AS RELIGIÕES DO RIO - QUARTA PARTE

 

OS SATANISTAS

- Satanás! Satanás!

- Che vuoi?

- Não o sabes tu? Quero o amor, a riqueza, a ciência, o poder.

- Como as crianças, as bruxas e os doidos - sem fazer nada para os conquistar.

O filosófico Tinhoso tem nesta grande cidade um ululante punhado de sacerdotes, e, como sempre que o seu nome aparece, arrasta consigo o galope da luxúria, a ânsia da volúpia e do crime, eu, que já o vira Exu, pavor dos negros feiticeiros, fui encontrá-lo poluindo os retábulos com o seu deboche, enquanto a teoria báquica dos depravados e das demoníacas estorcia-se no paroxismo da orgia...  Satanás é como a flecha de Zenon, parece que partiu, mas está parado - e firme nos corações.   Surgem os cultos, desaparecem as crenças, esmaga-se a sua recordação, mas, impalpável, o Espírito do Mal espalha pelo mundo a mordacidade de seu riso cínico e ressurge quando menos se espera no infinito poder da tentação.

Conheci alguns dos satanistas atuais na casa de Saião, o exótico herbanário da rua Larga de São Joaquim, o tal que tem à porta as armas da República. Saião é um doente. Atordoa-o a loucura sensual. Faceirando entre os molhos de ervas, cuja  propriedade quase sempre desconhece, o ambíguo homem discorre, com gestos megalômanos, das mortes e das curas que tem feito, dos seus amores e do assédio das mulheres em torno da sua graça. A conversa de Saião é um coleio de lesmas com urtigas. Quando fala cuspinhando, os olhitos atacados de satiríasis, tem a gente vontade de espancá-lo. A casa de Saião é, porém, um centro de observação. Lá vão ter as cartomantes, os magos, os negros dos ebôs, as mulheres que partejam, todas as gamas do crime religioso, do sacerdócio lúgubre.

Como, uma certa vez, uma negra estivesse a contar-me as propriedades misteriosas da cabeça do pavão, eu recordei que o pavão no Curdistão é venerado, é o pássaro maravilhoso, cuja cauda em leque reproduz o esquema secreto do deus único dos iniciados pagãos.

- O senhor conhece a magia? - fez a meu lado um homem esquálido, com as abas da sobrecasaca a adejar.

Imediatamente Saião apresentou-nos.

- O Dr. Justino de Moura.

O homem abancou, olhando com desprezo para o erbanário, limpou a testa inundada de suor e murmurou liricamente.

- Oh! a Ásia! a Ásia...

Eu não conhecia a magia, a não ser algumas formas de satanismo. O Dr. Justino puxou mais o seu banco e conversamos. Dias depois estava relacionado com quatro ou cinco frustes, mais ou menos instruídos, que confessavam com descaro vícios horrendos. Justino, o mais esquisito e o mais sincero, guarda avaramente o dinheiro para comprar carneiros e chupar-lhes o sangue; outro rapaz magríssimo, que foi empregado dos Correios, satisfaz apetites mais inconfessáveis ainda, quase sempre cheirando a álcool; um outro moreno, de grandes bigodes, é uma figura das praças, que se pode encontrar às horas mortas... Se de Satanás eles falavam muito, quando lhes pedia para assistir à missa-negra, os homens tomavam atitudes de romance e exigiam o pacto e a cumplicidade.

A religião do Diabo sempre existiu entre nós, mais ou menos. Nas crônicas documentativas dos satanistas atuais encontrei de envoutement e de malefícios, anteriores aos feitiços dos negros e a Pedro I. A Europa do século XVII praticava a missa-negra e a missa-branca. É natural que algum feiticeiro fugido plantasse aqui a semente da adoração do mal. Os documentos - documentos esparsos sem concatenação que o Dr. Justino me mostrava de vez em quando - contam as evocações do Papa Aviano em 1745. Os avianistas deviam ser nesse tempo apenas clientes, como é hoje a maioria dos freqüentadores dos espíritas, dos magos e das cartomantes. No século passado o número dos fanáticos cresceu, o avianismo transformou-se, adaptando correntes estrangeiras. A princípio surgiram os paladistas, os luciferistas que admiravam Lúcifer, igual de Adonai, inicial do Bem e deus da Luz.

Esses faziam uma franco-maçonaria, com um culto particular, que explicava a vida de Jesus dolorosamente. Guardam ainda os satanistas contemporâneos alguns nomes da confraria que insultava a Virgem com palavras estercorárias: - Eduardo de Campos, Hamilcar Figueiredo, Téopompo de Sonsa, Teixeira Werneck e outros, usando pseudônimos e compondo um rosário de nomes com significações ocultistas e simbólicas. Os paladistas não morreram de todo, antes se transfusaram em formas poéticas. No Paraná, onde há um movimento ocultista acentuado - como há todas as formas da crença, sendo o povo de poetas impressionáveis -, existem atualmente escritores luciferistas que estão dans le train dos processos da crença na Europa. A franco-maçonaria, morto o seu antigo chefe, um padre italiano Vitório Sengambo, fugido da Itália por crimes contra a moral, desapareceu. No Brasil não andam assim os apóstatas e, apesar do desejo de fortuna e de satisfações mundanas, é difícil se encontrar um caso de apostasia no clero brasileiro. Os luciferistas ficaram apenas curiosos relacionados com o supremo diretório de Charleston, donde partirá o novo domínio do mundo e a sua descristialição.

Os satanistas ao contrário imperam, sendo como são mais modestos.

Sabem que Satã é o proscrito, o infame, o mal, o conspurcador, fazem apenas o catolicismo inverso, e são supersticiosos, depravados mentais, ou ignorantes apavorados das forças ocultas. O número de crentes convictos é curto; o número de crentes inconscientes é infinito.

Seria curioso, neste acordar do espiritualismo em que os filósofos materialistas são abandonados pelos místicos, ver como vive Satã, como goza saúde o Tentador.

Nunca esse espírito interessante deixou de ser adorado. No início dos séculos, na idade-média, nos tempos modernos contemporaneamente, os cultos e os incultos veneram-no como a encarnação dos deuses pagãos, como o poder contrário à cata de almas, como o Renegado. As almas das mulheres tremem ao ouvir-lhe o nome, as criações literárias fazem-no de idéias frias e brilhantes como floretes de aço, no tempo do roman

tismo o Sr. Diabo foi saliente. Hoje Satanás dirige as literaturas perversas, as pornografias, as filosofias avariadas, os misticismos perigosos, assusta a Igreja Católica, e cada homem, cada mulher, por momentos ao menos, tem o desejo de o chamar para ter amor, riqueza, ciência e poder. Bem dizem os padres: Satanás é o Tentador; bem o pintou Tintoreto na Tentação, bonito e loiro como um anjo...

A nossa terra sofre cruelmente da crendice dos negros, agarra-se aos feiticeiros e faz a prosperidade das seitas desde que estabeleçam o milagre. Satanás faz milagres a troco de almas. Quem entre nós ainda não teve a esperança ingênua de falar ao Diabo, à meia-noite, mesmo acreditando em Deus e crendo na trapaça de Fausto? Quantos, por conselhos de magos falsos, em noites de trovoada, não se agitaram em lugares desertos à espera de ver surgir o Grande Rebelde? Há no ambiente uma predisposição para o satanismo, e como, segundo o Apocalipse, é talvez neste século que Satanás vai aparecer, o número dos satanistas autênticos, conhecedores da Cabala, dos fios imantados, prostituidores da missa, aumentou. Há hoje para mais de cinqüenta.

Quarta-leira santa encontrei o Dr. Justino no Saião. O pobre estava mais pálido, mais magro e mais sujo, levando sempre o lenço à boca, como se sentisse gosto de sangue.

Continua nas suas cenas de vampirismo? - sussurrei eu. Nos olhos do Dr. Justino uma luz de ódio brilhou.

- Infelizmente o senhor não sabe o que diz! Deu dois passos agitados, voltou-se, repetiu: infelizmente não sabe o que diz! O vampirismo! alguém sabe o que isto é? Não se faça de cético. Enquanto ri, a morte o envolve. Agora mesmo está sentado num molho de solanéas.

