz as tempestades, esconde os peixes, baixa as marés e guia as naves. Se Nossa Senhora quisesse, parava a lua quando ela vem cheia, e tudo seria então magnífico. Como as coisas não são assim, fazem-se promessas, pede-se aos santos para interceder e, nas noites de luar, fazem uma passeata em embarcações com velas de cera acesas na mão e rezando baixinho.

Todas essas pequenas modalidades reúnem-se em Sepetiba no culto geral do Arco-Íris. Há festas de três em três meses, despachos simples e uma grande solenidade, que já foi feita a 2 de fevereiro e atualmente se realiza em junho, no dia de S. Pedro.

Estive lá nesse dia. A sacerdotisa é uma portuguesa reforçada, que se chama Maria Matos da Silva. Só são permitidos na festa pescadores, e os pescadores vão de toda a parte ao culto singular. A casa de Maria da Silva fica mesmo no ponto dos bondes, e nos dias de festa está toda adornada de folhagens e galhardetes. Todos, lavados e de roupas claras, a dona da devoção manda buscar os negros feiticeiros para preparar os ebós e fazer a matança dos animais.

Ela própria deita as cartas para saber quem deve ir levar os sacrifícios e os desejos sutis do Arco-íris.

No interior da casa, onde ardem velas, é proibida a entrada com exceção das que tomam parte nos sacrifícios. Em frente os pescadores bebem, cantam e dançam o cateretê. Se por acaso no céu se curvam as cores do espectro, prosternam-se todos radiosos clamando pelo milagre. O milagre porém, como todo o milagre, é raro.

Maria da Silva tem sempre a seu lado o coronel Rodrigues, velho guarda nacional, que com os pés metidos em grossos tamancos, sentencia máximas morais para a assembléia. Os pescadores que apanham na rede um boto, levam-no à mulher do culto para preparo do azeite das festas sagradas.

Vou pela praia, alanhada por um vento álgido. No céu aparecem nuvens, na areia descansam três barcas enfeitadas. Um rapazola guarda-as. E ele quem nos dá informações a respeito da gente que dança. Reina entre estas criaturas uma perfeita amoralidade. Como não há barulhos graves, não se vai à polícia. Conselhos dão os velhos. A mulher serve para procriar, obedece cegamente ao homem, cose, trabalha, é inferior. O macho domina. O respeito aos anciãos existe, porque estes sabem das manhas dos peixes, anunciam as tempestades, ensinam. Quanto ao amor, deve ser muito diverso do nosso...

- E as festas, quem as faz?

- Para as festas concorrem todos.

Das três barcas que eu via, a primeira era para o Arco-íris, a segunda para a Mãe-d'Água e a terceira acompanharia as duas formando a trilogia, duas na frente e uma atrás.

O meu amigo, lembrando mitologias diversas, quis saber a razão desse triângulo. O rapaz respondeu apenas:

- É costume.

É costume também pagar em todas as religiões. Tanto os feiticeiros como os condutores das barcas recebem dinheiro. Os remadores pertencentes ao Arco-Íris têm seis mil réis, os da Mãe-d'Água três e os acompanhadores nove. À noite, já no céu negro o crescente lunar, depois dos búzios e dos baralhos terem indicado os dias em que não se poderá pescar, começa o sacrifício.

Forçado a ficar de longe, embrulhado num paletó em que tiritava, vi sair da casa da Maria uma teoria de camisolas brancas com as lanternas de azeite de boto na mão, acompanhando dois homens, um vestido de seda, outro de cetim.

O primeiro era o voga da canoa do Arco-íris, o segundo ia dirigir a da Mãe-d'Água. As canoas foram arrastadas para o mar. Na do Arco-Íris iam os mais finos presentes com os despachos, na da Mãe-d'Água objetos caros e femininos. Quando as canoas partiram em direção ao Norte, levando aqueles estranhos remadores vestidos de morim branco, os que ficaram na praia levantaram os braços, e a Maria da Silva, na turba, sorria como quem se desobriga de uma promessa sagrada.

- E ao voltarem, que há? - indaguei ao rapaz.

- Voltam de costas, de frente para o mar, entram assim em casa; os remadores, menos os do Arco-íris, batem com a cabeça no chão, e a festa continua.

- Mas que é o Arco-íris, afinal?

- O Arco-íris indica se a gente está bem com Deus. É um aviso, o sinal da união, o único meio por que o mar se deixa ver... e a crença.

Olhei mais o oceano soluçante sob o vento álgido.

As barcas todas acesas de luzes frouxas perdiam-se na fosforência lunar; os remadores cantavam, e eu ouvia como a copla de uma barcarola nostálgica. Em frente da casa de Maria, o cateretê delirava e sombras de adolescentes desciam a praia ágeis e finas.

A Maria, sentada, sorrindo, era indecifrável.

E para que decifrá-la? O seu culto era o culto de todas as épocas e de todos os homens. O mar continua a ser o grande mistério. Para os espíritos simples que temem o diabo e guardam na alma crenças acumuladas, só a Lua com a imagem de Nossa Senhora pode explicar a angústia do mar e só as sete cores do arco do céu podem simbolizar o vago mistério da união do oceano e do homem.

 

ANTERIOR O AUTOR PRÓXIMO