Dançarinos da Paz

 

Por Laerte Willmann

 

A Mensagem dos Dervixes Rodopiantes

 

        Quando se fala nos Sufis, em geral lembra-se de sua dança, especialmente a dança dos dervixes rodopiantes ou giradores.  Os giradores pertencem à Ordem Mevlevi, que se originou com Rumi. Na verdade eles não fazem dança propriamente. Eles têm um ritual, chamado sama, e sua dança giratória é uma parte desse ritual. Os Mevlevi se originam da sofisticada tradição Persa do Sufismo, tendo um estilo interiorizado, profundo e sóbrio. Eles se dedicam inteiramente à disciplina necessária para sua prática e toda sua vida espiritual está ligada a ele.

        Já as Danças da Paz, têm mais afinidade com a tradição Sufi Indiana dos Chishti, mais próximos da cultura popular, das celebrações espontâneas de rua, com muita cor, som e movimento. A proposta das Danças da Paz é de levar a dança ao mundo. Com simplicidade e tolerância, sem esperar que as pessoas do mundo tenham a dedicação e a disciplina de iniciados Sufis. Assim, as Danças são mais simples e acessíveis às pessoas comuns, não exigindo delas mais do que elas podem dar. São métodos de trabalho diferentes, com diferentes propósitos, embora ambos válidos. Isso tem a ver com a liberdade Sufi. Cada ordem tem seus métodos, procedimentos e objetivos, nenhuma é melhor que outra, e nenhuma delas tenta fazer a não ser aquilo para o que se prepara. A forma das Danças da Paz é a de construir mandalas sonoras em movimento, uma forma diversa da tradicional sufis rodopiantes. Mas existe evidentemente uma relação entre as duas formas.

        E essa relação é o fato que as Danças da Paz também se inspiram no giro iniciado por Rumi há sete séculos. Como dissemos, Inayat Khan e outros Sufis consideram que Rumi iniciou uma nova era no Sufismo. Todas as ordens Sufis reverenciam ao Mevlana, que quer dizer ‘nosso mestre’. Não imitam os Mevlevi, mas todas de alguma maneira têm alguma ligação com o giro e o praticam, ainda que não se dediquem tão exclusivamente a ele quanto os dervixes rodopiantes.

        O que existe nesse giro dos dervixes que desperta tanta admiração? Talvez devêssemos começar com palavras do próprio Rumi:

 

Quando entras nesta dança,

abandonas os dois mundos;

é fora deles que se encontra

o universo infinito do giro.

 

Muito alto, distante se vê

O teto da sétima esfera,

mas muito além é que encontras

A escada que leva ao giro.

 

        Quando Rumi usa a expressão ‘os dois mundos’, ele fala desse mundo visível e do outro mundo, o mundo invisível. Para começar, ele não coloca o giro nesse mundo nem no outro, mas numa dimensão desconhecida, ‘fora deles’. Depois ele fala das sete esferas celeste, que na cosmologia Sufi representa os sete níveis do mundo superior, celeste. E o giro ainda fica além disso, a própria escada que leva a ele começa além da sétima esfera. Isso significa que para ele o giro é algo transcendente. Como poderíamos falar de alguma coisa assim? Se ele está tão além de tudo, está além das palavras que possamos usar para descrevê-lo. Sendo assim, não procuraremos descrevê-lo, mas apenas falar em torno dele. Ele é uma experiência, que não se define, que se experimenta ao girar.

 

União

        O estado que se busca com o giro é o da união, o da lembrança. A idéia não é descrever esse estado com palavras, é demonstrá-lo com a dança. O giro é a liberdade, mas também é a ordem perfeita. É espontaneidade, mas também rigor; é alegria, mas também sobriedade.

        Poderíamos dizer que o estado que se almeja é o da lembrança de Deus, ou da união com Deus. Muitos Sufis dizem assim. Mas alguns preferem falar que é a união com o Amado, ou a Amada. Pois o Deus dos Sufis não é uma autoridade suprema sentada num trono, é a fonte e o objeto do amor.

 

Paradoxos e opostos

        Existe uma belíssima hierarquia no Universo, de padrões que se repetem a distancias varando de um planeta e sua lua até aglomerados contendo milhares de galáxias. São objetos girando em torno de outros, os de menor massa em torno dos de maior, em uma coreografia controlada pela gravidade: a lua gira em torno da terra, assim como outras luas em torno de outros planetas. Os planetas giram em torno do sol, e o sol em torno do centro da Via Láctea, juntamente com bilhões de outras estrelas. E a Via Láctea gira em torno de aproximadamente 20 outras galáxias, pertencentes ao ‘grupo local’. O ser humano sempre procurou retirar ensinamentos do mundo que via. Do céu, muitos povos falaram coisas semelhantes. Um aspecto comum é esse paradoxo de se estar completamente solto no espaço e ao mesmo tempo estar percorrendo órbitas exatas, em harmonia com todas as outras coisas. E o ensinamento que podemos tirar disso é que para se ter a maior liberdade, é necessária a maior das disciplinas. Esse paradoxo pode servir para demonstrar o giro. A liberdade de girar livremente, solto no espaço junto com tudo mais girando no cosmos, só pode ser conseguida com a concentração e o equilíbrio perfeitos.