Eu o deixara dizer, subitamente penalizado. Nunca o vira tão nervoso e com um cheiro tão pronunciado de álcool.

- Não ria muito. O vampirismo como a sua filosofia cooperam para a vitória definitiva de Satanás... Conhece o Diabo?

A pergunta feita num restaurant bem iluminado seria engraçada. Naquele ambiente de herbanário, e na noite em que Jesus sofria, fez-me mal.

- Não. Também como o conhecer, sem o pacto?

- O pacto é conhecimento de causa.

Passeou febrilmente, olhando-me como a relutar com um desejo sinistro. Por fim agarrou-me o pulso.

- E se lhe mostrasse o Diabo, guardaria segredo?

- Guardaria! - murmurei.

- Então venha.

E bruscamente saímos para o luar fantástico da rua. Esta cena abriu-me de repente um mundo de horrores. O Dr. Justino, médico instruído, era simplesmente um louco. No bonde, aconchegando-se a mim, a estranha criatura disse o que estivera a fazer antes do nosso encontro. Fora beber o seu sanguezinho, ao escurecer, num açougue conhecido. Como todos os degenerados, abundou nos detalhes. Mandava sempre o carneiro antes; depois, quando as estrelas luziam, entrava no pátio, fazia uma incisão no pescoço do bicho e chupava, sorvia gulosamente todo o sangue, olhando os olhos vítreos do animal agonizante.

Não teria eu lido nunca o livro sobre o vampirismo, a possessão dos corpos? Pois o vampirismo era uma conseqüência fatal dessa legião de antigos deuses pagãos, os sátiros e os faunos, que Satanás atirava ao mundo com a forma de súcubos e incubos. O Dr. Justino era perseguido pelos incubos, não podia resistir, entregava-se...

Já não tinha espinha, já não podia respirar, já não podia mais e sentia-se varado pelos símbolos fecundos dos incubos como as feiticeiras em êxtase, nos grandes dias de sabbat.

Sacudi a cabeça como quem faz um supremo esforço para não soçobrar também.

O cidadão com quem falava era um doido atacado do solitário vício astral! Ele, entretanto, febril, continuava a descrever o poder de Satã sobre os cadáveres, a legião que acompanhou o Supremo e o inebriamento sabático.

- Mas, doutor, compreendamos. O sabbat em plena cidade? As feiticeiras de Shakespeare no Engenho Novo?

- Satã continua cultuado, por mais que o mundo se transforme. O sabbat já se fez até nos telhados. Os gatos e os morcegos, animais de Satã, vivem entre as telhas.

Lembrei-me de um caso de loucura, um estudante que recebia o diabo pelos telhados, e morrera furioso. Não me pareceu de todo falso. O sabbat, porém, o sabbat clássico, a festa horrenda da noite, o delírio nos bosques em que as árvores parecem demônios, a ronda detestável das mulheres nuas, subindo aos montes, descendo as montanhas, a fúria necrófila que desenterrava cadáveres e bebia álcool com sangue extinguiu-se. A antiga orgia, a comunicação imunda com o Diabo não passa de contos de demonógrafos, de fantasias de curiosos. Satã vive hoje em casa como qualquer burguês. Esse cavalheiro poderoso, o Tinhoso, não vai mais para trás das ermidas oficiar, as fúrias desnudas não espremem mais o suco da vida, rolando nas pedras, sob a ventania do cio. Todo o mal que a Deus fazem é em casa, nos deboches e na prostituição da missa.

E que vida a deles! Agora que o bonde passava pelo canal do Mangue e a lua batia na coma das palmeiras, o pobre homem, tremendo, contava-me as suas noites de agonia. Sim, o Dr. Justino temia os lêmures e as larvas, dormia com uma navalha debaixo do travesseiro, a navalha do Cambucá, um assassino que morrera de um tiro. As larvas são fragmentos de idéias, embriões de cóleras e ódios, restos de raivas danadas que sobem do sangue dos criminosos e do sangue regular das esposas e virgens aos astros para envolver as criaturas, são os desesperos que se transformam em touros e elefantes, são os animais da luxúria. E esses animais esmagavam-no, preparando-o para o grande escândalo dos incubos.

- Mas certamente, fiz para acalmá-lo, Satã, desde que se faz com o inferno um pacto e uma aliança com a morte, dá o supremo poder de magia, o quebranto, a bruxaria, o malefício, o envolver das vontades...

Ele sorriu tristemente, tiritando de febre.

- A magia está muito decaída, eivada de costumes africanos e misturadas de pagés. Conhece o malefício do ódio, a boneca de cera virgem? Esmagava-se a cera, modelava-se um boneco parecido com o odiado, com um dente, unhas e cabelos seus. Depois vestiam-lhe as roupas da pessoa e no batismo dava-se-lhe o seu próprio nome. Por sobre a boneca o mago estendia uma corda com um nó, símbolo da sua resolução e exclamava: - Arator, Lepidator, Tentador, Soniator, Ductor, Comestos, Devorator, Seductor, companheiros da destruição e do ódio, semeadores da discórdia que agitam livremente os maléficos, peço-vos e conjuro-vos que admitais e consagreis esta imagem...

- E a cera morna...

- Animado do seu ódio, o mago dominava as partículas fluídicas do odiado, e praguejando acabava atirando a boneca ao fogo, depois de trespassá-la com uma faca. Nessa ocasião o odiado morria.

- E o choque de volta?

- Quando o enfeitiçado percebia, em lugar de consentir nas perturbações profundas do seu ser, aproveitava os fluídos contra o assassino e havia conflagração.

O mágico, porém, podia envenenar o dente da pessoa, distender-se no éter e ir tocá-la.

Havia ainda o envoutement retangular...

Hoje, os feiticeiros são negros, os fluídos de uma raça inferior destinados a um domínio rápido. Os malefícios satânicos estão inundados de azeite-de-dendê e de ervas de caboclos.

Então, encostado a mim, com mau hábito, enquanto o bonde corria, o Dr. Justino deu-me várias receitas. Como se estuda nesse receituário macabro o temor de várias raças, desde os ciganos boêmios até os brancos assustadiços! O sangue é o seu grande fator: cada feitiço é um misto de imundície e de infâmia. Para possuir, para amar, para vencer, os satanistas usam, além das receitas da clavícula, de morcegos, porcos-da-índia, pós, ervas, sangue mensal das mulheres, ratos brancos, produto de espasmos, camundongos, rabos de gatos, moedas de ouro, fluidos, carnes, bolos de farinha com óleos, e para abrir uma chaga empregam, por exemplo, o ácido sulfúrico...

- Com o poder do Horrendo, fez subitamente o médico numa nova crise, é lá possível temer esse idiota que morreu na cruz? Sabe que os talmudistas negam a ressurreição?

Levantou-se titubeante, saltamos. O bonde desapareceu. Embaixo, no leito do caminho de ferro, os rails de aço branquejavam, e, no ar, morcegos faziam curvas sinistras. O Dr. Justino ardia em febre. De repente ergueu os pulsos.

- Impostor! Torpe! Salafrário! - ganiu aos céus estrelados.

- Onde vamos?

- À missa-negra...

- Onde?

- Ali.

- Estendeu a mão, veio-lhe um vômito, emborcou no meu braço que o amparava, golfando num estertor pedaços de sangue coagulado.

Ao longe ouviu-se o silvo da locomotiva.

Então, como possuído do Diabo nos braços eu bati à porta dos satanistas, ouvindo a sua desgraçada vida e a dor infindável da morte.

 

A MISSA-NEGRA

Atravessamos uma aléia de sapucaias. O terreno enlameado pegava na sola dos sapatos. Justino ia à frente, com um preto que assobiava, dois cães sujos e magros. Por entre os canteiros incultos crescia a erva daninha, e os troncos das árvores, molhados de luar, pareciam curvar-se.

- Entramos no inferno?

- Vamos ao sabbat moderno.

Tínhamos chegado ao velho prédio, que emergia da sombra. O negro empurrou a porta e todos três, misteriosamente, penetramos numa saleta quase escura, onde não havia ninguém. Justino lavou as mãos, respirou forte e, abrindo uma outra porta, sussurrou:

- Entre.

Dei numa vasta sala cheia de gente. Candeeiros de querosene com refletores de folha pregados às paredes pareciam uma fileira de olhos, de focos de locomotiva golpeando as trevas numa pertinaz interrogação. A atmosfera, impregnada de cheiros maus de pó de arroz e de suor, sufocava. Encostei-me ao portal indeciso. Remexia e gania entre aquelas quatro paredes o mundo estercorário do Rio. Velhos viciados à procura de emoções novas, fufias histéricas e ninfomaníacas, mulatas perdidas, a ralé da prostituição, tipos ambíguos de calças largas e meneios de quadris, caras lívidas de rôdeurs das praças, homens desbriados, toda essa massa heteróclita cacarejava impaciente para que começasse a orgia. Os velhos tinham olhares cúpidos, melosos, os tipos dúbios tratavam-se entre si de comadres, com as faces pintadas, e a um canto o empregado dos Correios, esticando o pescoço depenado de condor, fixava na penumbra a presa futura. Não era uma religião; era um começo de saturnal.

Senti que me tocavam no braço. Voltei-me. Era um poeta muito vermelho, que cultivara outrora, numa revista de arte, o satanismo literário. Desequilibrado, matóide, o Carolino estava ali em parada íntima de perversão poética.

- Também tu? - fez apertando-me a mão entre as suas viscosas de suor. - Curioso, hein? Mas palhaçada, filho, palhaçada. É a segunda a que eu assisto. Uma missa-negra de jornal de Paris com ilustrações ao vivo... Imagina que nem há padres. O oficiante é o degenerado que anda à noite pelas praças.

- E as hóstias?

- As hóstias, essas ao menos são autênticas, roubadas às igrejas.  Dizem até... - esticou-se, colocou a boca ao meu ouvido como quem vai fazer uma espantosa revelação: - dizem até que há um sacristão na cidade a mercadejá-las.  É para quem quer... hóstias a dez tostões. É boa!

Mas que diferença, meu caro, da missa antiga, da verdadeira!

- Não se mata ninguém?

- É lá possível! E a polícia? Já não estamos no tempo de Gilles de Rais nem de Montespan... Bom tempo esse!

Pousou os dedos no peito, revirou os olhos saudosos. Era como se tivesse tido relações pessoais com o Gilles e a Montespan.

A turba entretanto continuava a piar. Todas as janelas fechadas faziam da sala um forno. Carolino encostou-se também e deu-me informações curiosas. Estava vendo eu uma rapariga loura, com uma fístula no queixo e óculos azuis? Era uma troteuse da praça Tiradentes. Certo homem pálido, que corcovava abanando-se, era artista peladanista, outro gordo e flácido fazia milagres e intitulava-se membro da Sociedade de Estudos Psíquicos. Havia de tudo... Uma senhora, vestida de negro, passou por nós grave, como cansada.

- E esta?

- É a princesa... Uma mulher original, estranha, que já adorou o fogo...

- Mas você está fazendo romance. Isso é literatura.

- Tudo é literatura! A literatura é o mirífico agente do vício. Porque estou eu aqui? A literatura, Huysmans, o cônego Doere do Là-Bas, os livros enervadores. Os que arranjaram estas cenas, o rapaz dos Correios, o Justino, o Bode...

- O Bode?

É o nome satânico do sacerdote... tem o cérebro como um sanduíche de literatura.

- Mas o resto, estas quarenta pessoas que eu vejo, tenho a certeza de ver e que encontrarei talvez amanhã nas ruas?

- Em ruas más...  São depravados, pervertidos, doentes, endemoinhados! Satã, meu amigo, Satã, que os padres arrancam dos corpos das mulheres no Rio de Janeiro, a varadas.

- É sempre o melhor meio.

- O único eficaz - mas que nos tira a ilusão e a fantasia... Confesse. É um gozo a descida ao abismo da perdição como Deus do Mal, este banho de gosma em que, de irreais as cenas, não as acreditam os nossos olhos, ao vê-las, nem os nossos ouvidos ouvindo-as. Começa a cerimônia... Entremos. Só falta aqui o falecido coronel...

Abrira-se uma porta, a da casa de jantar, e a crápula entrava aos encontrões dando-se beliscões, com o olhar guloso e devasso. Entramos também.

Como era razoável a desilusão de Carolino!  A missa-negra a que eu assisti, era uma paródia carnavalesca e sádica, uma mistura de várias missas com invenções pessoais do sacerdote. Havia frases do ofício da Observância, trechos sacrílegos do abade Guibourg, a missa de Vintras, esse doido formidável, aparatos copiados aos Ansanés da Síria e um desmedido deboche, o deboche do teatro São Pedro em noite de carnaval, se à polícia não contivesse o desejo e as portas se fechassem. Carolino tinha razão.

O erotismo ambicioso de outrora devia ser mais interessante. Guibourg aspergindo de água benta o corpo nu da Montespan deitada nos evangelhos dos reis, os pombos queimados, a paixão de Nossa Senhora lida com os pés dentro de água, o cibório cheio de sangue inocente no centro das sensações, tinham um fim. A missa de Ezequiel, o ofício supremo em que, além de Satã, aparecem Belzebu, Astarob, Asmodeu, Belial, Moloch e Baal-Phagor, era religiosamente terrível. A que os meus olhos viam, não passava de fantasia de debochadas e histéricas necessitando do rifle policial e do chicote.

A casa de jantar estava transformada numa capela. Ao fundo levantava-se o altar-mor, ladeado de um pavão empalhado com a cauda aberta - o pavão simbólico do Vício Triunfal. Nos quatro cantos do teto, morcegos, deitados em corações de papelão vermelho, pareciam assustados. Panos pretos com cruzes de prata voltadas cobriam as janelas e as portas.

Do altar-mor, que tinha três degraus cobertos por um pelego encarnado, descia, abrindo em forma de leque, um duplo renque de castiçais altos, sustentando tochas acesas de cera vermelha. Era essa toda a luz da sala. O bando tomou posições. Alguns riam; outros, porém, tinham as faces pálidas, olheirentas, dos apavorados. Nós, eu e o poeta, ficamos no fim. Um silêncio caiu. Do alto, pregado a cruz tosca, uma escultura infame pretendia representar Cristo, o doce Jesus! Era um boneco torpe, de bigodes retorcidos, totalmente excitado, que olhava os fiéis com um olhar trocista e o beicinho revirado.

- É horrendo.

- Se estamos na casa do horrendo! Guarde a sua emoção. Tudo isso é religião. O mesmo fazem com Iscariote no sábado de Aleluia os meninos católicos.

Guardei. Vinham aparecendo aos saltinhos, num andar de marrecos presos, quatro sacristãos com as sotainas em cima da pele. Esses efebos diabólicos, de faces carminadas e sorrizinhos equívocos, passeavam pela sala como ménagêres preocupadas com um jantar de cerimônia, dando a última de mão à mesa. Depois surgiu um negrinho de batina amarela, com os pés nus, e as unhas pintadas de ouro.  Trazia os braseiros para o incenso e quando passava pelos homens erguia devagar o balandrau cor de enxofre. A princesa, adoradora do fogo, olhou-o com gula e ia talvez falar, quando apareceu o sacerdote acompanhado de um outro sacristão exótico. À luz dos círios que estalidavam, nessa luz vacilante e agônica, o mulato era teatral. Alto, grosso, com o bigode trincado, as olheiras papudas, os beiços sensuais pendentes, fez a aparição de capa encarnada e báculo de prata, com os símbolos de Shiva potente.

- Esse homem é doido?

- Um sádico inteligente. Tem como prazer único o crime de um príncipe que há um ano agitou a moral arquiduvidosa de Londres... Ainda não conversou com ele? Muito interessante. Há tempos inventou a divina junção dos sexos num tipo único, o andrógino satânico. É admirável...

- A literatura! - fiz.

- O Mal! retrucou o poeta cínico, e apontou o Dr. Justino.

O pobre médico encostado a uma das cruzes batia palmas clamando.