 

A Rede

        Os dançarinos da paz se organizam internacionalmente em uma rede. Essa forma de organização tem muito a ver com o nosso tempo. Para descrevê-la, não usaremos a tradição Sufi, mas a ciência contemporânea. Muito poucas pessoas são informadas disso, mas a ciência de hoje abandonou a maior parte dos dogmas da antiga ciência que ainda aprendemos na escola.

        Na antiga ciência, costumava-se afirmar que a física era a disciplina básica para se entender a realidade, pois em última análise tudo era formado pelas unidades básicas, os ‘blocos de construção’ da existência, os átomos. No século vinte a física passou por uma revolução tão radical que virou pelo avesso essa idéia, pois os átomos mostraram que eram uns blocos de construção muito peculiares, capazes de mudar de estado, sujeitos a interpretações variáveis, compostos basicamente de energia e vazio, etc. Isso levou a ciência de vanguarda de nosso tempo a, provisoriamente, pois tudo está mudando com grande velocidade, a considerar que para entender a realidade é preciso começar com a vida, com os ramos da ciência que costumavam se chamar biologia, ecologia e ciências sociais, que na nova visão estão começando a se tornar uma nova ciência integrada. E na nova biologia, a vida aparece como uma imensa teia de relações, mais do que um conjunto de ‘coisas’ vivas. Essa teia, que podemos chamar também de rede, se tornou assim o modelo básico de entendimento da realidade.

        Uma rede de círculos de dança espalhados pelo mundo é uma idéia visionária. Essa teia de indivíduos diversos, com diversas abordagens e tendências pessoais, ligados as diferentes tradições culturais e espirituais, celebrando junto a alegria da dança é um sonho talvez distante. Mas tudo começa com o sonho, mesmo a vida na terra começou com um sonho do Universo. Somos parte de alguma coisa muito grande e que não começa na matéria. Acaba nela. Ou realizamos os sonhos na terra ou vivemos os pesadelos a que a inconsciência nos conduz. E em nosso momento atual, as coisas estão mais para pesadelo.

        A dança atrai indivíduo em diferentes níveis de compreensão e de ser. Ela não é um sonho dourado. Suas formas reais são imperfeitas, mas ela é puxada para frente, como por um atrator invisível, por um sonho do universo, que se manifestou no surgimento dos seres vivos nesse planeta.

 

Autogoverno

        O círculo é uma das mais antigas formas de associação humana. Através de sua geometria e de sua dinâmica, ele tem muita afinidade com a autogestão não-autoritária. O círculo define uma relação igualitária, ele não tem hierarquias, todos estão no mesmo nível e cada um é um participante igual aos outros.

        Nas antigas culturas de parceria anteriores ao patriarcado, era usual a formação de círculos dinâmicos para os mais diversos propósitos. Ainda encontramos isso em muitas culturas que mantiveram seus vínculos com a tradição. Na cultura afro-brasileira, por exemplo, temos a roda de capoeira e a gira de Candomblé, sobrevivência desse tipo tradicional de associação.

        Nessas antigas formas de associação tradicionais existem líderes, mas sua liderança se baseia na experiência e na sabedoria. Um líder desse tipo, e também um líder das Danças, deveria ser como o governante ideal que Lao Tse descreve no Tao Te King, aquele de quem o povo não sente o governo: “O Tao nunca age e, entretanto, nada deixa por fazer. Se os príncipes e reis a ele seguissem, as dez mil coisas se transformariam por si mesmas.

        Isso não é apenas uma imagem, pois o líder de danças está no círculo também, ele não está de fora como um maestro, sua liderança deve ser empática, através da sutil modulação gestual e sonora, da ressonância respiratória.

        É um tipo de liderança mais feminina, muito diferente daquela de nossa sociedade atual, moldada por milhares de anos de domínio patriarcal através de relações de dominação. Essa talvez seja uma das razões para haver uma certa predominância feminina nos círculos de dança. Muitos homens, talvez pela rigidez de sua estrutura de personalidade, não conseguem relaxar e participar. Eles se sentem inquietos e desconfiados participando de alguma coisa que se governa pela beleza e alegria.