- Satanás! Satanás! Nosso Senhor! Acode!

O sacerdote virou-se. A cauda estrelada de um pavão cobria-lhe o peito da túnica.

Curvou-se, juntou as mãos, e a paródia da missa católica começou, em latim, mudando apenas Deus pelo Diabo. Era tal qual, curvaturas, gestos, toques de campainha, resposta de sacristãos, tudo. De repente, porém, o homem desceu os três degraus, Os sacristãos surgiram com turíbulos enormes, e ele, despregando a casula surgiu inteiramente nu, com o cavanhaque revidado, a mão na anca, cruel como o próprio Rebelde. As mulheres, os pequenos equívocos, o ocultista arrancaram as roupas, rasgaram-se enquanto o seu dorso reluzente e suado curvava-se diante dos incensos. Depois de novo, com uma voz do metal bradou:

- Senhor! Satã! Glória da terra! Tu que aclaras os pobres homens, Fonte de ouro, misterioso Guarda das criptas e dos antros; Tu que moras na terra onde o ouro vive; Causa dos pecados; Amparo da carne; Delírio único; Fim da vida; - deixa que te adoremos! Não te exterminaram as sotainas baratas, não te perdeu o Outro, não se acabará nunca o teu poderoso império, ó Lógica da Existência! Satanás, estás em toda a parte, és o Desejo, a Razão de Ser, o Espasmo! Ouve-nos, aparece, impera! Não vês na cruz o larápio que roubou a tua lábia e o teu saber?

- Deus! - murmurei.

- Guarde a sua emoção, meu amigo. É do rito. Eles dizem que Jesus foi a principio, de Lúcifer.

- É preciso encarnar o mágico - continuava o homem - neste pedaço de pão; é preciso magoá-lo, fazê-lo sofrer, mostrar-lhe que és único, impassível e admirável. Que seria da humanidade se não fosse o teu Auxílio, ó Portador dos gozos, ó Desmascarador das hipocrisias? Todo o mundo soluça o teu Nome, a Pérsia, a Caldeia, o Egito, a Grécia, a Roma dos roubadores da tua Pompa. Olha pelo mundo a vitória, os filósofos, os sábios, os médicos, as mulheres. Os filósofos desviam o amor do Outro, os sábios alugam a crença, os médicos arrancam dos ventres a maternidade, fazem as assexuadas delirantes, esmagam as crianças, as mulheres escorrem a lascívia e o ouro! Nós todos prostrados adoramos-te, diante do impostor, do mentiroso, desse que aconselha a renunciar à Carne! Que venha o dinheiro, que venha a Carne! que se esmague os seios das mulheres e se lhes crave o punhal da luxúria em frente ao impostor...  Jesus há de descer à hóstia; tu queres!

Deixou cair o braço. Na face dos erotômanos a loucura punha ritos de angústia.

O sacerdote espumava, e a fumaça dos incensários de tão espessa parecia envolver-lhe a indecorosa nudez numa clamide de cinza, estrelada de círios.

- Ó Rei poderoso das satisfações, os que te acreditam, abandonam as cobardias da vergonha, as pregas do pavor e a estupidez da resignação. Envia-nos Astaroh, dá-nos o amor, faze-nos gozar o prazer, faze-nos.

Um palavrão silvou, sagrado como a Bíblia. Houve um complexo de urros e guinchos.

- Amém! - cacarejavam os pequenos.

- Tu que és o Vício Amplo, ajuda-nos a violar o Nazareno para a glória imensa.

Outro palavrão estalou. Metade do grupo não compreendia o galimatias blasfemo, mas as frases indignas eram como varadas acendendo a lubricidade, e a gentalha então, como o gesto lúbrico dos macacos, cuspinhava impropérios.

O sacerdote não descansou. Atirada a palavra, trepou os degraus, colocou uma mitra imoral no crânio, e, estendendo entre os dedos uma hóstia branca de neve, encostou-se ao altar vacilante.

- Que vai ele fazer?

- Vai ao sinistro banal...

Que Deus seria esse? Ia perguntar ao poeta, mas não tive tempo. Um dos sacristãos trepara ao altar, com o cálice na mão. Como coroado pelos pés do Cristo, o pequeno com tremores pelo corpo, tiques bruscos, garrões de nervos, o olhar embaciado sujeitava-se à estripação do batismo da hóstia, e enquanto o braço do sacerdote num movimento cruel sacudia-o, a sua voz ia dizendo:

- Que Satã o faça encarnar.

De repente o braço estacou. O pequeno tombara babando. Houve então a apoteose. Com a hóstia poluída, o homem nu desceu gritando; os braseiros caíram por terra, os homens ambíguos com gargalhadas infames rolavam; mulheres estrábicas trepavam pelo altar de quatro pés, querendo comer as migalhas da hóstia úmida. A rapariga de óculos azuis com os cabelos presos a um círio estendia o corpo convulsionado; o ocultista gordo gania, em torno do malandro nu, o sacerdos; uma teoria de sátiros e fúrias hidrófobas mastigava enojada os pedaços de hóstia que o rapaz de pescoço de condor cuspinhara. A fumaça dos círios sufocava, alguns castiçais tinham caído.

- Hein? - fez o poeta, por pose. Mas tinha os olhos injetados e tremia.

Então, agarrei-o, passamos à sala em que os corpos redemoinhavam promiscuamente no mais formidável dos deboches entre os círios tombados. Dois sinetas puxaram-no. Claudino amparou-o no pedestal do pavão, o Vício Triunfal rolou. Demos na sala dos refletores, desesperados. A sala parecia na sua solidão uma gare de crime deserta. Entramos na outra em que Justino rolava num canapé sob a pressão de incubos suficientes e reais. O negro abriu meia porta:

- Não querem a água maldita?

- Não.

- V. S. vai assustado. Não diga nada, meu senhor. Deus lá em cima é que lhes dá esse castigo.

Deixei-o falar, deitei a correr como um doido, na noite enluarada. Ouro, prostituição, infâmia, canalhice, sacrilégio, vergonha! Mas que é tudo isso diante da castidade imaculada dos elementos? Dos altos céus imensos que as estrelas cravejam de glória, a lua derramava por sobre a calma da noite um manto inconsútil de cristal e ouro, e a terra inteira, cheia de paz e doçura, abria em perfume sob o sudário de luz, infinitamente casta...

E foi como se, arrancado ao inferno de um pesadelo lôbrego de nojo e perversão, eu voltasse à realidade misericordiosa de bondade da vida.

 

OS EXORCISMOS

- "Houve um grande combate nos céus. Miguel e os anjos combatiam contra o dragão que lutava com os seus. Estes, porém, não tiveram a vitória e desde então foi impossível reachar o lugar nos céus. O dragão, a antiga serpente chamada diabo ou sedutor do universo, foi precipitado com os maus anjos sobre a terra. E esse dragão tinha sete cabeças, dez cornos, sete diademas e a sua cauda arrastou a terça parte das estrelas

Assim fala São João de Patimos. O dragão e as estrelas fazem o mundo diabólico, inspiram o mal, arrastam a teoria furiosa das histéricas e mais do que em qualquer outra terra fazem aqui as endemoninhadas. Pela classe baixa, nas ruas escusas, as possessas abundam. De repente criaturas perfeitamente boas caem com ataques, escabujam, arquejam, cusparam uma baba espessa, com os cabelos tesos e os olhos ardentes. Vêm os médicos chamam a isso histeria, vêm os espíritas, dão outra explicação, mas as criaturas só tornam à vida natural quando um sacerdote as exorcisma. Já vi na Gamboa uma mulher que ficava dois palmos acima do solo, com os braços em cruz, gargolejando injúrias ao Criador; tenho a história de uma outra que babava verde e passava horas e horas enrodilhada, com soluços secos, e atirava punhadas aos crucifixos numa ânsia incrível. São sem conta os casos de possessas.

- E toda essa gente é exorcismada?

- Às vezes.

O amigo com quem eu falava era um médico católico.

- O exorcismo pode ser feito por qualquer?

- Hoje não. Atualmente é preciso ser um homem destituído das vaidades do mundo, é preciso ser velho e puro, dotado de uma força imperecível. O bispo faz tocar ao padre exorcista o livro das fórmulas, dizendo: "Accipe et commenda memorae, et habem potestatem imponendi manus super energumenos..." Aqui no Rio há exorcistas falsos, malandros exploradores, há os jesuítas, alguns lazaristas e o superior da ordem dos Capuchos que têm licença do bispo. Conhece frei Piazza? É uma excelente criatura, feita de bondade e de paz. Nunca recebe mal. Para cada injúria tem um carinho e guarda como máxima a grande verdade de que um frade vale por um exército. Que figuras! Ele pelo menos vale por um exército com a sua carícia e a sua força. É um desses entes que não param, um militante. Anda, sai, indaga, conversa, protege, ajuda, converte, exorcisma. Já o vi uma vez vaiado por alunas de uma escola e rapazes grosseiros, à toa, sem razão de ser, apenas porque era frade. Frei Piazza, muito calmo, agradecia com beijos a vaia e cada beijo seu no ar petrificava a boca de um dos impudentes insultadores. É o nosso primeiro exorcista, o grande combatente dos Diabos... Vá interrogá-lo de preferência a outro qualquer.

Mas há diabos?

- Um recrudescimento apenas. O catolicismo explica o inexplicável. Quem faz a cosmolatria? Satanás! a necrolatria, o mal de Deus enfim? Satanás, sempre Satanás! Qual o meio de acabar com o Diabo? o exorcismo.

O Rio de Janeiro é uma tenda de feiticeiros brancos e negros, de religiões de animais, de pedras animadas, o rojar de um povo inteiro diante do amanhã,

 

Spectre toujours mas qué qui nous suit cote a cote
Et qu'on nomme Demam...

 

Às cenas da missa-negra, dos satanistas, dos magos, é preciso juntar a missa vermelha, e os exorcismos.

- Mas nós estamos no século XX!

- Meu caro, o mundo não varia olhando o invisível. Há sempre de um lado os espíritos bons, os anjos que se demonstram pela teurgia, e os espíritos maus, as larvas, os demônios, isto é, de um lado as teofanias, de outro as fúrias. Ultimamente, porém, casos incríveis, lendas antiqüíssimas deram para reaparecer. Os agentes do Diabo, as sereias, os faunos, os gigantes, os tritões surgem de novo. O João catraeiro, ali do cais dos Mineiros, já viu passeando na água uma dama de vermelho com homens de barbas verdes que riam e assobiavam...  Porque havemos de banir fatos? Eu, e dou-lhe como testemunha o Dr. Rafael Pinheiro e outras pessoas conhecidas, já tive uma doente que frei Piazza pôs boa. A mulher delirava, tinha ataques formidáveis, eu tratava-a segundo Charcot. Uma vez ela disse: eu tenho o diabo no corpo. Pois vá ao Castelo! Foi e ficou boa. Era um médico que me dizia o assombro. Nesse mesmo dia subi ao Castelo.

Pelas pedras do morro iam homens carregando baldes de água; mulherios estendiam roupas na relva; embaixo, a cidade num vapor branco parecia uma miragem sob o chuveiro de luz. Em torno do convento saltavam cabras. Pendurei-me de um condão à porta carcomida, como um viajante medieval. Muito tempo depois apareceu um frade italiano de barba negra.

- O Superior?

Abriu a porta, fez-me entrar para uma sala paupérrima, onde havia um altar com imagens grosseiras e paramentos de missa. Pelas paredes, ordens do arcebispo, tabelas dos dias de jejum. Através das outras portas abertas viam-se salas abobadadas, onde as alpercatas sacerdotais punham um brando rumor de intimidade.

Dois minutos depois, frei Piazza aparecia. Muito jovial e muito simples. Eu queria uma informação; ele dava-a. Sempre que Deus lhe fazia a graça de poder ser útil, ficava contente. A impressão desse homem, com os flocos de neve de sua barba escorrendo de uma face cheia de vitalidade, é a de um ser definitivamente certo de seu fim, a quem as injúrias, as intrigas, os elogios ou os males não atingem. Viu-me um curioso mundano, impôs-me a sua crença com delicadeza.

- O senhor é jornalista! ah! os jornalistas!... Se eles dissessem apenas o que vêm, seriam os melhores homens do universo... Mas quase nunca dizem. O príncipe de Crayemberg tinha um temor muito justo. Olhe o que ainda há pouco fizeram com a princesa russa.

Estávamos sentados num duro banco, diante de Deus e dos santos, como em poltronas confortáveis. Ele tinha entre as barbas um sorriso de sutil ironia.

- Superior - confessei eu -, tenho nestes últimos tempos visto de perto os males do Diabo.

Disseram-me que frei Piazza exorcisma.

- Sim, filho, há alguns anos. Todas as sextas-feiras das 4 da manhã às 4 da tarde, trabalho sem descanso. Só no ano de 1903 exorcismei mais de 300 demoníacas. Esses exorcismos são feitos de preferência na igreja, mas quando me chamam, vou também à casa dos pacientes. Satã mais do que nunca ameaça Deus. Esse macaco do Divino, como diz o padre Goud, arrasta as criaturas para as profundas do inferno, que a ciência considera um centro de fogo no meio da terra, autor dos vulcões e do abalo das montanhas... Ah! meu filho, é uma vida bem dura!

- O exorcismo é público?

- Nem sempre. O diabo pela boca dos possessos conta a vida de todos, injuria os presentes. Não é conveniente. Ficam alguns amigos que sejam sérios e piedosos.

- E como se praticam os exorcismos?

- Segundo o Rituale.

- Contam tanta coisa...

- É bem simples. Leio-lhe a cerimônia.

Foi-se com o seu passo apressado, voltou trazendo os óculos e um livro de marroquim vermelho com letras de ouro.

- Está escrito que o homem não viverá só de pão, mas das palavras de Deus, disse São Paulo.

Sentamo-nos. Frei Piazza abriu o Rituale, escrito em vermelho e negro...

O ofício de exorcismo começa com as litanias normais e o salmo LII. Depois, o sacerdote dirige-se ao Energúmeno.

- Quem quer que sejas, ordeno-te, espírito imundo, como aos teus companheiros, que obedeçam a este servidor de Deus, em nome dos mistérios da Encarnação, da Paixão, da Ressurreição e da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, em nome do Espírito Santo, que digas o teu nome e indiques por um sinal qualquer o dia e a hora em que entraste neste corpo, ordeno-te que me obedeças, a mim, ministro indigno de Deus, e proíbo-te que ofendas esta criatura assim como aos presentes.

Depois o exorcista procede à leitura dos Evangelhos, segundo São João, São Marcos, São Lucas, evoca o Cristo, faz o sinais-da-cruz no possesso, envolve-lhe o pescoço num pedaço de estola e com a mão direita na cabeça do rebelde, diz:

- Eu te exorcismo, imundo espírito, fantasma legião, em nome de N. S. J. C., ordeno-te que abandones esta criatura feita por Deus com terra. Deus, o mesmo que do alto dos Céus te precipitou nas profundezas, é quem te ordena. Aquele que manda nos mares, nos ventos e na terra. Ouve e treme de pavor, Satã, inimigo da fé, inimigo do gênero humano, mensageiro da morte, ladrão da vida, opressor da justiça, raiz de todos os males, sedutor dos homens, traidor de todas as nações, origem da avareza, inventor da inveja, causa das discórdias e das dores. Por que ficas? por que resiste? Temes o que te imolou por Isaac vendido por José, morto por um anho e que acabou por triunfar do Inferno?