 

Unidade das Tradições

        Outro aspecto da mensagem das Danças é sua visão da Unidade Interior das Tradições, visão que vem de Inayat Khan e Samuel Lewis. Mesmo no contexto das atuais iniciativas inter-religiosas, a proposta dos dançarinos da paz é bastante avançada. Pois tais iniciativas são em geral no sentido de relacionar através do diálogo, ou de outros meios, as diversas tradições. Já as Danças da Paz, incluem todas as tradições no círculo em total igualdade de condições.

        Mesmo um espírito de tolerância, reputado em geral como a atitude correta com relação às diferenças, fica aquém dessa proposta. Pois não se trata apenas de “tolerar” as diferenças, mas de incluir a todas no círculo de forma ativa. Os dançarinos efetivamente cantam os mantras e frases sagradas de todas as tradições, procurando vivenciá-las e compreendê-las. O fato de eles escolherem apenas algumas frases de cada tradição também não é casual, não é apenas por economia e facilidade que se resume tanto cada tradição. É também por acreditar que o essencial não está nas palavras. Os assim chamados livros sagrados também podem conter muitas coisas que são culturais e específicas, que não se aplicam a todos os seres humanos em todas as épocas, mas apenas ao povo ou cultura originais daquele livro.

        Quando os dançarinos da paz cantam os mantras e frases sagradas de cada tradição, estão prestando uma homenagem àquela tradição. Essa homenagem se dá no contexto do círculo de danças, onde todas as outras serão igualmente honradas. Essa perspectiva foi transmitida a por Samuel Lewis por seu mestre Inayat Khan. Desde jovem, na Índia, Inayat Khan tinha hábitos peculiares. Um deles era gostar de conviver com pessoas de todas as raças e religiões. Numa Índia separada em castas e dividida entre diversas religiões onde nem todos tinham essa abertura, ele mantinha a atitude que foi a mesma que a de todos os grandes sábios: ignorar as divisões e agir como se na prática elas não existissem. Já na juventude, tendo aprendido já a compor música, Inayat Khan mais de uma vez surpreendeu sacerdotes de alguma religião diferente da de sua família, mostrando-lhes canções e hinos que havia composto em homenagem a suas religiões.

        Mais tarde, quando trouxe o Sufismo para o Ocidente, não julgou conveniente converter ninguém à sua religião pessoal. Para ele, a forma adequada que o Sufismo deveria ter no Ocidente era a de um ‘movimento’, e não uma religião. Esse movimento seria universal e honraria igualmente todas as mensagens das diferentes tradições. Para esse novo movimento, Inayat Khan criou belíssimas orações e um ritual chamado ‘Adoração Universal’. Nas orações, acompanhadas de gestos, se manifesta também a mesma perspectiva. Nas palavras está contida uma visão universal da espiritualidade e nos gestos uma linguagem orgânica igualmente universal, fala aos corações de todas as raças. Muitos dos gestos que mais tarde Samuel Lewis colocou nas danças se originam dessas orações. Além disso, na Adoração Universal, lêem-se trechos dos livros sagrados das principais tradições da Terra. Dessa forma, as Danças herdaram de Inayat Khan a abordagem inter-religiosa da espiritualidade.

        Esse papel inter-religioso faz parte de todas os grupos que surgiram do trabalho de Inayat Khan, como o Movimento Sufi Internacional, a Ordem Sufi e a Sociedade Sufi Islamia Ruhaniat. Por essa razão, alguns chamam essa abordagem de ‘Sufismo Universal’, pois no contexto mais vasto da totalidade de escolas Sufis existentes no mundo,elas são apenas uma vertente.

 

A Rede Internacional

        A organização internacional das danças se formou como uma rede desde o princípio. Ela nunca teve um prédio ou qualquer local no espaço físico onde estivesse localizada, tendo se baseado em círculos de danças ligados pela Internet e através de encontros de dança. A organização em rede é também modelo mais orgânico e feminino, mais baseado nas relações entre as pessoas do que em estruturas de poder estratificadas. A rede congrega organizações nacionais em 25 países, inclusive o Brasil.

        Além de fornecer uma estrutura de comunicações, a rede tem as tarefas de editar materiais sobre as Danças, como gravações, livros e vídeos; promover encontros de Dança locais e internacionais, zelar pela integridade das Danças mantendo registros de suas formas corretas, indicar líderes de Danças em cada local quando essa informação for solicitada, etc.

 

Autopoiesis

        Autopoiesis é um termo criado a partir do grego por Maturana e significa literalmente auto-poesia, que quer dizer criação de si mesmo. Maturana o emprega aplicado a toda a vida, mas começa com as células. Isso, no nível humano, tem a ver com a razão pela qual o sufismo existe. Ele é um conjunto de recursos para a criação de si mesmo.

 

O  MISTICISMO DO SOM MÚSICA, CORPO E LINGUAGEM