E fazendo sinais-da-cruz na cabeça, no ventre, no peito e no coração do paciente, o sacerdote, com os paramentos roxos, continua:

- Abjuro-te, serpente antiga, em nome dos julgamentos dos vivos e em nome dos mortos, em nome do teu Criador e do Criador dos mundos, Daquele que tem o poder de te enviar ao Inferno, - de sair imediatamente com o teu furor desse servidor de N. S., refugiado no seio da Igreja. Esconjuro-te de novo, não em nome da minha fraqueza, mas em nome do Espírito Santo. Sai desse servidor de Deus, criado à sua imagem; obedece, não a mim, mas ao ministro de Cristo. A força Daquele que te submeteu à sua cruz, ordena-te. Teme o braço do que conduz as almas à luz, após ter vencido os gemidos do inferno. Que o corpo dessa criatura te cause medo, que a imagem de Deus te apavore. Não resistas. Apressa-te, porque Cristo deseja habitá-lo. Deus, a majestade do Senhor, o Espírito Santo, o sacramento da cruz, a fé dos santos apóstolos Pedro e Paulo e dos outros santos, o sangue dos mártires, a intervenção dos santos e das santas, os mistérios da fé cristã, ordenam-te que obedeças. Sai, violador da lei, sai, sedutor cheio de manhas e de enganos, inimigo da virtude, perseguidor dos inocentes. Por que resistes? Por que temerariamente recusas?

A imprecação continua formidável até o hiato suave de uma nova oração. Depois o padre lê o último e mais tremendo exorcismo.

- Abjuro-te, omnis immundissime, deerissime, fantasma, enviado de Satã, em nome de J. C., o Nazareno, que foi, conduzido ao Deserto depois do Batismo de São João e que te venceu na tua habitação. Cessa de obsedar esta criatura, que Deus, para sua honra, tirou do limo da terra. Treme, não da sua fragilidade humana, mas da imagem do Todo Poderoso. Cede a Deus que te precipitou no abismo a ti e a tua infâmia, na pessoa de Faraó, por intermédio do seu servidor Moisés; cede a Deus que te condenou no traidor Iscariote.

A imprecação torna-se de uma solenidade colossal. O sacerdote ergue o livro sobre o desventurado possuído:

- Os vermes esperam-te a ti e aos teus. Um fogo devorador está preparado por toda a eternidade, porque tu és a causa do homicídio maldito, o organizador do incesto, o organizador dos sacrilégios, o instigador das piores ações, o que ensina a heresia, o inventor de tudo quanto é obsceno. Sai, ímpio, sai, celerado, sai com as tuas mentiras, porque Deus quis fazer seu templo deste corpo. Obedece ao Deus diante do qual se ajoelham os homens: cede o lugar a N. S. J. C. que derramou o seu sangue sagrado pela humanidade; cede ao Espírito Santo, que pelos seus bem-aventurados apóstolos venceu-te no mago Simon, que condenou as tuas infâmias em Ananias e Safira, que te curvou em Herodes, que te cegou no mago Elima. Sai agora, sai, sedutor. O deserto é a tua morada, a serpente a tua habitação. Eis que aparece Deus, o Senhor; o fogo arderá os inimigos se não fugirem. Se pudeste enganar um homem, não poderás embair Deus. Escorraçar-te-á O que tem tudo em seu poder, far-te-á sair. O que preparou a geena eterna. Aquele de cuja boca sai o gládio agudo, que virá julgar os vivos, os mortos e o século pelo fogo.

E, enquanto as endemoninhadas, flexuosas, praguejando, batendo com o crânio, expectoram Satanás, os pater, os salmos envolvem-na. Quando ela cai prostrada, salva, o triunfador grita:

- Eis-te refeita santa. Deixa de pecar para que te não aconteçam outros desastres. Vai para casa e anuncia aos teus as grandes coisas que Deus fez por ti e toda a sua misericórdia..

Eu tinha acabado de ler o latim iluminado. Frei Piazza, muito doce, murmurava:

- Há outras formas de exorcismo que invocam os Santos, a Virgem...

- Mas, Superior, há mesmo muitos casos aqui?

- Não imagina! Principalmente nas classes baixas, sem limpeza. O diabo ama a imundície. É quase incrível. Esses fenômenos, que a espiritolatria tem por novos, são nossos conhecidos, há muito tempo explicados. Há criaturas que se dobram em dois, que se tornam sábias de repente, gritam em línguas desconhecidas, têm uma força enorme. Ainda há dias tive dois casos. Não acredita?

- Se eu conheço o caso da Gamboa em que um sacerdote não se pode aproximar da possessa, de tal modo ela coleava!

- A mim aconteceu fato idêntico. Era uma virgem. Cuspia no Crucificado, com os braços em cruz, dobrava em dois, dizia a vida dos outros e de repente começou a arregalar os olhos... Ficaram como duas brasas os olhos, as pálpebras a dilatarem-se, dilatarem-se. Eu estava-as vendo arrebentar, mas tão horrível era o quadro que não tive coragem... Cada palavra do Ritual arregalava-lhe mais o olhar pavoroso. É um capitulo infindável a peregrinação pelos bairros pobres. Casos estranhos! Não conhece a Cabocla, uma mulher que comanda 250 espíritos? Esta criatura, onde está, os móveis caem, há rumores, quebram-se os vasos. Também não pára. Ela diz que já nasceu com os espíritos e não os quer tirar. Ainda outro dia encontrei-a em Catumbi...

Eu já conhecia esse ser satânico e inédito, a Cabocla, já a vira escabujando enquanto os móveis caíam e as portas fechadas abriam-se com estridor. Era verdade.

- Mas há amuletos preservativos do Diabo? - perguntei tremendo.

- Basta a cruz de São Bento. As iniciais da medalha dizem ao alto: Ipse Venena Bibus; do lado esquerdo; sunt mal, quae libas; do lado direito: vade retro, Satanás; em baixo: non suads mihi vana. Ao centro a frase: non draco sit mihi dux - da esquerda para a direita, em forma vertical, de cima para baixo: crux sancta mihi lux, e nos quatro cantos: crux, sanctis, patris, benedicti...

Estava dando uma hora. Através do convento os relógios repetiam interminavelmente a hora solitária. Erguemo-nos, e ainda algum tempo ouvi embevecido a pureza da crença.

Na sexta-feira, porém, de madrugada, fui outra vez ao Castelo certificar-me. Vinha nascendo o dia. No éter puro os sinos desfiavam as notas claras e era como se os sons fossem acordando pela montanha os ecos da vida. Cabras surgiam das sombras, mastigando a relva úmida, e no alto uma estrela ardia a morrer. Vi então subindo a encosta, desde essa hora, a teoria das beatas, homens amparando mulheres de faces maceradas, mantilhas pretas escondendo rostos dolorosos, corpos dobrados em dois tremendo, o bando das possessas modernas galgando o cimo do monte para arrancar a alma a Satanás, o delírio diabólico, a fé, a angústia, o mal... E na Cor suave da aurora, aquele convento simples, donde saía a harmonia dos sinos, surgiu-me como o bálsamo do Bem, o gládio do Senhor solitário e único em meio da Descrença Universal - último auxilio de Deus às almas do Diabo...

Quando descia, outros crentes, outras demoníacas iam subindo na luz do sol para a Lourdes espiritual que os sinos proclamavam. E, recordando a visão tenebrosa desse turbilhão angustioso que escabuja nas casas espíritas e nas igrejas sob o domínio de Satanás, ergui os olhos ao céu, e louvei a glória de Deus no seu imperecível fulgor...

 

AS SACERDOTISAS DO FUTURO

O futuro é o deus vago e polimorfo que preside aos nossos destinos entre as estrelas, o incompreensível e assustador deus dos boêmios nas caravanas da Ásia, a Força oculta, o perigo invisível. Hugo e Alencar acreditavam nessa divindade, e não há entre os deuses quem maior número tenha de sacerdotes e de sacerdotisas.

Só os cultores do Futuro, podem modificar a fatalidade, afastar a morte, sacudir o saco de ouro da fortuna, soltar o riso da alegria na tristeza dos séculos. As sacerdotisas do Deus tremendo infestam a nossa cidade, tomam conta de todos os bairros, predizem a sorte aos ricos, compõem um mundo exótico e complexo de cartomantes, nigromantes, sonâmbulas videntes, quiromantes, grafólogas, feiticeiras e bruxas.

Essa gente cura, salva, desfaz as desgraças, ergue o véu da fortuna, faz esperar, faz crer, vive em prédios lindos, em taperas, em casinholas - é o conjunto das pitonisas modernas, as distribuidoras de oráculos. Em meio tão variado há de haver ignorantes - a maioria - cartomantes que vêem nas cartas caminhos estreitos e caminhos largos e não sabem nem distribuir o baralho, sonâmbulas falsificadas, portuguesas e mulatas que se apropriam dos moldes dos africanos, e mulheres inteligentes que conversam e discutem.

Freqüentei os templos do futuro. Só em uma semana visitei oitenta, encontrando-os sempre cheios de fiéis. O caleidoscópio alucinante das adivinhas faz a vida livremente. Em algumas casas encontrei três e quatro, girando sob uma única firma.

Só na rua do Hospício, por exemplo, há cinco ou seis. Nos outros pontos conversei com Mme. Jorge na rua da Ajuda, a Liberata na rua da Alfândega, a Joana Maria da Conceição na rua Figueira de Melo, a Amélia de Aragão, a Luiza Barbada na rua Barão de S. Felix, a Amélia do Pedregulho, a Amélia Portuguesa, a Cândida, a Mme... da rua dos Arcos, 4, a Ximenes da rua da Prainha, 19, Maria de Jesus na rua Dr. Maciel, 7, Castorina Pires em S. Diogo, a Amélia da rua do Lavradio, dona Martins na rua Mariz e Barros, a Alexandrina na rua da América, Mme. Hermínie na rua Senador Pompeu, Maria Baiana na rua do Costa, a Genoveva da rua do Visconde de Itaúna, Dona da rua da Imperatriz, 15, a Corcundinha célebre adivinha de atores e de repórteres, na deixa um rol infindável.  Todas falam do seu desinteresse exigindo dinheiro e algumas vendo o futuro nas mãos, nem ao menos sabem as linhas essenciais segundo o engraçadíssimo Desbarolles. A observação nessas casinholas é incolor. Fica-se entre os feitiços dos minas e a magia medieva, numa atmosfera de burla.

Mas é lá possível não acertar às vezes? A vida humana tem uma linha geral. Tanto amam as heroínas de Bourget como as lavadeiras, gozam e gostam de ser gozados os freqüentadores da haute-gomme com os dançarinos dos becos esconsos. As vidas têm uma parecença em bloco, uma uniformidade de sentimentos. Por mais ignorantes que sejam, as sacerdotisas têm o hábito da observação, indagam da vida antes, em conversa. Muitas chegam a perguntar:

- Vem por dor ou por amor?

E como sabem perfeitamente quando se dirigem a um cavalheiro, a uma dama, às coccottes ou aos rufiões, as suas respostas acertam. É um exercício de atenção, antes de tudo, com cenários e pedidos sugestivos. Uma delas recebe velas de sebo, terminada a consulta; outras, peças de chita. A turba dá-lhes dinheiro, e sussurra os seus segredos nos ouvidos dessa gente que são como abismos de discreto silêncio.

Na peregrinação pelos templos do Deus Futuro guardo como originais uma casa de cartomancia na rua do Ouvidor entre as modistas do tom e a elegância máxima, a Ceguinha vidente da rua da Misericórdia, a Rosa que olha nágua e é astróloga, Mme. de F. sonâmbula numa rua paralela à praia de Botafogo, a Corcundinha da rua General Câmara e a esquisita Mme. Matilde do Catete.

A Ceguinha tem a face macerada e é a exploração de quatro ou cinco. Vive numa cadeira, com os olhos cheios de pus. O grande Deus fez-lhe a treva em torno, para melhor ler a sorte dos outros nos meandros do céu. Dizem que os agentes da polícia vão lá para saber o paradeiro dos gatunos e que os gatunos também vão a ver se escapam. Imóvel como um santo indiano à porta da imortalidade, a Ceguinha, com a mesma dutilidade, desvenda-lhes o Futuro. Às vezes aparecem senhoras. A Ceguinha curva-se, e pinta o Destino com a mesma calma dolorosa.

A Rosa, com as fontes saltadas, o que em magia se chama cornos de Moisés, é um assombro de observação. Esse exemplar único de astrologia conhece mesmo algumas práticas antigas. Quando a fomos procurar, olhou-nos bem.

- Por que veio, se nunca acreditará?

- Estou numa situação difícil.

- Ouça a voz de Deus.

- Mas a minha alma sofre.

- O homem tem muitas almas...

- Mas se posso saber o futuro nágua?

- A água é onde se miram os astros que têm a vida da gente.

- Como se consulta?

- Vendo... Alguns astros de outrora não têm mais importância hoje: outros receberam-lhe a força. Os meus horóscopos são certos; o Destino ordena-me. Mas eu só falo com os homens que a dor faz tristes e crentes.

A Corcundinha, discípula de uma Josefina, tem uma fama tão grande que chega a deitar cartas por dia, às vezes para mais de cinqüenta pessoas. Cada consulta custa cinco mil réis e ela só anuncia coisas lúgubres.

Mme. de F... esteve na Inglaterra; em estado natural discute o psiquismo, e quando sonambulizada aparece numa túnica preta. Dizem que predisse os acontecimentos da nossa polícia e prevê um futuro desagradável da pendência brasileira com o Peru. E lúgubre. A roda que a freqüenta, dá-se como ultrachique.

Mme. Matilde, a cartomante do high-life, já teve criados de casaca e possui uma linda galeria de quadros. De todos os templos, o dessa senhora é o mais excêntrico. Mme. Matilde, para os íntimos a princesa Matilde, é uma criatura que fala com volubilidade.

Há alguns anos foi a Paris, onde estudou com Papus e Mme. de Thèbes. Conhece a cartomancia, a telepatia, o sonambulismo, a metafísica das estrelas, a quiromancia, coisas complicadas de que faz uma interessante confusão. Além de tudo isso, a princesa é crítica de pintura e interessa-se pelo movimento universal. Quando me anunciei, a agradável dama mandou iluminar o seu salão de visitas, e entre as colchas japonesas, os quadros de valor, os bibelôs do Oriente e as peles de tigres, fez a sua aparição.

Vinha de vestido vermelho, um vestido de mangas perdidas, donde os seus braços surgiam cor de ouro, e vinha com ela a essência capitosa de vinte frascos de perfume. Mme. Matilde embalsamava. Deixou-se cair num divã, passeou com as mãos pelo ar e disse:

- Estou cansadíssima. Se não me mandasse dizer quem era, não o teria recebido. Simpatizo com o seu ser.

Curvei-me comovido.

- Não podia falar das sacerdotisas do Futuro, sem ouvi-la.

- Já tem percorrido os templos do grande Deus?

- Alguns. Visitei oitenta, e há para mais de duzentos.

- Há templos de ouro, de prata, de cobre e de latão.

- Guardei para o fim o melhor.

- Meu caro, os verdadeiros templos do Futuro são de data recente entre nós. A sorte começou a ser descoberta aqui por negros da África imbecis e por ciganos exploradores. Depois apareceram as variações espíritas, os adivinhos que montavam casinholas receosas, reunindo ao estudo das cartas a necessidade dos despachos africanos. Uma crendice! As verdadeiras sacerdotisas datam de pouco tempo, são de importação e anunciam. Essas não se ocultam mais e dão consultas claramente.

- Como em Paris?

- Como em Paris. Não lhe falo de Papus, de quatro ou cinco sonâmbulas de fama universal, mas apenas da minha ilustre professora Mme. de Thèbes. Mme. de Thèbes em Paris é uma necessidade mundana como o clube, as premières, o grandprix.

Vai-se a Mmc. de Thèbes como se joga uma partida de boston. É uma necessidade elegante. Mme. de Thèbes tem hoje uma fortuna.

- E erra sempre.

- Nunca.

- É sacerdotisa por vocação?

- Sempre estudei as ciências ocultas por diletantismo. Das ciências ocultas saíram as ciências exatas, disse um grande mestre. Desde criança amei a antiguidade, tive o desejo de remontar ao Zoroastro, ao Zend-Avesta e aos Magos, com o prazer de descansar à beira do Nilo, de conhecer Plotino e os livros herméticos.

Depois, sempre fui dotada de uma grande força nervosa. Uma vez, levando amigas à casa de uma sonâmbula, resolvi estudar os truques das mercadorias e daí a minha conversão.

Nesse momento, como a profetisa ria, estendendo as mãos, vi-lhe na sinistra vários anéis complicados, e prendi-lhe os dedos, curioso das jóias e da mão.

- Está vendo os meus anéis? Este é africano, partido. Tem os signos do zodíaco - o tempo. Este outro guarda no fundo um berilo, por onde se enxerga a alma. Naturalmente é descrente?

- Sou filho de uma civilização muito parecida com a daquele imperador que precavidamente levantava templo aos deuses desconhecidos. Há em tudo alguma coisa a temer - o inexplicável. A história é uma afirmação de oráculos, de sonambulismo, de predições.

Eu guardara com religião a mão da pitonisa; Mme. Matilde, porém, ergue-se agitando os seus perfumes.

- E não teme? e não lhe parece sugestivo este interior? Não receia que daquele canto escuro surjam fantasmas, que, agarrando a sua mão, leia nessas linhas a desgraça irremediável?

- Se for assim - disse docemente -, que se há de fazer? É a vontade do Futuro...

- Pois, meu caro, pode ter a certeza de que não somos só as sacerdotisas do terrível Destino, somos as Consoladoras, a Teoria do Bem, as Sofredoras da Ilusão. Não sorria.

Sem nós, que seria das cidades? Os senhores andam à cata do documento humano. Nós temos à mão, todos os dias, as tragédias, os dramas e as comédias de que se faz o mundo. À nossa casa vêm as mulheres ciumentas, os que desejam a morte e os que desejam amor. Os adultérios, os crimes, os remorsos, a luxúria, as vergonhas fervilham. Nós consolamos.

Diariamente, nas casas de que tomou o número para indicá-las à polícia, encontram-se os conquistadores, os homens bem vestidos de que a polícia ignora os meios de vida; os senadores, os deputados, as pessoas notáveis, as atrizes, as cocottes, as senhoras casadas, os imbecis propondo coisas indecorosas e as almas dolorizadas.

Nós a todos damos o favo da ilusão... Quando morre meu pai? Meu marido abandona-me? Será minha a mulher de Sicrano? Fulana é fiel? Realiza-se o negócio? E nós aquietamos os instintos com o lenitivo do bem. Ainda há pouco tempo, entrou por esta sala uma menina em prantos. Era domingo. Não deito cartas aos domingos.

Neguei-me. Soluçou, pediu, ajoelhou. Logo que a vi, percebendo a sua agitação, espalhei as cartas ao acaso. A menina vai cometer um desatino! Ela olhou-me espantada. Sim, ia dali suicidar-se, porque a abandonara o amante, grávida e sem trabalho. Fiz as cartas dizerem que o amante voltava e a pequena não morreu.

- Cartas salvadoras!

- Dias antes aparecera um marido a interrogar-me a respeito do seu ménage, derruído por incompatibilidade de gênios. Ela escrevia-lhe cartas pedindo para voltar. Que devo fazer? Voltar! Mas teve amantes! É boa. Abandonada sem saber trabalhar e sem recursos queria o senhor que a pobre morresse? Depois foi-lhe o Sr. fiel? Não! Era lá possível a ela deixar de ter um amante?...

- Ou mesmo dois?

- Ou três, não vai ao caso. Ele refletiu e vivem os dois bem. Quantos desmandos evitamos, quantas desgraças, quantos escândalos! Recorda-se da história do oráculo de Delfos? É a história da prudência, de ser ambíguo para não se enganar. A nossa é muito mais difícil.

- Mente com franqueza.

- Diz verdades e consola. Muitas das minhas clientes vêm aqui apenas como um consolo. Contam as mágoas e vão-se.

- Que trabalho deve ter!

- Faço experiências até altas horas com o meu criado Júlio, e vou às estalagens, aos cortiços, ler grátis nas mãos dos pobres. Não imagina como sou recebida!

Deito cartas, leio nas mãos. É o estudo em que procedo sem perguntar para ter a certeza. E é certo! Adivinho coisas de há quatro e cinco anos passados, chego a descrever as roupas das pessoas distantes e prevejo. A previsão é de resto uma faculdade que desenvolvi.

- É feliz?

- Tudo quanto quero, faço.

- Tem talvez a alma de algum mágico antigo...

Mme. Matilde recostou o seu corpo elegante.

- Não: tive três vidas apenas. Da primeira fui físico, da segunda advogado e na terceira odalisca...

Oh! mistério! A sacerdotisa possuía o saber dos físicos, falava como um advogado e naquele momento tinha a inebriante doçura das odaliscas.

Peguei-lhe a mão e disse baixinho:

- Já um ocultista me afirmou que fui Nero e depois Ponce de Leon...

Ela riu um riso penado.

- Ponce atraído pelo mistério das mãos.

- Pela beleza.

- Todos nós temos a atração das mãos. A mão é um resumo do Céu. Cada astro tem a sua parte. Júpiter é o índex, Saturno o médio, o Sol o anular, Mercúrio Hermés o mínimo. A Lua tem a região do Sul, Marte todo o meio, onde se dão os combates da vida e Vênus o grande monte.

- É este o mais trabalhoso?

- Quase sempre.

Ergui-me, e vi numa outra sala, forrada de esteiras da Índia, um oratório onde ardiam lamparinas. Os santos, sob o halo de luz, que a ciência explica pelo raio n, como o esforço da atenção - tinham um olharzinho redondo e inexpressivo. Que diriam os coitados, santo Deus do Futuro?

- Neste meio de adivinhas, quiromantes e sonâmbulas é melhor ser impassível - dizia Mme. Matilde. - Às vezes protegem amores, são casas ambíguas.

- Mas as suas experiências?

- Pratico o sonambulismo como as cartas, a telepatia e a quiromancia, indo diretamente à alma que nós temos no fundo. Tudo é domínio. As últimas experiências do meu domínio tive-as com o conhecido pintor Hélios Seelunger. Curei o uma vez com água magnetizada. Desde então dizia-lhe às 2 horas de tal dia o senhor sofrerá um choque. Era tal qual.

Noutro dia sofria o choque. Fui eu de resto que lhe desvendei o futuro e a sorte nas mãos.

- E a transmissão de pensamento?

Já em Botafogo transmiti idéias a criaturas no Engenho Novo. Conhecem essas experiências poetas como Luís Edmundo, o padre Severiano de Resende, pintores como Amoedo. A minha amiga D. Adelina Lopes Vieira também as conhece.

Lembrei-me então de que Mme. Matilde era também literata.

- Mas as cartas?

- Quer vê-las?

Tocou o tímpano, apareceu um pequeno loiro com um sarcófago de prata em relevo. Mme. Matilde - a princesa para os íntimos - abriu-o com cuidado, e de dentro numa sombria apoteose de ouros e cores, as cartas do tarot, a papesse, o doido, o ás de ouro, o enforcado, o bateleur escamoteador surgiram tenebrosamente.

Mãos estendiam moedas de ouro, o ouro cintilava, em altos montes figuras sinistras apareciam. E estava ali a consolação universal, a consolação dos pobres e dos potentados! Nas mãos delicadas da feiticeira último grito rolava numa série de iluminuras a miragem enganadora do Futuro. Ela estendia as cartas nas luzes e eu recordava a origem antiga dessa doce ilusão, a vinda dos Boêmios.

- Quem sois vós?

- Sou o duque do Egito e venho com os condes e barões.

- Quem vos traz?

- A que precede o nosso cortejo e lê nos livros coloridos de Hermés o destino do mundo, a rainha das Cabalas, a sublime senhora do fogo e do metal! E em frente à multidão abriam o tarot como quem rasga o céu, o consolo infinito dos boêmios.

Eu estava ali como os camponeses da época de Carlos VI diante da senhora do metal - apenas, tanto a rainha como eu, um tanto mais descrentes.

Então curvei-me, depus o beijo que há muito sentia nos lábios, o beijo da devoção, na sua mão perfumada.

- Como em Paris! - fez ela, deixando que os meus lábios roçassem a extremidade dos seus dedos.

- Como na hora de sempre - murmurei -, o Medo, diante do Futuro.

 

 

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